Açorianices – entradas do blogue Professorices

(Entradas sobre os Açores no extinto blogue Professorices)

Janeiro 08, 2004

Mestre-escola 

Há dias, recebi uma mensagem do Marítimo dirigida a “caro mestre-escola”. Fiquei ofendidíssimo!… Então isto diz-se a um ilustre catedrático! Quantos colegas meus não ficariam super-ofendidíssimos? Eu não, eu fiquei muito honrado. Mestre-escola é, certamente, uma referência muito elogiosa.

Julgo que quase todos temos um carinho especial pelo nosso professor das primeiras letras, ou pela sua memória. É um segundo pai ou uma segunda mãe, mesmo com as reguadas. Além disso, foram durante décadas, à sua maneira, os únicos animadores culturais de tantas terras perdidas. No meu caso, o Sr. Barbosa, meu mestre da primária, foi um amigo que me ficou para toda a sua vida. tenho uma curiosidade acerca dele que já nunca conseguirei resolver. porque é que ele me tratava por “pelingrinhas”? O que quereria isto dizer? Já universitário, quando ia a férias, nunca deixava de o visitar e ele interessava-se imenso pelo progresso dos meus estudos.

Tenho também razões familiares. O meu avô paterno, uma das pessoas mais marcantes na formação do que sou hoje, começou a sua vida como professor primário, embora, depois, tenha sido principalmente um emérito professor de latim e cultura clássica (devendo-lhe, por isto, e sem arrependimento, três anos de estudo de latim, eu que ia para ciências). A minha mãe, felizmente ainda com vivíssimos 87 anos, também era professora e creio que ficou na memória de muitos alunos.

Ao mesmo nível, ficou-me a memória de extraordinários professores de liceu que tive. Um pouco de tudo, mas, em geral, tive professores notáveis, homens voltados à terra como profissionais muitas vezes depois de alguns anos como assistentes universitários, e cujos interesses intelectuais, que nos transmitiam, iam muito para além do ensino obrigatório das matérias. Deles destaco Armando Cortes Rodrigues, que tinha tanto de excêntrico (o que nós, miúdos, adorávamos, com histórias que me encheriam páginas e me recordam o tio tenente dos Sinais de Fogo) como de excelente poeta (injustamente esquecido), amigo de Pessoa e co-fundador do Orfeu, onde escrevia como Violante de Cisneiros. Ou Eufrásio de Oliveira, que mais do que professor de inglês, era um professor de cultura inglesa e nos ensinava o que era um “gentleman” ou nos incutia o gosto pela beleza de Shakespeare, a nós, miúdos de doze anos. Outros, como José de Almeida Pavão e Rui Galvão de Carvalho, estudiosos da literatura açoriana e anterianos eméritos, foram mais tarde professores convidados da nova Universidade dos Açores e não pediam meças a outros professores com credenciais académicas.

Mas destaco, com um lugar especialíssimo na minha memória e gratidão, Ilídio Sardoeira, antigo assistente da Universidade do Porto demitido pelo salazarismo, amarantino e grande amigo de Teixeira de Pascoais e de Abel Salazar, colaborador da Biblioteca Cosmos. Foi meu professor de ciências naturais no terceiro ciclo. Como professor, dava muito mais importância à prática, incutindo-nos o gosto pela observação e pela limitada experimentação para que tinha magros recursos. Boa parte das nossas aulas era de campo, muitas vezes ao fim de semana, calcorreando a ilha em cata de exemplares da flora e da fauna típicas da Macaronésia. A matéria do programa que a estudássemos no livro, que era para isso que o tínhamos, compensando esse estudo pessoal com uma ou outra sessão de “tirar dúvidas”. Mas muito mais lhe devemos, eu e os meus colegas, de que aqui ficam só alguns exemplos: as aulas teóricas em que se tratavam de todos os assuntos menos ciências naturais, fosse a poesia de Pascoais, a pintura de Amadeu, as ideias essenciais da teoria da relatividade, os perigos da guerra nuclear, a vida e obra de Ghandi, a filosofia literária de Tagore, eu sei lá que mais. E para não esquecer a formação de um grupo de jograis (uma coisa hoje esquecida) a que pertenci, que se exibiu efemeramente dizendo principalmente poesia de Antero (por nosso orgulho micaelense) e de Pascoais ou Torga (por gosto dele). E já que falo de poesia, a ele devo esta coisa escandalosa de preferir Cesário Verde a Pessoa!

Quando me doutorei, fiz questão de reservar os três primeiros exemplares do pacote de teses: o primeiro para os meus pais, o segundo para a minha mulher e o terceiro para ele. Respondeu-me com a carta mais bonita que alguma vez recebi. Já reformado, revia-se no meu gesto como um exemplo da gratificação de se ser mestre. Terei que a publicar, mas só depois de uma radical rearrumação do meu incrível escritório, para poder encontrá-la.

Em contrapartida, e porque tenho sempre que chegar à universidade, da maioria das dezenas de professores que tive em medicina, em Coimbra e Lisboa, não guardo qualquer recordação relevante, a não ser, em muitos casos, tristemente anedótica. Mestres verdadeiros, tive dois: Juvenal Esteves e Miller Guerra. E também, embora só o tivesse apreciado mais tarde, porque se misturavam discordâncias filosóficas com um professor heideggeriano, outro grande homem: Barahona Fernandes.

PS – A Prof. Sara Marques Pereira, da Universidade de Évora, pediu-me um testemunho sobre o meu liceu para o seu livro “Memórias do Liceu Português”, que julgo ainda não ter sido publicado. Como transparece deste “post”, considero que, no meu tempo, o Liceu de Ponta Delgada era excepcional. Para os interessados, está acessível na minha página pessoal a minha Memória do Liceu.

Janeiro 04, 2004

Protesto gastronómico 

Uma faceta minha que só alguns amigos conhecem é a de cozinheiro criativo. Ao longo dos anos, inventei centenas de receitas, que julgo terem qualidade e imaginação equilibrada. Também gosto muito da nossa cozinha tradicional e faço-a muito. Não tenho um respeito exageradamente reverencial pelas receitas canónicas. De vez em quando, dou-lhes um toque pessoal ou o que entendo ser um aperfeiçoamento técnico, mas nunca por nunca desvirtuo o essencial da receita. Aliás, é isto que se passa sempre. As receitas tradicionais, mesmo nas boas recolhas, são um padrão. Ao longo dos tempos, cada família as foi modificando num ou noutro pormenor.

Vem isto a propósito de um exemplo oposto, ainda por cima dado por um profissional. Comprei o último livro de Michel, embora não seja um grande apreciador da sua cozinha, principalmente porque vi que trazia um capítulo de cozinha dos Açores (deixo de lado agora a discussão sobre “a” cozinha dos Açores, que de facto não existe; há, sim, “as” variadas cozinhas das ilhas dos Açores). Vi depois que, em geral, são receitas próprias inspiradas em ingredientes e usos açorianos. Óptimo, é o que faz um bom cozinheiro, como alguns chefes estrangeiros estão a fazer excelentemente em alguns dos nossos restaurantes de topo.

Mas Michel vai mais longe. Inclui no seu livro uma receita de um prato tradicional, a “alcatra”, um ícone do património cultural da ilha Terceira, para mais intimamente ligado a todo o conjunto de manifestações espirituais e profanas do culto ao Espírito Santo. Como não refere ser uma criação pessoal inspirada e usa a designação tradicional, presume-se que pretende referir-se ao prato tradicional. Assim, devia ter respeito pela sua genuinidade. Ora a receita que apresenta é uma completa aberração. Ninguém de bom juízo lha terá dado (ou então foi uma partida ilustrativa do bom humor açoriano, que muitos não conhecem). Se calhar, comeu a alcatra e pôs-se a adivinhar a receita. Seja como for, não é de profissional.

Fevereiro 09, 2004

Gente feliz com lágrimas (I) 

Referi-me ontem, talvez um pouco cripticamente, ao “Gente feliz com lágrimas”. Penso que é bem conhecido, mas talvez valha a pena dizer mais alguma coisa. Como devem saber, o seu autor é João de Melo, um grande escritor meu patrício, cerca da minha idade, mas com percursos de juventude diferentes que fizeram com que só há alguns anos nos tenhamos conhecido (se não me engano, graças a uma presidência aberta de Mário Soares nos Açores).

Tenho amigos açorianos escritores que, por amizade e respeito pela liberdade de critica, certamente aceitarão que eu diga que o “Gente feliz com lágrimas”, que leio e releio (quando deixo a meio os livros dos nossos Nobel e meio), é o segundo grande romance açoriano do séc. XX, a seguir ao “Mau tempo no canal”. Aliás, o adjectivo não é correcto. São grandes romances açorianos mas, como toda a cultura e natureza do açoriano, só o são porque, ao mesmo tempo, têm uma dimensão muito para além do horizonte de tanto mar que, desde crianças, nos molda a alma em contraste com a pequenez da terra. O verdadeiro humanismo, nos dias de hoje da moderna cosmologia, não será a síntese dos contrários entre a infinitésima pequenez cósmica do homem e a maravilha da sua mente?

Ia escrever mais, mas um acesso agudo de preguicite obriga-me a aproveitar este resto de fim de semana para compensar duas semanas de intenso trabalho profissional – um dos meus problemas, entre os doces prazeres da reforma e a pulsão pela actividade, “mon coeur balance”.

Amanhã continuo.

Fevereiro 29, 2004

Um homem e as suas histórias 

Vi ontem um filme excelente, “O grande peixe”, de Tim Burton. Não vou falar sobre ele, vão vê-lo. Esta nota é só para chamar a atenção para o texto final, que me impressionou, porque me diz muito:

“Um homem conta tanto as suas histórias que acaba por ser ele as suas histórias. E, com isso, torna-se imortal.”

Fevereiro 11, 2004

Gente feliz com lágrimas (II) 

Retomando a “Gente feliz com lágrimas”, nessa época e praticamente até 25 de Abril, os Açores eram uma das nossas sociedades mais assimétricas e estratificadas, com um povo de grande nobreza e carácter, mas economicamente miserável. Já eu era homenzinho e ainda via camponeses virem à cidade de fato humilde mas digno, com gravata, mas de pé descalço. Ainda me lembro, em criança, de os operários e camponeses assalariados terem como almoço um pão recheado só com malagueta, com o muito picante a puxar a boca para as calorias baratas de uma garrafa de vinho de cheiro.

Os grandes senhores tinham uma vida de requinte, mas também com isso delapidaram fortunas, sem sentido do investimento e da rentabilidade. Por exemplo, homens como António Borges, José do Canto ou o Conde da Praia gastaram rios de dinheiro percorrendo o mundo a colher árvores exóticas para os magníficos parques de S. Miguel, que hoje maravilham os visitantes.

Refira-se, porém, que a aristocracia açoriana era de fidalgos menores, “muito” ricos, mas este “muito” à escala das ilhas. Ainda hoje, em S. Miguel, ao ler os antigos contratos de foreiros, se pode vislumbrar a divisão da terra em grandes fatias, de costa a costa, distribuídas por meia dúzia de grandes proprietários. Mas isto não correspondia a títulos de nobreza. Até ao liberalismo, em que proliferaram as fornadas de títulos (“Foge, cão, que te fazem barão / Para onde, se me fazem visconde?”), o único titular açoriano, que eu saiba, era o conde de Vila Franca, descendente do segundo capitão do donatário, um Câmara da Madeira, de seu nome Rui, filho segundo de João Gonçalves Zargo. Passaram a usar mais tarde o título de condes e depois marqueses da Ribeira Grande – com o palácio em Lisboa que é hoje a Escola Rainha D. Amélia, na Junqueira – para esquecer a triste história de um conde da Vila Franca, valido de D. João IV, condenado pela Inquisição pelo “nefando crime” de sodomia.

Ver hoje os Açores é uma diferença abismal. Em grande parte, justifica-se por uma palavra: autonomia. Foi, em geral, bem usada (embora com grande clientelismo nos tempos do governo regional anterior) e, principalmente, pôs a uso da região importantes recursos comunitários específicos. Mas a autonomia tem sido injustamente vilipendiada, em parte graças aos desbocamentos que vêm regularmente do Funchal. Confundida com independentismo, estou certo de que foi, de facto, instrumentalizada por este durante 1975. Mas o verdadeiro sentimento autonómico açoriano, desde o do fim do século XIX até ao da minha geração (que o digam os muitos açorianos bem conhecidos politica e mediaticamente), foi sempre uma expressão particular, na diversidade de que se enriquecem as nações, de se ser profundamente português.

Fevereiro 21, 2004

Mouzinho e os corvinos 

Há dias, escrevi sobre a nobreza de carácter popular açoriano, da “Gente feliz com lágrimas” e lembrei-me de uma história que a ilustra e que envolve a legislação de Mouzinho da Silveira.

Não se imagina o que ainda é hoje o isolamento dos corvinos, os cerca de quatrocentos habitantes do Corvo, a ilha minúscula que fica nos confins do arquipélago. Viviam oprimidos pelos altos encargos do regime senhorial, que a revolução de 1820, com os tempos conturbados de efervescências absolutistas que se lhe seguiram, nunca chegou a abolir. Certo dia, depois da instalação na Terceira do governo liberal de D. Pedro IV, um grupo de corvinos meteu-se num pequeno barco e afrontou as muitas milhas do terrível mar açoriano para chegarem à Terceira e irem à viva voz com Mouzinho, a quem expuseram as suas queixas, mas com verticalidade e sentido do direito à justiça. Mouzinho ficou de tal forma impressionado com essa gente de enorme carácter e coragem que, não só nessa noite de “directa”, como hoje dizem os jovens, redigiu todos os decretos de abolição dos morgadios e dos direitos feudais senhoriais, como dispôs no seu testamento que queria ser enterrado no Corvo, junto dos mais nobres portugueses que tinha conhecido. Ainda espero que se venha a concretizar um dia essa exemplar disposição testamentária do grande Mouzinho.

Março 06, 2004

Verdade ou mito? 

Sou, como já viram, um açoriano desenraizado, desde há muitos anos. Com a enorme mobilidade das últimas décadas, o desenraizamento é hoje um fenómeno comum. Diz-se que há mais alentejanos na Amadora do que em Beja. Ele mede-se por um produto, de tempo vezes distância. Aqui é que difere de certa forma o desenraizamento açoriano, porque a distância é muito maior. Não falo tanto dos que cá vivem, como eu, até com alguma disponibilidade económica para visitas frequentes à terra, mas sim das centenas de milhar de açorianos (mais do que a população das próprias ilhas) dispersos pela América e Canadá, principalmente, mas também por recantos tão estranhos como as Bermudas ou as Ilhas do Canal.

O açoriano mescla duas coisas contraditórias: um orgulho ancestral de desbravador de terras, de vencedor de cataclismos naturais recorrentes, de espectador privilegiado de um jardim do Éden ainda em grande parte preservado, e com isto tudo, um carácter vincado; e, ao mesmo tempo, um abafamento depressivo pela pequenez da terra, pelas nuvens que cortam os pontos de vista mais altos, pelo cinzento do céu que acentua a negrura do basalto, que escurece a magnífica paleta de verdes e que nem sempre permite o brilho contrastante da cal alvadia das fachadas. Tem havido muita teorização sobre isto, e lá voltaremos. Falei sobre emigração. Quero salientar que a emigração açoriana é muito diferente da continental, motivada por factores económicos. É por estas razões, obviamente, que boa parte dos açorianos emigram. Mas quantos conheci eu, sem pressões económicas, que emigram apenas porque a sua mente está conformada para o horizonte de tanto mar, em conflito com o horizonte de tão pouca terra?

Assim se foi teorizando sobre a insularidade. Nemésio e Natália Correia são os expoentes dessa elucubração um pouco poética. Mas eles também eram desenraizados. Há a outra versão, porventura mais realista, de Aristides Moreira da Mota e dos seus companheiros autonomistas do século XIX. Mas é a “versão poética” que tem tido mais impacto. Devo confessar que é, irracionalmente, a que mais toca, excepto quando procuro cair em mim, numa de lucidez e de objectividade. É como ver o “Big fish”, de Tim Burton, de que falei há dias. Sei qual é a verdade, mas a mentira é muito mais bonita.

Nos últimos anos, tenho tido que ir frequentemente a S. Miguel. As solicitações são múltiplas, de várias entidades, e correspondo sempre que posso, com granxe gosto. O preço é que se está a esbater um pouco o mito. Mantenho os rituais de evocação da infância, da visita aos lugares simbólicos. E, no entanto, bem no fundo, sinto que tudo isto é um pouco falso, que estou a construir um mito para meu próprio gozo pessoal. Os mitos são, fundamentalmente, construções colectivas e sociais, alastradas pela transmissão geracional. Estes, como a mitologia grega, são facilmente desmontáveis. Acho que muito mais perigosos são os mitos individuais, porque não os desmontamos e porque cavam a fronteira entre a verdade e a mentira numa vala difusa em que cabe muita coisa (na minha idade, eu prefiro enchê-la muito mais com a ilusão do que com a realidade).

Março 07, 2004

Ainda a ilha do Corvo 

Dado o interesse que suscitou o meu “post”, vou registar duas historietas de que sempre ouvi falar, relativas à visita feita aos Açores pelo então Presidente Carmona.

Parece que ele ficou muito impressionado com a comunidade corvina, tal como eu a relembro na minha mitologia. Prontificou-se a garantir a concessão pelo governo salazarista de qualquer pedido que os corvinos quisessem fazer. Parece que fizeram dois. Um aparelho de rádio para colocar na praça da vila e uma bandeira portuguesa para a Câmara, que a existente estava muito rota.

A segunda é ainda mais mirabolante, mas magnífica. Diz-se que no seu discurso de boas vindas, o presidente da Câmara do Corvo, certamente um popular, começou por se dirigir a Carmona como “Exmo colega”. Entre presidentes …

PS – Não sei se os meus leitores continentais se conseguem aperceber da dimensão um pouco surrealista desta discussão. Ilha do Corvo: à vista das Flores, mas com mar tantas vezes tão mau que impede qualquer comunicação (embora servida, desde meados dos 80, por um pequeno aeroporto); 6,5 x 4 km; uma volta a pé à ilha num só dia; 400 habitantes; o único município rural com uma única povoação; um presidente de câmara, à medieval, tão rural e pouco instruído (quando é carteiro, ao menos sabe ler) como os seus munícipes; ausência quase total da administração pública; centro de saúde e médico só depois do 25 de Abril; lugar de pároco ocupado por castigados pela diocese; etc, etc.

Os calafonas 

Não há dúvidas, hoje estou numa de evocação açoriana. Talvez porque tive comigo ao almoço toda a minha descendência, o que, simetricamente, me evoca a ascendência (que sorte que eu tive!) e, com isso, as raízes telúricas.

O Nuno Barata, açoriano provavelmente com idade de ser meu filho mas de que – ainda – desconheço os pais, que são o que me diz alguma coisa, e animador de um bom blogue açoriano, ***, o Fogotabraze (conheciam esta deliciosa praga açoriana, talvez vulcanológica?) faz um comentário no meu blogue com uma deliciosa “estória” de emigrantes com um relógio de cuco e a Ponte do Rio Kway! Isto suscita-me algumas notas, uma de costumes, outra linguística.

Escrevi que a emigração açoriana não era exclusivamente económica, que tinha também uma dimensão de aventura e de evasão. Posso dar um exemplo meu, familiar, de uma família digamos que mediana e remediada, com um primo meu médico e outro engenheiro emigrados para os Estados Unidos. Estou a lembrar-me também de um outro primo meu, de uma família bem conceituada e ocupando um alto posto da administração regional, que tem os seus únicos dois tios (do ramo que não é o meu) emigrados no Canadá. Mas devo admitir que não a regra. Esta é a da emigração por motivos económicos ou em consequência dos cataclismos recorrentes. Há nestes emigrantes um enorme orgulho e uma assimilação muito rápida dos valores de sucesso da cultura americana.

A Ascensão, uma das figuras queridas da minha infância.

Nossa cozinheira, desde que me conheço, era como parte da família. Ainda muito criança, fui padrinho de um dos seus filhos, infelizmente hoje perdido para mim nas voltas que o mundo dá. O marido era um excelente operário de construção civil, na firma de que o meu pai era responsável técnico. Uma e outro eram razoavelmente bem pagos, mas a miragem dos dólares era mais forte e lá foram. Surpreendentemente, não deram notícias durante um ano ou dois. Fizeram-no só depois, com uma carta que tresandava a merecido orgulho, acompanhada de uma fotografia da sua sala de estar, com uns bons sofás e um grande frigorífico. Mais tarde, recebi uma fotografia do José, o meu afilhado, com a sua beca de fim de liceu. Não soube mais dele, mas espero que tenha prosseguido pelo menos até ao “college”. Mas o que eu ia dizer é que a Ascensão, a partir dessa altura, nunca mais de deixou de escrever à minha mãe, pelo menos mensalmente. O que é magnífico é que inclui sempre uma nota de dólar! Sublime! É um símbolo do seu bem estar e parece-me também ser uma contradição interessantíssima, entre a dependência antiga, quase servil mesclada com um reconhecimento que se vê pela amizade da escrita, e, por outro lado, a afirmação de uma libertação económica dessa mesma dependência. Será isto filosofice minha? Há quem diga que ando a tresler com a idade!

A segunda nota era linguística, sobre a influência dos emigrantes. Há uma excelente recolha da Dra. Nair Borges, que não consigo encontrar na bagunça do meu escritório. Uma das coisas interessantes, é que os americanismos entraram não só na linguagem popular mas também na erudita, talvez por corresponderem a ideias ou coisas totalmente desconhecidas entre nós. Por exemplo, muito antes de cá haver “jeans” ou calças de ganga, já na minha terra, mesmo os meninos bem, diziam ter uns alvarozes (“overall” ou jardineiras). E mesmo só os que tinham dinheiro é que compravam gamas (“gums” ou “chewing gums”).

Aqui vai um pequeno texto calafona.

O calafona (“californian”), depois de trabalhar toda a semana na suamachina da fábrica (“sewing machine”), vai no fim de semana às compras ao estoa (“store”) no seu sai-de-casa (“side car”). Compra várias coisas, sem dispensar o açucrim (“ice cream”). Ao chegar a casa, mete as compras na frisa (“freezer”), troca os sapatos pelas sulipas (“sleepers”), veste uma suera (“sweater”) se está frio, senta-se no coche (“coach”) a ver televisão e a insultar os árbitros com um sonoro sanabagana (“sun of a gun”) ou um sanababicha (“sun of a bich”).

E, já que vai deixar de se ouvir este grito, com a proibição da pesca à baleia, o clássico aviso dos baleeeiros: “blós, blós!”, afinal “blows, it blows!”.

Dar fé 

Falei há pouco da minha querida Ascensão, cúmplice com a minha avó materna da memória inapagável das minhas papilas gustativas (pouco a pouco, vou anunciando o meu próximo livro de cozinha!).

Uma história dela que não esqueço tem a ver com o muito açoriano “dar fé”. O “dar fé” é uma faceta da grande curiosidade do açoriano popular, também da má língua e coscuvilhice. Mas tem aspectos curiosos, de mais alto nível. Já nos seus setentas e muito limitada pela idade, a minha avó materna, uma personagem fascinante em que revejo sempre a extraordinária Margarida Dulmo do Nemésio (que afinal, era copiada da personagem real de uma das grandes amigas e mais afins da minha avó, D. Maria Parreira, que ainda conheci, e com que fascínio), dizia eu, que este período já vai longo, a minha avó cuidava muito do “dar fé”.

Por exemplo, queixava-se de que o meu pai não a tinha levado nunca (aos setentas!) a ver um jogo de futebol, uma coisa que ela nunca tinha visto, mas de que estava sempre a ouvir falar no seu indispensável rádio ou na leitura do jornal e de que tinha que “dar fé”. Ela misturava de forma engraçadíssima um agudo sentido de humor, uma imaginação muito fértil – juntos, resultando numa inigualável arte da conversa – e uma curiosidade ávida por tudo o que era novidade. É o tal “dar fé”! Só ficava um pouco tolhida, aos setentas, em estrear-se numa viagem de avião. Mas perguntava-me repetidamente como era ver isto de lá de cima.

A Ascensão, que não vivia na nossa casa, passava sempre pelo mercado de peixe antes de ir para o trabalho. O mercado de peixe era na rua para onde dava a morgue do velho hospital, na R. da Vila Nova de Baixo (esta do baixo e de cima também é muito típica). Já sabíamos que todos os dias ela ia dar fé do que se passava no reino dos mortos. Um dia, estava lá a urna do Dr. Ançã, um médico que tinha morrido na América. À maneira americana, que trata os cadáveres como estrelas de Hollywood, o homem estava muito “brunido” (bonito; conhecem este termo açoriano?). O mal foi que a Ascensão, involuntariamente, carregou num botão que fez erguer-se a 90° o tronco do falecido. De olhos bem abertos e maquilhados a olhar para ela, numa mensagem silenciosa que para a minha comadre era puro pavor!

Ainda hoje me lembro: a Ascensão fez um quilómetro em 3 minutos; chegou à nossa casa ofegante, transida, exorbitante, lívida e palpitante (querem mais adjectivos?); e só dizia – “essas terras da América são terras do demónio!” Como disse no texto anterior, acabou por não resistir ao apelo da terras da América e espero que lá esteja muito feliz.

Março 13, 2004

Antero desesperado, sob a esperança 

Como jovem micaelense, formei-me sob a sombra tutelar de Antero, entre outros. Ainda hoje, por mais curtas que sejam as minha idas a Ponta Delgada, não falho ao ritual de recordar alguns dos seus sonetos sentado no banco em que ele se suicidou. Dizem todas as histórias locais que ainda é o mesmo velho banco, no lado norte do Campo de S. Francisco, no passeio que ladeia o convento da Esperança (onde todo o turista vai ver a famosa e belíssima imagem italiana do Senhor Santo Cristo dos Milagres, o Ecce Homo).

Só isto já seria irónico, o convento da Esperança. Mas alerto os futuros visitantes da minha linda terra para que atentem num pormenor ainda mais irónico. Por cima do banco, na parede do convento, há uma velhíssima inscrição em pedra, certamente já do tempo de Antero, que diz exacta e simplesmente: ESPERANÇA.

Março 21, 2004

Memórias do meu liceu 

Nota prévia. Aos domingos, o Professorices vira Açorianices. Este é um texto que está na minha página pessoal. Foi-me pedido para um livro a publicar por uma professora da Universidade de Évora. É longo demais para um blogue, mas o meu amigo Carlos Afonso acha que assim terá mais fácil acesso por parte do que parece ser um número crescente de patrícios que começou agora a ler-me. Aos meus leitores continentais, provavelmente isto não diz muito. Mas dêem lá hoje um lugarzinho aos meus amigos ilhéus. Vamos às memórias.

Cinquenta anos volvidos, o dia 3 de Outubro de 1953 continua inesquecível. Era o meu primeiro dia de liceu. Como mais velho da família, até tive escolta dos meus irmãos mais novos, no curto trajecto de casa para o liceu, a quererem testemunhar acontecimento tão memorável. Bata nova toda resplandecente de branco, pasta nova com os livros e os cadernos cujas capas o meu pai se tinha esmerado a escrever com a sua melhor letra de desenhador, e ainda alguns acessórios de que já me tinham prevenido: um pião e alguns berlindes.

Naquele tempo, passar para o liceu era muito diferente da actual passagem do 4° para o 5° ano do ensino básico. O liceu, numa pequena capital de distrito, era uma instituição única e central na vida da terra. Os seus professores gozavam de grande consideração social e estava associada ao liceu uma certa imagem de elite porque os estudantes de menos recursos optavam pela escola industrial e comercial. Associava-se também à entrada no liceu um ritual de iniciação menos agradável e com alguma ansiedade, o dos exames: para além do exame da quarta classe, era necessário também fazer um exame de admissão ao liceu, para que nos preparávamos especialmente no fim da escola primária.

Instalado numa magnífica casa senhorial do princípio do século XIX, dos barões de Fonte Bela, o liceu de Ponta Delgada, que já tinha sido de Antero de Quental e que, muito depois, assim voltou a ser chamado, parecia-me um palácio real. Ainda hoje, descontada a imaginação infantil, sempre que visito a minha terra, impressiona-me a grandeza e a qualidade arquitectónica do meu velho liceu. Poucos alunos que éramos, vivíamos nele à larga e tínhamos aulas nas salas nobres do antigo solar, magnificamente pintadas a fresco e com estuques encomendados a mestres italianos. Grandes recreios, um ginásio moderno e um bom campo de jogos completavam as instalações, que certamente não eram vulgares no resto do país.

Mas a minha memória mais grata é a dos professores que me formaram. Tive um pouco de tudo, mas, em geral, tive professores notáveis, homens voltados à terra como profissionais muitas vezes depois de alguns anos como assistentes universitários, e cujos interesses intelectuais, que nos transmitiam, iam muito para além do ensino obrigatório das matérias. Deles destaco Armando Cortes Rodrigues, que tinha tanto de excêntrico (o que nós, miúdos, adorávamos, com histórias que me encheriam páginas e me recordam o tio tenente dos Sinais de Fogo) como de excelente poeta (injustamente esquecido), amigo de Pessoa e fundador do Orfeu, onde escrevia como Violante de Cisneiros. Ou Eufrásio de Oliveira, que mais do que professor de inglês, era um professor de cultura inglesa e nos ensinava o que era um “gentleman” ou o “british way of life”. Outros, como José de Almeida Pavão e Rui Galvão de Carvalho, estudiosos da literatura açoriana e anterianos eméritos, foram mais tarde professores convidados da nova Universidade dos Açores e não pediam meças a outros professores com credenciais académicas.

A estes e outros se juntavam um grupo de professores em situação particular: eram os professores com estágio e que iam para o meu liceu aproveitar, para se efectivarem, um quadro generoso de vagas de efectivos de que o liceu dispunha. Eram, em regra, excelentes professores. Lembro-me, por exemplo, de Oliveira Guimarães, que nos ensinava duas filosofias, a oficial e a paralela, transgressora. De outra, que não foi minha professora, Alba Monteiro, sei que também subvertia o seu ensino de filosofia. Não sei se a figura bonacheirona e de excelente homem que era o reitor, João Anglin, fazia alguma ideia do que isso significava ou se fechava os olhos, como fazia a tantas coisas, dentro dos limites razoáveis da disciplina, para ele temperada por uma sábia compreensão da psicologia juvenil.

Na evocação destes professores de arribação, tenho um lugar muito especial para um homem que me marcou pela vida fora: Ilídio Sardoeira, antigo assistente da Universidade do Porto demitido pelo salazarismo, amarantino e grande amigo de Teixeira de Pascoais e de Abel Salazar, colaborador da Biblioteca Cosmos. Foi meu professor de ciências naturais no meu terceiro ciclo, chegado a Ponta Delgada para se efectivar, quando já andaria pelos quarenta. Como professor de ciências naturais, dava muito mais importância à prática, incutindo-nos o gosto pela observação e pela limitada experimentação para que tinha magros recursos. Boa parte das nossas aulas era de campo, muitas vezes ao fim de semana, calcorreando a ilha em cata de exemplares da flora e da fauna típicas da Macaronésia. A matéria do programa que a estudássemos no livro, que era para isso que o tínhamos, compensando esse estudo pessoal com uma ou outra sessão de “tirar dúvidas”. Mas muito mais lhe devemos, eu e os meus colegas, de que aqui ficam só alguns exemplos: as aulas teóricas em que se tratavam de todos os assuntos menos ciências naturais, fosse a poesia de Pascoais, as ideias essenciais da teoria da relatividade, os perigos da guerra nuclear, a vida e obra de Ghandi, eu sei lá que mais. E para não esquecer a formação de um grupo de jograis (uma coisa hoje esquecida) a que pertenci, que se exibiu frequentemente dizendo principalmente poesia de Antero – por nosso orgulho micaelense – e de Camões, Pascoais e Torga – por seu gosto. E já que falo de poesia, a ele devo esta coisa escandalosa de preferir Cesário Verde a Pessoa!

Não admira que, neste clima de muito boa qualidade intelectual, também nós, alunos, principalmente os mais velhos, tivéssemos um papel activo. Como jovens que éramos, fazíamos uma mistura disparatada de coisas. Patuscávamos, víamos passar as meninas no canto do Clube, mas ao mesmo tempo fundámos o Círculo Cultural Antero de Quental, em instalações que o reitor nos cedeu. A lista de iniciativas foi longa e nelas pusemos, mais de duas dúzias de nós, o maior empenhamento, como só os jovens sabem. Organizámos exposições de “pintura”, para que fornecíamos reproduções que tínhamos em casa, e que eram acompanhadas de palestras sobre pintura moderna (um moderno que, para a terra, começava no impressionismo). Formámos um grupo de teatro (que faliu prematuramente, porque, no nosso entusiasmo, esquecemo-nos de como custear adereços e cenários).

Escrevíamos para os jornais locais. Organizámos conferências para toda a cidade convidando os profissionais mais distintos para falarem de assuntos de momento (lembro-me de um cirurgião ter feito uma conferência sobre o impacto das transplantações logo a seguir à primeira operação de Barnard), etc. Mas também dávamos a volta à ilha a pé, que ainda são para cima de 160 Km.

Sem que ele estivesse relacionado directamente com o liceu, não posso deixar de lembrar, com comovida amizade, um jovem militar colocado em Ponta Delgada, com quem muitos de nós tínhamos relações, espantados com a cultura e inteligência desse jovem que tanto nos estimulava na nossa acção e que nos ensinava a ouvir Beethoven, em longos serões de música gravada com explicações e comentários entre andamentos. Entrou depois na nossa história. Chamava-se Ernesto Melo Antunes.

Ao chegar aqui, o leitor certamente estranhará que eu não tenha falado no obscurantismo desses tempos, do ensino ao serviço do regime, da obrigação da Mocidade Portuguesa, da mentalidade estreita de alguns professores, da disciplina obsoleta (separação dos sexos – embora eu tenha estado, como menino bem comportado, sempre em turmas mistas, que as havia no meu liceu, uso obrigatório da gravata no 3° ciclo, etc.). Tudo isto é verdade. Mas, como viram, tenho outras tão boas memórias que não me apetece falar de tristezas.

O 6 de Junho e a autonomia açoriana 

Estava a pensar ficar hoje por aqui, acerca de açorianices, mas um “post” do (Indis)Pensáveis, sobre a manifestação de 6 de Junho de 1975 e a autonomia dos Açores obriga-me a algumas notas. O sentimento autonómico dos Açores e da Madeira (mas agora só vou falar dos Açores) nunca foi cá bem conhecido e, se calhar, para as gerações açorianas mais jovens, que felizmente sempre viveram na democracia com autonomia, também precisa de alguma informação. Infelizmente, após o 25 de Abril, com a excepção de Melo Antunes e poucos mais, também o MFA e o governo, preocupados com o papel dos Açores na geopolítica e na luta surda travada entre as superpotências acerca da revolução portuguesa, não souberam compreender o desejo da autonomia e entregaram-no a movimentos afinal hostis à revolução e à democracia.

A batalha pela autonomia nunca foi independentista! Os seus mentores do fim do século XIX, de que se destaca Aristides Moreira da Mota, eram fieis reflexos de uma postura histórica, de que já tenho falado: somos açorianos porque somos portugueses, que para cá vieram e nos fizeram, somos dos melhores portugueses porque somos açorianos perdidos no mar mas mantendo sempre a chama, os últimos a renderem-se aos Filipes, os primeiros a aclamar o liberalismo, e tanto mais. Por decreto de 2 de Março de 1895, o governo concedeu autonomia administrativa aos distritos açorianos. Como vêem, já vem da monarquia. É por isto que a “bandeira da autonomia” do grupo de Moreira da Mota, que eu em miúdo via religiosamente hasteada no dia 2 de Março em casa do Pe. Ferreira, é azul e branca; e julgo que Hugo Moreira, quando propôs a actual bandeira da região, inspirou-se nisso e não num aproveitamento que, entretanto, tinha feito a FLA.

A autonomia era considerável, comparada com a dos distritos do continente. As chamadas Juntas Gerais eram únicas nas ilhas e tinham largas competências, muito longe, embora, das actuais competências regionais. Salazar nunca se atreveu a tocar nessa autonomia, a não ser num período transitório a seguir à revolta das ilhas de 1931. A minha formação politica juvenil – e volto a referir os ícones, Melo Antunes e Borges Coutinho – fez-se cruzando a dimensão mundial, a nacional, mas também a regional. Não quero ser injusto, porque a memória vai faltando, mas lembro Medeiros Ferreira, Jaime Gama, Roberto Amaral, o grupo do Gil. Mota Amaral é que não aparecia, que o seu percurso é mais sinuoso. Lembro-me das célebres Jornadas de estudos açorianos, no marcelismo, quando eu, já universitário ou até licenciado, ia a férias. Um sector que julgo identificar em parte com o Opus Dei (pelos convidados que lá levavam, ainda posso dizer quem) e, em grande parte com os florescentes Cursos de cristandade, tentou o aproveitamento do descontentamento regional (ilhas esquecidas, tributação que esquecia os custos da insularidade, domínio dos altos quadros continentais, etc.) para um movimento de direita que combatesse a eficaz acção democrática (não esquecer o papel fundamental de uma meia dúzia de padres progressistas) que se viu pelo facto, que muitos desconhecem, de que o distrito de Ponta Delgada, em 1969, teve o segundo maior resultado eleitoral (CDE), a seguir a Lisboa. O Ernesto tinha mesmo que vir a ser o pai esquecido da nossa revolução democrática!

Pelo papel especial dos Açores, uma das prioridades que devia ter havido era a de mandar para lá os melhores quadros democráticos. Melo Antunes era indispensável cá em Lisboa. A minha geração estava estabelecida e os partidos ou movimentos em que militávamos não entenderam essa prioridade. O meu caro amigo António Borges Coutinho viu-se isolado, com alguns jovens companheiros politicamente inexperientes. Os potentados locais, perante o impulso popular inicial, souberam usar o independentismo, como, uns dois meses depois, no continente, souberam chamar a si o conservadorismo católico. O independentismo, que talvez tenha existido na cabeça estranha do dr. José de Almeida, foi apenas uma bandeira que usou dois leit-motif, o do autonomismo, louvável, e o do fascínio pela velha emigração americana, numa mistura bizarra de autonomia e de dependência em relação aos EUA. Só dois exemplos. G. P., meu antigo colega de liceu, tido como agente da CIA e familiar colateral de uma altíssima figura politica açoriana, contactou-me, em nome de uma (obscura) instituição americana, para fundar com todo os dólares uma universidade nos Açores que veiculasse os valores americanos. E o actual líder do PSD/A não conhecerá histórias do seu pai, desse tempo, sobre o envolvimento do consulado dos EUA, de que ele era o principal funcionário? Mas já vinha de trás. Há uma célebre série de artigos de Mota Amaral, no Diário dos Açores, era ele deputado marcelista, advogando a monocultura da vaca com exportação preferencial para os EUA. Não se lembram?

Não tenho tempo agora para explicar o que era a crise da lavoura açoriana no fim dos 60 (o valor das rendas parasitárias, o preço dos adubos e das rações depois da crise do petróleo, a concorrência das exportações bovínicas da Argentina e outros países, e muito mais). Perante a inoperância e alheamento do governo central em relação aos Açores, pelo envio para lá dos oficiais spinolistas e outros que não mereciam confiança, e principalmente pela colocação como comandante militar do inefável Gen. Altino de Magalhães, um produto tópico das contradições do MFA, os caciques locais herdeiros do secular senhorialismo açoriano (apesar dos corvinos e de Mouzinho, relembro), conseguiram arregimentar algumas centenas de lavradores para a manifestação do 6 de Junho, que Altino aproveitou para demitir Borges Coutinho. Mas vejam a lista dos presos dos dias seguintes, quando o governo reagiu (e que Altino libertou): aí está o escol da reacção e dos interesses açorianos feitos durante anos e anos à sombra do protectorado salazarista.

Há uns três anos ou coisa que valha, o Presidente Jorge Sampaio resolveu dar-me uma condecoração, não sei porquê. Fiquei satisfeito em recebê-la. Mas muito maior foi o gosto de ver sentado ao meu lado, tantos anos depois, o meu estimadíssimo amigo António Borges Coutinho a receber a Ordem da Liberdade.

Em conclusão, meus jovens amigos patrícios: celebrem o dia do Espírito Santo, que está nas nossas raízes culturais mais profundas, celebrem o 2 de Março, mas pensem um pouco sobre o 6 de Junho!

Março 28, 2004

O 6 de Junho nos Açores e o 25 de Novembro 

Voltando ao hábito dominical de açorianices, lembro que, há uma semana, fiquei de voltar ao 6 de Junho e, em geral, ao “verão quente” nos Açores. Não é tarefa fácil e quase tinha decidido faltar à minha promessa. É que envolve reminiscências pessoais difíceis de explicar e também porque me falta ainda distância, apesar dos trinta anos que esta história já conta. E desculpem-me, que isto vai ter que ser muito longo para um “post”, mas não é assunto para frases feitas ou simplificações. Quem não tiver pachorra, imprima e leia com tempo.

Comecemos pela crítica feita ao meu texto anterior sobre o 6 de Junho, por Carlos Afonso, muito generalizada: “confesso-te que nunca compreendi a invasão da Hungria, nunca aceitei a destruição da Primavera de Praga, nunca percebi nem aceitei qualquer forma de totalitarismo nem religioso nem político. (…) Já nessa altura todos sabíamos o que era o estalinismo, já nessa altura sabíamos dos gulag, já nessa altura se conheciam o que eram as “amplas liberdades”.

Vamos separar, porque clarifica, as questões gerais e mais antigas, como a Hungria, a Checoslováquia, o estalinismo e os gulags, do mais conjuntural, como o papel dos comunistas no chamado PREC (não gosto do termo, mas lá vai). Um jovem comunista dos anos 60, por exemplo, um universitário, obviamente que conhece o passado terrível do estalinismo. Mas isto não significa que, até usando o próprio marxismo-leninismo, não tenha a compreensão dos factores de origem do que considera uma perversão transitória do ideal comunista. Sabe que Khrustchev denunciou corajosamente todos os abomináveis crimes de um Stalin provavelmente psicopata e tudo lhe indica que a situação vai ser corrigida. A imprensa ocidental diz que não, que continua tudo na mesma. Mas, nessa época de guerra fria, todos faziam propaganda e contra-propaganda, não se podia ter uma opinião objectiva que não fosse com os próprios olhos (é curioso ler, por exemplo, o que uma mesma revista americana, ou viceversa, escreve sobre o outro pais entre 19441 e 1945 e depois, nos anos 50 ou 60). Entretanto, esse jovem comunista que, não esqueçamos, é-o por um grande ideal de justiça social e, na prática, porque é a forma mais consequente de combater o salazarismo e ganhar a liberdade, não pode separar, em Portugal, comunismo e liberdade, mesmo que isso tenha que ser uma originalidade da futura revolução portuguesa. Ele até sabe que o PCP foi mal visto por Moscovo durante quase toda a sua história e que, portanto, é provavelmente diferente. Lê na imprensa do partido condenações vigorosas do estalinismo e profissões de fé na liberdade e na democracia. Sabe, das leituras dos clássicos, que isto está no centro do pensamento de Marx. Pela compartimentação da clandestinidade, só conhece 3 ou 4 camaradas, que pensam como ele, e que são pessoas excelentes, lutadores de grande coragem (amizades para toda a vida). Não conhece nada sobre os vícios inevitáveis do “funcionalismo”, dos quadros profissionais clandestinos.

Entretanto, há a Checoslováquia. Aí tudo se baralha. Já não se está em estalinismo e a primavera de Praga parece ser a concretização do reencontro com os ideais do comunismo. Para grande crise pessoal de muitos, depois de oscilações perturbadoras, a direcção do PCP alinha fielmente com a condenação de Dubcek e com a invasão. Caminho único para esse jovem e, como só pode vir a saber depois do fim da clandestinidade, também de um bom número dos seus amigos: a rotura com o PCP.

Vem o 25 de Abril. Ele e os tais seus amigos são convencidos, por longas conversas com dirigentes partidários, de que a prioridade é a revolução, de que a especificidade programática do partido (respeito integral pela democracia e pelas liberdades, luta social tenaz e consequente mas legal, tudo como bem claro no programa) é para se respeitar e que agora, terminada a clandestinidade, há condições para uma discussão interna aberta sobre problemas passados, como o da Checoslováquia. O empenhamento politico subsequente nem lhe dá tempo para grandes reflexões ideológicas, embora haja e reconheça alguns sinais perigosos de alerta, como o cerco à Assembleia, que o Carlos Afonso refere, acertadamente. No entanto, manda a honestidade que se diga, no ardor revolucionário, esse jovem que estamos a tomar como exemplo literário e muitos seus amigos de ideologia “pura”, de mentalidade aberta, impregnados do humanismo de Marx (não acreditam? leiam-no!), erraram muito, foram sectários, puseram em risco velhas amizades, esqueceram a velha e tão positiva unidade antifascista (mas também os do outro lado a esqueceram, note-se bem).

Continua Carlos Afonso: “A vivência num meio pequeno do PREC, embora na altura eu não vivesse cá, levaram à reacção, a meu ver compreensível, dos que acreditando num processo democrático, viram as suas aspirações frustradas pelo assalto ao poder, sem qualquer legitimidade, de uma esquerda com reconhecidas ambições totalitárias e de pessoas que, dizendo-se democratas, atropelavam todos os processos democráticos, pelo único objectivo de atingirem o poder, fosse como fosse. (…) Que uma direita totalitária se tenha juntado aos verdadeiros democratas não tenho dúvida. (…) As “tentações totalitárias” que muitos notáveis homens de esquerda combateram em Novembro, foram as mesmas que os Açores iniciaram em Junho.”

Se, antes, a história do jovem comunista de que falo era fácil de contar, agora começa a ser muito difícil, porque os acontecimentos estão longe de serem lineares, como o meu caro Carlos escreve. Vou passar então para os factos. Por razões que não vêm ao caso, creio que os conheço bastante bem.

Não vamos longe nesta discussão se não tivermos presente que houve múltiplas linhas cruzadas no comportamento da “esquerda” a partir do 11 de Março. Gonçalvistas e Copcon, na área militar, PCP, MDP, MES, maoístas, na área partidária, as iniciativas mais diversas de trabalhadores desenquadrados, de moradores, estão muito longe de constituir uma movimentação organizada, coerente e muito menos controlada. Não tendo nada a ver hoje com o PCP, faço-lhe justiça de, muitas vezes, ter sido completamente ultrapassado pelos acontecimentos e de que “assim se vê a força do PC” foi um slogan que, entre muitas outras coisas, contribuiu para uma ideia da sua grande capacidade de direcção do movimento revolucionário, o que não é verdade.

Mas as mesmas linhas cruzadas também havia no lado que havia de triunfar no 25 de Novembro, como o Carlos reconhece. O grupo dos 9 e o PS obviamente que não tinham qualquer identidade com o ELP, com a direita militar, com os caceteiros dos assaltos às sedes de esquerda, com os independentistas das ilhas ou até com um MRPP que, objectivamente, sempre fez o jogo da direita (por isto, o percurso de Durão Barroso não tem nada de surpreendente). Mas, se se acusa o PCP, o MDP ou o MES de deixados levar pelos extremistas, porque não lembrar que o PS tinha aceitado muito do que era de oportunistas e de fiéis envergonhados do salazarismo e que o grupo dos 9 incluía um ELPista como era o nosso semi-patrício Canto e Castro ou pessoas tão democraticamente duvidosas como Jaime Neves ou os restos do spinolismo (Azeredo e outros), a léguas da firmeza democrática de Melo Antunes, Vasco Lourenço, Pezarat, Charais ou Vítor Alves?

E o ELP, agora que tanto nos preocupamos com o terrorismo? Esteve no centro de todas essas que chamo as linhas cruzadas de direita. As suas vítimas mortais, até uma criança de meses, não nos devem estar sempre tão presentes como os mortos de Atocha?

Depois, há a ideia feita de que as posições do PCP e próximos, e do PS e grupo dos 9 eram as que estavam em confronto mais forte. Nada mais falso. O PCP, mas principalmente o MDP/CDE (neste caso, garanto a 100%) e uma ala mais serena do MES, com pessoas hoje bem conhecidas do PS, estabeleceram contactos frequentes com o grupo dos 9 e quase se chegou a um acordo, em termos que julgo conhecer. Mas ambos os lados ficaram presos pelas alianças, reais ou fácticas em que estavam enleados. Tristemente, o homem a quem devemos muito no 25 de Abril, Otelo, teve um papel desastroso nesta fase (lembram-se da tentativa do governo Fabião, em que tantas esperanças tive e que Otelo torpedeou?).

E quantos 25 de Novembro houve ou haveria? O que conhecemos acabou por, felizmente, conduzir-nos à democracia estabilizada. Mas era esse 25 de Novembro que a direita pura e dura desejava? Era este o que desejavam os próceres do 6 de Junho? Porque é que os oficiais para-quedistas foram para a Cortegaça, ali bem perto do Porto? Qual era o 25 de Novembro de Pires Veloso, do cónego de Braga e dos seus amigos elpistas? Era só um mesmo 25 de Novembro que tinha o apoio dos serviços secretos dos EUA, da Alemanha e outros, ou eram vários 25 de Novembro? E, no outro lado, na acção dos para-quedistas em Monsanto e nas outras bases, sempre ditas como dirigidas pelo PCP, porque é que Costa Martins não consegue um entendimento, enquanto o PCP mandava a máxima contenção às suas forças operárias e – testemunho-o – os seus dirigentes passaram o dia a explicar a grupos de militantes exaltados porque não deviam comprometer suicidariamente o partido naquela aventura? E, se a esquerda responsável, discordâncias politicas à parte, não fosse afinal distinguível de todo o resto folclórico (mas folclore perigoso), como compreender as conversas razoáveis tidas durante todo o dia entre Costa Gomes, Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho (os fuzileiros não saíram!), Melo Antunes, Martins Guerreiro e outros, que permitem, à noite, a célebre declaração de Melo Antunes, talvez o acto mais corajoso da sua vida?

Mas não é linear, como diz o Carlos, que o 25 de Novembro tenha sido a conquista da democracia pela esquerda genuína em que me parece que ambos nos situamos. A esquerda que ele enaltece, pelo menos em termos das suas figuras militares a quem tantos devemos, teve uma vitória de Pirro. O que é hoje a nossa democracia não é o que desejavam. Não vou citar nomes, mas, desde logo a seguir ao 25 de Novembro e ao longo destes anos, quantos azedumes políticos tenho ouvido a proeminentes abrilistas do grupo dos 9, incluindo o seu símbolo! Veja-se só o que aconteceu às suas carreiras militares.

Isto já vai muito longo, é mais um artigo do que um “post” e tenho que concluir, afinal, no que se refere ao 6 de Junho. Nesta rede complexa de intriga politico-militar, parece-me injusto para aquilo que era o fraco PS açoriano de então ligá-lo ao 6 de Junho e ao verão quente. Tive um modesto papel na protecção e saída de Ponta Delgada de Carlos Fraião e outros dirigentes de esquerda. Digo, pela primeira vez, que tive ajuda de alguns elementos do PS, contra toda a animosidade do gen. Altino de Magalhães e dos seus oficiais próximos. Continuo convencido de que o 6 de Junho foi uma instrumentalização da direita bruta, talvez não organizada então em nenhum partido, mas representante dos interesses retrógrados que, logo a seguir, se transfeririam para outra forma de propaganda, a independentista, seguindo de perto, ou até julgo que antecipando, as acções violentas e terroristas contra os partidos de esquerda , que certamente o Carlos não aprova. Não creio que os meus bons amigos açorianos do PS façam bem em associar-se ao 6 de Junho. Como disse, há muitos 25 de Novembro. De que 25 de Novembro é que o 6 de Junho foi precursor?

E, já agora, que é feito do tal jovem comunista desde 1964? Progressivamente, fez a sua “limpeza” ideológica: primeiro o “socialismo real”, depois o leninismo, ficando-se pelo que de mais essencial e humanista tem o marxismo “puro”. Por isto, saiu silenciosamente do PCP, pela segunda e definitiva vez. Fez um esforço de coerência entre valores afectivos essenciais e a compreensão do mundo de hoje e nem sequer se gabou de ter antecipado em mais de dez ou vinte anos as mediáticas cisões de perestroikos, de renovadores e do que ainda está para vir. Conheço-o bem, é o meu melhor amigo, mas o melhor amigo é coisa que fica sempre entre um.

A jangada de pedra de Mota Amaral 

Até parece de propósito, em relação ao meu “post” de hoje, a entrevista de Mota Amaral à Única do Expresso.

Pergunta: “Daí a sua participação no movimento independentista açoriano?”

Resposta: “Nos Açores, a vitória do PPD nas eleições de 75 confirmou a opção por uma linha reformista. Mas, em Lisboa, o processo revolucionário acelerava, temendo-se uma ditadura dominada pelo PC. Ora, os Açores tinham vivido séculos virados para a América (nota JVC: muito duvidoso; as primeiras relações comerciais, muito reduzidas, são do ciclo da laranja, no séc. XIX e, antes, apenas as de portos de escala), com laços reforçadíssimos pela emigração. Se, porventura, em plena Guerra Fria, Portugal fosse parar ao outro lado – o do José dos Bigodes, como se chamava ao Estaline (nota JVC: linguagem estranha, para o estilo de Mota Amaral) – nós íamos para o outro. Não era bem sermos o 52º estado dos EUA, mas a ideia de que, se o continente estava perdido, nós salvávamos na nossa jangada”.

Não se pode ser mais claro. O independentismo era uma clara tontice inviável para políticos experientes e inteligentes como Mota Amaral ou mais um desbocamento do seu grande amigo Alberto João. Por isto, é melhor falar de separatismo, mas para trocar a pátria secular, a que os açorianos tanto deram ao longo da história, por uma ligação aos EUA, fosse a que título fosse. Uma questão de regime justifica obviamente a luta politica e os açorianos deram disso exemplos históricos, mas, por mais importante que seja, não se sobrepõe ao ser-se português desde há cinco séculos e meio. Não se troca de pátria como se troca de camisa.

E Mota Amaral tem um lapso freudiano ao falar de 52º estado. Qual é o 51º?! Ou estaria a pensar nos seus célebres artigos de cerca de 1970, no Diário dos Açores, a propósito de Porto Rico, em que já revela uma miragem americana. O que era senão neocolonialismo encapotado a sua defesa vigorosa do projecto da ITT (sim, a do Chile) de escandalosa “monocultura da vaca”, em escala incomparável com o que depois, infelizmente, se veio a verificar?

Abril 04, 2004

As festas do Espírito Santo nos Açores 

Regresso hoje virtualmente aos Açores para uma evocação que talvez até tenha mais interesse para muitos leitores continentais que, sem as conhecerem, sabem ser as festas de Espírito Santo um elemento emblemático da identidade cultural açoriana. Daí o florescimento de festas do Espírito Santo, com algumas adaptações pitorescas, nas numerosas comunidades açorianas da Califórnia, da Nova Inglaterra e do Canadá. Como pormenor simbólico, note-se que o hino oficial dos Açores é uma versão de um tradicional hino do Espírito Santo e que o feriado regional é a segunda feira de Pentecostes. No entanto, sendo um importante traço identitário de todo o arquipélago, há grandes variações nas festas, de ilha para ilha, mas com uma matriz comum. É um bom exemplo de como a variedade não prejudica, antes enriquece, um património cultural comum.

O culto do Espírito Santo parece ter origens nas grandes conturbações milenaristas, com a ideia da proximidade de uma idade do Espírito Santo, mas veio a tomar forma mais aparente por acção dos franciscanos espirituais, perseguidos na França e na Itália (recorde-se “O nome da Rosa”) mas bem acolhidos em Aragão. Daí ser ideia bem implantada que o culto do Espírito Santo teria vindo para Portugal com a Rainha S. Isabel. Ao fim de tantos séculos, e em parte por oposição ou, pelo menos, reserva por parte da Igreja, sobreviveu no continente e no Brasil (aqui, até mais tarde e mesmo até hoje) apenas vestigialmente, em algumas manifestações localizadas, como a festa dos tabuleiros em Tomar ou a festa do Espírito Santo do Penedo, em Sintra. Mas há notícia de festas do Espírito Santo em muitos outros lugares ainda nas duas primeiras décadas do século passado, principalmente ao longo do vale do Tejo, e mais em particular no Alto Tejo. É uma região que alguns referem como possível origem importante do povoamento açoriana, principalmente a de S. Miguel.

As festas de Espírito Santo têm um componente importante de humildade e igualdade, próprias das ideologias milenaristas e utopistas, de novo império, retomadas por uma espécie de “filosofia nacional”, de destino privilegiado, no discurso sobre o quinto Império do Padre António Vieira e até, tão recentemente, por saudosistas como Agostinho da Silva ou António Quadros. Esse carácter de igualdade é simbolizado pelas versões mais antigas das festas, hoje desaparecidas, como as dos Impérios dos Nobres, em que estes coroavam simbolicamente um pobre como detentor de um poder que, de facto, nada significava na realidade social da época. A coroação, hoje de uma criança, com o seu cortejo e a sua cerimónia religiosa, continua a ser central em todo o rito e a coroa de prata do Espírito Santo, o grande símbolo das festas – assim como a bandeira de adamascado vermelho com a pomba em prata – está presente em todas as casas açorianas (e é um bom negócio para as ourivesarias).

Disse cerimónia religiosa, que há pelo menos dezenas de anos se passa na igreja e com a participação do clero, mas nem sempre foi assim. Por razões que não conheço a fundo, mas que julgo relacionarem-se com a reserva da Igreja pós-tridentina em relação a tudo o que não fosse o ortodoxismo religioso, as festas do Espírito Santo que chegaram até nós são essencialmente populares e marginais à Igreja. Até nos locais emblemáticos de culto, os impérios ou teatros, que todo o visitante dos Açores conhece, principalmente, pela sua profusão e riqueza de arquitectura popular, na ilha Terceira. São pequenas capelas, normalmente de um estilo barroco em versão popular, com uma grande paleta de cores, encimadas pela pomba do Espírito Santo em vez da cruz. Na altura das festas, abrem-se de par a par as suas portas, não para que entrem as pessoas, que lá não cabem, mas para expor os símbolos, coroa e bandeira, num trono de vários andares exuberantemente decorado com flores e castiçais valiosos.

O outro elemento simbólico da fraternidade de Espírito Santo é o da oferta a todos os pobres da refeição das festas. O imperador, eleito anualmente – ou melhor, leiloado pela melhor oferta de grande festa, muitas vezes para pagamento de uma promessa, outras por ostentação de riqueza de emigrante regressado – tem a obrigação de fornecer essa refeição a todos os pobres do seu império, que tanto pode corresponder a uma freguesia (nos Açores não se diz aldeia) como até a uma rua da cidade, como era na minha meninice na rua do Saco em Ponta Delgada, sendo eterno imperador, sem competidores, o mestre António do Rego.

Essa distribuição de alimentos varia um pouco de ilha para ilha. Em todas é constituída basicamente pela “pensão”: carne, pão, massa sovada e vinho. Mas em S. Maria há várias refeições de Espírito Santo e na Terceira há também o bodo de leite, em que se traz as vacas, engalanadas, para serem mungidas na praça da freguesia. A distribuição de alimentos não se limita aos pobres. Os membros de cada irmandade, como eram os meus pais, pagam ao longo do ano uma quota (recolhida por um grupo que percorre o império com a sua bandeira do Espírito Santo) para também receberem a pensão na altura das festas. Ficavam também com o direito de receberem em casa, durante uma semana, os símbolos do Espírito Santo, em troca de um terço diário.

A distribuição das pensões é pitoresca, mas não sei se ainda se faz como era na minha meninice. As vitualhas iam em carros de bois, daqueles bem velhos, com rodas maciças de madeira, todos enfeitados com grinaldas e arcos de flores de papel, com uma grande roda frontal de flores de papel brilhante de várias cores. Os próprios bichos, com a sua pachorra, também iam bem enfeitados. À frente, os foliões, um quarteto de tocadores de rabeca, viola da terra, pandeireta e ferrinhos, vestidos com uma opa vermelha toda às ramagens e com uma mitra à bispo, do mesmo tecido. Atrás, na Terceira, ia outro carro de bois enfeitado com ramos de faia, em que se acumulava a malta miúda a fazer macacadas. Por isto me dizia a minha avó, quando eu julgava dizer alguma coisa com graça, “ainda hás-de ir no carro das faias”.

PS – Desculpem este texto tão longo para um blogue. Como dizia o Pe. António Vieira numa carta, “não tive tempo para a escrever mais curta”.

Abril 16, 2004

Os meus professores de matemática 

Temos falado sobre o ensino da matemática no secundário. Também, assunto diferente, sobre a compatibilização entre um ensino para todos os alunos e um ensino que estimule os melhores. Juntando ambas as coisas, lembrei-me dos meus professores liceais de matemática. Fora um ou outro de arribação, tive dois, o mais diferentes que se pode imaginar.

A princípio, Lúcio Miranda, natural de Goa mas já há muito fixado em Ponta Delgada, tendo mesmo sido professor muito estimado do meu pai. Foi meu professor pouco tempo, porque as suas simpatias pela integração de Goa na Índia valeram-lhe a demissão e o embarque forçado num navio, escoltado pela PIDE. Era um homem inteligentíssimo, segundo todos os que o conheceram, de uma placidez oriental e de grande paciência. Por isto, para ensinar eficazmente a todos, não podia transformar o ensino da matemática numa grande aventura intelectual, quase lúdica, como eu sempre gostei (até dos problemas dos tanques e das torneiras na instrução primária – lembram-se?). Ensinando muito bem e para todos, dava-nos as bases sólidas para aventuras pessoais posteriores e fazia aquilo que parece hoje tão difícil: mostrar que a matemática é simples, que está em toda a nossa vida e que até pode ser muito divertida. No entanto, o progresso matemático individual, a tal aventura, em crianças do então primeiro ciclo, não era fácil sem um motor. Ele não podia, com a sua responsabilidade de satisfazer todos. Felizmente, tive um pai louco por matemática e que foi esse motor de que eu precisava.

Depois, tive como professor o oposto, Mário Rego Costa, uma “personagem”. Com as mesmas qualidades de inteligência e de paixão pela matemática, mas totalmente desprovido da paciência de Lúcio Miranda. Nas chamadas ao quadro dos alunos com mais dificuldades, era um espectáculo vê-lo: gemia ou urrava, dava patadas no chão, quando não descarregava o ponteiro nas costas do coitado. Já para os bons alunos, era o maior estímulo. Como era muito expressivo, parecia um treinador a ver correr o atleta: balançava-se para a frente, sorria de orelha a orelha e só dizia “vai, vai!”. Lembro-me, por exemplo, de repetidamente se passar o mesmo comigo. Na demonstração de um novo teorema que ele nos propunha ou na resolução de um problema, vulgarmente eu saltava alguns passos, porque óbvios. Ele ria-se perdidamente, dava-me palmadas nas costas, mas no fim dizia: “mas não faças isto, que eu depois vou ter que ensinar os outros”. Acho piada, mas obviamente que concordo que era um péssimo pedagogo, mesmo que, no que pessoalmente me diz respeito, tenha ficado uma das mais gratas recordações do liceu.

Abril 18, 2004

Três poemas de Armando Cortes-Rodrigues 

Podia publicar alguns poemas de ACR/Violante de Cysneiros, no Orpheu. Mas estes dizem-me mais e retratam-no melhor, do tempo em que em que, eu muito menino, ele me contava histórias em casa do meu avô.

– I –

– I –

E deitei mão do arado. Fui-me à vida!
A terra, palmo a palmo, arroteei,
E a semente que, pródigo, espalhei,
Mais fresca despontou e mais garrida.
Pobres aves do céu, vinde e comei!
A mesa é posta, olhai que bem convida.
Tanta fartura seja repartida
Convosco, irmãs, segundo é justa lei.

(Antologia de Poemas, 1956)

– II –

Naquela paz da tarde adormecida,
Já quando o céu se funde com a serra
Logo ressurge incerto e cresce e erra
Todo o mistério intérmino da vida.
Que força de silêncio desmedida
Em seu pensar recôndito se encerra?!
Dos lábios toda a fala se desterra,
Cala-se a natureza recolhida.
Palavras não as há. Anda no ar
Esta prece que vai da serra ao mar
E vai dos altos ramos à raiz.
Que palavras dirão seu pensamento,
Se o nosso mais perfeito sentimento
É sempre o que se sente e não se diz?!

– III –

E quando as sombras surgem à tardinha
Pelos cantos do lar e a casa inteira
Tem um ar de mistério, na maneira
De alguma aparição que se avizinha;
Quando se fecha a porta hospitaleira
E se peneira a luz, como farinha,
Tão alva, tão diáfana e fraquinha
Que vagamente as coisas empoeira;
É quando, em lar de pobres, a candeia
– Mãos de luz a chamarem para a ceia –
Na modorra das brasas é acesa
E as sombras não se vão à revelia
Antes juntas em nossa companhia,
Ficam bailando em derredor da mesa.

(Cântico das Fontes, 1943)

Armando Cortes-Rodrigues 

O meu leitor AVC, comentando a minha entrada sobre os nossos professores de matemática, sugere-me que fale também do Dr. Armando Cortes-Rodrigues (ACR), nosso professor de francês e espantosa personagem. Como ele dizia, nasceu para ser poeta, em redondilha maior bem medida: “Armando Cortes-Rodrigues / de Vila Franca do Campo”. E foi-o, toda a vida, embora só inicialmente com destaque nacional, quando foi membro do Orpheu, publicando com o pseudónimo de Violante de Cysneiros. É também muito conhecida a sua correspondência com Fernando Pessoa. Alguns anos depois, estabelecido como professor em Ponta Delgada, afastou-se do modernismo e cultivou ao longo da vida, embora com fases distintas e características, uma poesia “simples” (que me perdoem os especialistas; um dia, a propósito de Cesário, tenho agendado falar de “arte simples”), ecologista avant la lettre, um popularismo não populista, e um panteísmo poético com um certo espírito franciscano, que ele aliás referia com frequência. ACR dizia de si ter um temperamento religioso herdado da sua ascendência irlandesa, mas também confessava a sua grande sensualidade. Mas deixemos o ACR poeta. Talvez amanhã publique um ou dois dos seus poemas.

Gerações e gerações passaram pelo ACR professor e dele receberam um excelente ensino de francês mas, também, a experiência de episódios inesquecíveis. Temperamental, fantasioso, com um humor imenso mas também igualmente irascível, gravou na minha memória recordações incríveis. Tinha grandes flutuações de disposição, com sinais paradoxais. Quando estava bem humorado, ia para as aulas batendo bem com os pés no chão, gritando pelo contínuo e dando um grande berro para nos sentarmos. Se mal o ouvíamos chegar e entrava na aula com um sorriso de orelha a orelha, já se sabia que o caldo estava entornado e podia chegar a tabefe geral. Nestes casos, as aulas eram boas, porque ele não descurava o ensino, mas nada chegava às aulas dos dias bons. Começava logo por gastar boa parte do intervalo prévio a escrever no quadro a matéria. Mas não só; como os meus antigos colegas se lembram bem, era uma maluqueira, porque o quadro ficava também todo cheio de flores, anjos, sei lá que mais e, obrigatoriamente, um grande gato.

Um bom exemplo da sua imprevisibilidade, de que o PSL e todos os nossos colegas de turma certamente se lembram, vem do facto de este meu amigo usar habitualmente um fato de bombazina (a propósito, ACR mandava sempre fazer para si fatos de estamenha rústica regional, que hoje provavelmente já não se tece). Mas voltemos ao fato de bombazina do PSL, que fazia sempre com que ACR dissesse: “o menino da pele de diabo que venha ao quadro”. Chegou o carnaval e o pobre do PSL achou que o Dr. ACR devia apreciar muito, ao entrar na aula, vê-lo com uma máscara de diabo. Acho que nunca mais vi uma tal bofetada!

São tantas dele, mas agora recordo uma habitual, quando estava bem disposto. Sentava-se à secretária, silencioso, olhava muito para nós e, depois dizia: “chefe de turma, vá chamar o Sr. Manuel para trazer o livro de turma”. Depois de mais um religioso minuto de silêncio, “número 1, vá chamar o chefe de turma que foi chamar o Sr. Manuel para trazer o livro de ponto”. Outro minuto e “número 2, vá chamar o número 1 que foi chamar o chefe de turma que foi chamar o Sr. Manuel para trazer o livro de ponto”, e por aí fora. Mas ai de quem se risse. Torcíamo-nos como com cólicas, mas um risito que fosse valia bofetão.

Mas não posso deixar de contar a minha história da primeira aula de liceu com ele, tinha eu nove anos. É que a minha relação com o Dr. ACR vinha muito de trás. O seu maior amigo, e vice-versa, era o meu avô José da Costa. Partilhavam serem ambos poetas, dominando a escrita sonetista, ambos latinistas, com grande cultura humanística. ACR mandava-lhe sempre os poemas para critica, mas dizendo sempre: “mas olha, José, que se me criticas por a tónica não estar na sílaba certa ou por qualquer erro de gramática, nunca mais te falo!”. Tenho guardada religiosamente, para editar um dia, a imensa correspondência entre os dois, quase toda escrita num magnífico latim macarrónico (sabem o que é? já leram o Palito Métrico?), desde coisas sérias até simples combinações de grandes patuscadas, com o seu comum amigo e grande cozinheiro, o Prof. Teotónio, de Vila Franca. Eram homens abadianos, em que a cabeça, o coração e o estômago estavam em feliz equilíbrio. Creio que herdei isso do meu avô.

Mas isto vinha de eu ter falado da minha primeira aula. Habituadíssimo a essa impagável figura, sempre muito carinhoso comigo desde que me conheço, lá me sentei todo ufano na carteira. Começou logo a aula por me chamar à secretária, ficou a olhar-me interminavelmente, acabou por pôr um pé em cima da secretária e disse-me, com voz cava e séria e com palavras que ainda hoje juro que são textuais, tanto me marcaram: “Menino Costinha, veja esta bota. Se o menino não se portar bem, esta bota dá-lhe um tal pontapé no cu que o menino voa até casa do seu avô para lhe ir fazer queixinha!”.

Meu querido Dr. Armando, quase avô, deves estar hoje com o teu amado S. Francisco, falando de ribeiros mansos, pássaros e flores, bebendo uma gotinha à saúde do Padre Eterno. E provavelmente junto daquele burrinho do postal que me ofereceste num dia de anos, em que estás a conversar bem risonho com o burro do presépio.

Abril 26, 2004

Os azuis açorianos e “um pouco mais de azul” 

Esta entrada é dedicada à minha amiga um-pouco-mais-de-azul, com quem, entre outras coisas, partilho o gosto muito especial pela cor, mesmo na coisas triviais, os casacos, as camisas, as camisolas, as gravatas que raramente uso, e até, como se vê, o blogue e as minhas páginas. Estava a trabalhar na preparação de uma palestra que vou fazer em Ponta Delgada, sobre a articulação entre a educação universitária e a formação profissional (educação recorrente, aprendizagem ao longo da vida, etc., um tema hoje interessantíssimo), quando me veio à ideia o azul micaelense e que a “1poucomais” merecia um desvio para este devaneio.

“1poucomais”, combine com a sua belíssima filha (a propósito, guardo no meu Mac o seu belo retrato mas não sei como ela se chama) uma ida à minha terra para verem azuis como nunca viram: o do mar e o do céu. Eles não esgotam a belíssima paleta de cores açorianas, que vive principalmente de todos os imagináveis verdes da paisagem, com os azuis e rosas das hortênsias e os rosados-lilás ou mesmo púrpura das azáleas, bem como do contraste do alvadio da cal e do cinzento quase negro do basalto. Mas acho que uma pessoa de boa sensibilidade cromática precisa de ver os meus azuis de infância, os que provavelmente notou Gaspar Frutuoso, certamente Antero. Vou levar comigo a minha câmara digital para fazer só esta experiência: fotografar céu e mar, fotografá-los aqui na minha linha do Estoril e publicar essa experiência. É uma entrada neste blogue, na próxima semana.

E não falo só como amador diletante. Lembro-me muito bem de, sendo eu miúdo, ouvir o meu conterrâneo e amigo, bastante mais velho e já estudante de Belas Artes, José Nuno Câmara Pereira, me chamar a atenção, em relação a umas aguarelas suas de marinas, para essa evidente diferença de azuis. Isto também é insularidade.

Ainda uma nota pessoal. Sou muito sensível às cores e à visão, em geral. Na juventude, tive alguns devaneios de desenho e pintura. Além disto, creio que esta minha sensibilidade á luminosidade e à cor tem alguma coisa a ver com o facto de o meu avô, de quem já tenho falado, “intelectual” de primeira gema, ter morrido quase cego e eu ter vivido o seu sofrimento (valia-lhe uma memória espantosa, porque, professor de latim, sabia de cor a Eneida, as odes de Virgílio, as Catilinárias e todos os outros clássicos latinos). Vou transmitir, acerca disto, uma experiência pessoal de cinéfilo, desde os tempos de jovem cineclubista. Tenho a colecção completa dos filmes de um dos meus expoentes, Visconti. Agora que já os vi uma meia dúzia de vezes, ponho-os a passar sem som, só para ver a construção dos planos, a encenação, a luz e, principalmente, o genial tratamento da cor, dos pérolas intimistas aos vermelhos dos salões. Mas também o mesmo com Coppola e o seu genial tratamento dos ocres ou da paleta entre os amarelos e os castanhos (Cotton Club e o Padrinho III).

Maio 02, 2004

Um grande hotel de charme em S. Miguel 

Os Açores estão em fase de “boom” turístico, a meu ver muito bem gerido no sentido do turismo de qualidade (sem prejuízo de acções específicas para jovens atraídos pela natureza, pela pesca submarina oi pela observação das baleias). O turismo está a ser dominado por um turismo diversificado de verão, mas principalmente por um turismo de todo o ano, de qualidade, de três voos semanais, com escandinavos ricos e de meia idade, com exigências culturais e de qualidade. A cada vez que vou lá, de meses a meses, vejo em Ponta Delgada novos hotéis, mas discretos e por vezes aproveitando as velhas casas aristocráticas. Mas a tendência, inteiramente compreensível, é para os hotéis convencionais de qualidade, tendo-se adoptado, em geral, o padrão das quatro estrelas. É num desses hotéis, de muito boa qualidade, que normalmente os meus hospedeiros me alojam.

Desta vez, resolvi outra coisa, para certo espanto do meu convidante. Pedi-lhe para ficar no Hotel de S. Pedro, que não está na moda. Os bons hotéis estavam cheios, principalmente com os escandinavos ricos e de meia idade que hoje voam para S. Miguel, o de S. Pedro praticamente vazio. É uma pena. Há de, facto, um desajuste. É que foi entregue à gestão da escola de hotelaria, funcionando com base nos seus alunos, muito esforçados mas, obviamente, ainda inexperientes. É um problema que eu creio que tem que ser resolvido, porque o Hotel de S. Pedro é um instrumento turístico demasiadamente valioso, como magnífico “hotel de charme” que é. Um hotel destes é uma mais-valia para o turismo da região e não pode ser, ao mesmo tempo, um hotel escola. Precisa de uma exploração de alta competência, especialmente na cozinha. Julgo que era caso a pensar o Governo Regional adquiri-lo e concessionar a sua exploração a uma empresa de alta qualidade de hotelaria.

Para mim tem também um encanto muito especial porque acompanhei quase diariamente a sua construção, acompanhando o meu pai que dela estava encarregado, por “requisição” à empresa feita por Vasco Bensaúde. Sendo ele e o meu pai dois perfeccionistas de gosto esmerado, juntaram-se a fome e a vontade de comer, para se fazer um hotel com pormenores de tal requinte que muitos turistas nem se aperceberão. O Carlos Afonso é que, por via do seu avô, um dos administradores do que era a maior fortuna portuguesa, provavelmente conhecerá histórias engraçadas dessa personagem interessantíssima que foi Vasco Bensaúde.

O hotel foi reconstruído e restaurado com grande fidelidade a partir do que restava, ainda muito, da casa de 1812 do primeiro cônsul americano nos Açores, Thomas Hickling, uma casa magnífica que, como convinha a um cônsul interessado na navegação, se debruça para o mar e o porto. O que torna única esta reconstrução é o rigor e riqueza com que foi feita, respeitando integralmente o estilo da época, o chamado georgiano colonial (americano). Todo o mobiliário, até o dos quartos mais simples, é em mogno americano e desenhado pelo meu pai por cópia à vista de móveis de museu da Nova Inglaterra ou de muitos livros sobre mansões coloniais adquiridos por Vasco Bensaúde. Os puxadores das gavetas são em marfim e os ornatos dos tampos das escrivaninhas são em legítima folha de ouro. A chamada suite presidencial, onde fiquei, é uma maravilha de mobiliário e de decoração, com os seus frisos pintados a fresco e com o brasão dos Hickling pintado na parede atrás da cama. A saleta anexa, dominada pela lareira e por um magnífico sofá-cama de tom império, é uma joia da elegância decorativa anglo-americana. A pequena biblioteca é toda de edições genuínas de literatura americana da primeira metade do sec. XIX.

Mas destaco o bar, que sempre fez a maravilha da minha infância. É a cópia fiel de uma taberna da Nova Inglaterra dos princípios de 800, com a suas cadeiras típicas que vemos em alguns filmes americanos, com o balcão e os tampos das mesas em cobre batido. O requinte foi ao ponto de as portas, rústicas, em carvalho americano, serem da época, bem como as tábuas do chão e as traves do tecto, compradas de uma velha taberna americana na altura já em ruínas. Quando entro nele, estou sempre à espera de me encontrar com o capitão Ahab ou com o Ishmael.

Ainda um outro pormenor. A dúzia de arcos da entrada e do jardim tinha originalmente pedras de fecho com as clássicas caraças. Vasco Bensaúde não podia ficar por simplificações e encomendou-as por bom preço a um escultor reputado. E, com todo este requinte, que deliciava o técnico, meu pai, que tinha o mesmo gosto de Vasco Bensaúde (mas não a fortuna!), há uma história espantosa. É que o hotel esteve fechado muitos anos após a sua construção, por ofensa de Vasco Bensaúde depois de ele ter sido classificado como hotel de duas estrelas! E lei era lei: nem todos os quartos tinham casa de banho. Lembro-me de grandes discussões entre ele e o meu pai, mas ele insistia que, em jovem, tinha ficado nos melhores hotéis londrinos ou parisienses e vestia o roupão para ir tomar banho ao fundo do corredor!

E, no fim disto tudo, sabem quanto paga um casal para ficar na tal magnífica suite “presidencial”? 160 euros. Mas já num quarto normal, mas com todo esse mesmo ambiente, 107 euros!

Cozinha tradicional micaelense 

Quando vou a S. Miguel, entre tantas coisas que me agradam ou que evocam memórias felizes, não podia deixar de notar, realisticamente, uma ou outra nota negativa. Uma das mais flagrantes, é a pobreza da oferta de genuína comida regional pelos restaurantes de Ponta Delgada. Ainda hoje voltarei a isto, mas agora, que já se faz tarde para voltar a esta escrita, aproveito um texto já escrito, sobre um exemplo de culinária praticamente perdida. Falo das favas de taberna, um magnífico petisco que julgo que caiu em desuso, com aconteceu há muitas décadas com a sua versão continental. A causa é o desaparecimento das antigas tabernas (aquelas onde eu tinha medo de passar à porta, em criança, porque nunca se sabia que eflúvios indescritíveis nos podiam ser lançados de lá de dentro). Era um prato típico de taberna, a puxar pelo vinho. Normalmente, não se fazia em casa. Toda a minha família era fâ destas favas e o meu pai comprava-as frequentemente, quase às toneladas – que eu e os meus irmãos éramos comilões de enfarta-brutos, com a companhia indispensável do José Vasconcelos Nunes, quase um irmão, numa tasca já desaparecida, a Montanha, que era famosa por estas favas. Faço-as hoje com sabor que, se não me engano, é mesmo o da minha infância.

1/2 kg de favas secas, 4 cs de banha, 1 cabeça e 2 dentes de alho, 2 cebolas, 1 folha de louro, 2 cs de massa de malagueta, sal, 1 c. chá de açaflor, 1-2 cs de “temperos”.

Pôr as favas secas de molho, de um dia para o outro. Cortar a “unha” e dar um talho em cada fava, junto ao topo. Cozer em água, o suficiente para cobrir as favas, com a banha, a cabeça de alhos, o louro e sal. Guardar a água da cozedura. Refogar no resto da banha as cebolas picadas e os dentes de alho, também picados. Juntar as favas, a massa de malagueta, a açaflor e os temperos e mexer bem. Acrescentar só um pouco da água da cozedura das favas (pode-se esmagar algumas favas, para engrossar), para molho consistente e pouco abundante. Ferver durante um ou dois minutos. Come-se com bastante pão a rapar o molho e, localmente, com vinho de cheiro, sugerindo, aqui no continente, um verde tinto ou um vinho tinto encorpado e forte, como um baga da Bairrada.

Os temperos, ou “todolos tamparos”, vendiam-se já preparados nos armazéns de víveres já desaparecidos (Pereira e Pereira, Benjamim Leandro, Domingos Dias Machado, os que nos levavam a casa, em carroça de mão, as compras do mês, lembram-se?). Talvez já muitos micaelenses não os saibam fazer e não os vejo à venda. Segundo informação quase secreta de um antigo fabricante, são uma mistura moída de 100 g de colorau, 100 g de erva doce, 20 g ou uma cs de canela, 5 g ou uns 20 grãos de pimenta preta, 5 g ou 15-20 cravinhos e 5 g ou uma c. chá de cominhos. Ouço dizer que, na cozinha popular açoriana, há muito quem os substitua só por açaflor, também dita açafroa. É um erro. A cozinha micaelense típica é feita com ambos, não com um a substituir o outro! E até porque uma das especificidades da nossa cozinha, para além da malagueta, é claro, é o uso rico mas equilibrado das especiarias.

Para os que me estão a ler no continente, nada feito: têm que pedir a um amigo turista que vos traga de lá estes dois condimentos não encontráveis cá: a malagueta e a açaflor.

Esta receita é um exemplo do capítulo de cozinha das ilhas do meu livro que, entre uma tarefa e outra, está quase acabado, “O gosto de bem comer”. É um capítulo quase simbólico, a mostrar uma selecção de receitas de várias ilhas com qualidade genuína, combinando a maneira familiar de as executar, com muito boa qualidade e exigência, e alguma investigação no local. Incluo também um outro capítulo com exemplos da herança culinária muito rica da família da minha avó materna, exemplo dos usos da pequena aristocracia rural praiense. O essencial do livro, muitas dezenas de receitas, de sopas e entradas a peixes e carnes, terminando nas sobremesas, são uma selecção das centenas de receitas que criei ao longo destes anos, precursor (modéstia à parte) do compromisso que hoje faz regra na nossa melhor restauração entre a alta cozinha e os gostos tradicionais, designadamente os açorianos. Há algum capitalista interessado em ser meu sócio para um bom restaurante açoriano?…

Maio 07, 2004

As memórias e a ficção 

Um açoriano meu amigo, que conhece algumas das minhas histórias e que tem delas outras versões, criticou-me por achar nelas frequentes inverdades. Podia discutir isto pessoalmente com ele, mas creio que o tema pode ter interesse geral. A questão é a da absoluta veracidade das histórias que contamos. Ora “quem conta um conto acrescenta um ponto”. Eu não estou a escrever memórias. As memórias de pessoas com um papel na história são feitas de recordações que têm que ser fidedignas e documentadas, porque são instrumentos de análise histórica. O que eu faço é dar testemunho de episódios e personagens que me marcaram e às vezes, com isto, mostrar como mudaram, em décadas, os hábitos de comunicabilidade. Mas, quanto mais para trás, naturalmente mais esfumado é esse testemunho.

Histórias de menino são inevitavelmente difusas. Fica-nos um fundo de muito riso que elas despertavam nos serões de família, mas que se vai misturando, ao longo do tempo, com alguma efabulação a compensar a degenerescência da memória. A meu ver, o que interessa é a graça da “estória” e o espírito da época que ela pode simbolizar. Mesmo quando refiro uma personagem real, o que me interessa é dar dela um retrato psicológico característico, para o que uma ou outra inexactidão factual pouco conta. Se um pintor me retratar com uma gravata azul em vez daquela que eu tinha posto, que mal faz isso? Desde, claro, que não me ponha uma gravata com o rato Mickey!

Não acredito que a vasta colecção de tipos e histórias na literatura regionalista sejam todas absolutamente verídicas. Serão verdadeiras todas as histórias do tio Matesinho que Nemésio conta? Ou as muitas recordações do Pico da Pedra de Cristóvão de Aguiar? Tomaz Vieira, pintor açoriano de aqui já falei, escreveu uma deliciosa novela, “Herdar Estrelas”, cheia de evocações da nossa Rua do Saco. Algumas das “estórias” que conta não correspondem exactamente às minhas recordações, mas o que interessa é que é mesmo a minha Rua do Saco. Estou-me nas tintas para a exactidão, estou a ler ficção, não história. O que tem que ser genuína é a “paisagem” cultural, social e etnológica.

Somos todos heteróclitos. Dá-me tanto prazer escrever reflexões que julgo importantes sobre um assunto tão sério como é a educação, como divagar por coisas menores, como essas “estórias”, normalmente nos dias mais relaxados de fim de semana, nesses dias de açorianices. Eça também não teve rebuços em escrever romances de cordel e foram alguma da sua melhor literatura. Se me quisesse apresentar como pessoa sisuda, bem instalada na idade e na obra feita, penso que também tinha material biográfico para isso. Mas não sou assim e provavelmente me sentiria limitado se o fosse.

Como já escrevi, referindo o Big Fish, as nossas histórias acabam por ser nós próprios. Contá-las é uma forma de auto-retrato, mais modesto e menos pretensioso do que falar dos feitos e características pessoais, mas mesmo assim elucidativo de parte das muitas coisas que foram fazendo a nossa personalidade. É também uma homenagem, como quando falo do meu avô José da Costa, com orgulho, confesso, mas não com vaidade pateta de pergaminhos passados e ultrapassados, que não os tinha, ele que era de genuína cepa popular. Falo dele, apenas, e é muito, com a gratidão com que aqui tenho falado de outros escultores de mim próprio. E ainda muito em especial, no caso do meu avô, a provável herança de alguns genes…

Estive só a falar de mim, o que não é muito elegante. Mas os auto-retratos são uma presença constante em muitos séculos de pintura. E, com o sentido que temos de deixar viva a nossa memória, os anos que passam vão-me fazendo compreender melhor a compulsão de Rembrandt em se auto-retratar no envelhecimento.

Maio 09, 2004

As comédias micaelenses 

Sempre me encantou o teatro popular, desde os autos da Paixão de várias partes do interior de Portugal até ao delicioso Tchiloli santomense, que os turistas que lá vão não deveriam perder. Mas, pela sua relação especial com a minha identidade de ilhéu, acima de tudo as comédias micaelenses e as terceirenses. O nome é comum mas são muito diferentes. As micaelenses são sérias e sobre temas históricos (Inês de Castro, Carlos Magno, João de Calais, D. Dinis e a Rainha Santa), enquanto que as terceirenses são de carnaval e satíricas. Mas também as de S. Miguel incluíam, à parte, esse componente satírico, Segundo conta Luís Bernardo Leite Ataíde, um notável etnógrafo micaelense da primeira metade do sec. XX, a comédia compunha-se de três partes: primeiro, uma apresentação por um pajem, e, no fim, o auto propriamente dito. Mas, entre ambos, um entremez de três narradores, o guia e o reclamo, fidalgos vistosos e bem engalanados, com o velho representando o povo, que narram os acontecimentos marcantes do ano, de ponta a ponta da ilha, tudo com “aprouvelas” (piadas a pessoas) pesadas de chumbo.

Armava-se na praça da freguesia um simples tabuado sobre barris de vinho. Os actores eram exclusivamente homens. Que delicia ouvir um camponês barbudo e façanhudo, de perna peluda, com uma cabeleira de estopa, a descrever-se como “sã tã belas, tã fermosas / as flores que Dês criou, / mas fermosa com’ei sou / nim lo sã as próprias rosas, / sã minhas feiçães mimosas / e mês lábios de carmim.”

Ainda assisti a uma ou outra comédia, de grupos das freguesias “de fora da cidade” (uma expressão tipicamente açoriana) que se vinham exibir numa esplanada já desaparecida do parque municipal, para mim sempre o Jardim António Borges. Não sei nenhuma de cor, mas transcrevo algumas passagens soltas que ficaram no meu anedotário (claro que vai tudo escrito de modo a sugerir a pronúncia).

A princesa que se ia casar num pais distante (a infanta D. Leonor, casada com Valdemar III da Dinamarca? Ou, posteriormente, D. Isabel, mulher de Filipe o Bom da Borgonha?) tardava-se, chorosa, em despedidas às açafatas, quando um aio a apressa: Prancesa, minha prancesa / ide-vos já aprontar, / que vã aí o retratêro / que vos vai a retratar. Já em viagem, a “prancesa” vai num pequeno barco em cima de uma carroça de mão, que um figurante agita, dizendo aganta-te, prancesa / co mar tá rebolvo.

Célebre também é a de Inês de Castro. Vão dar a notícia a D. Pedro: Sinhô, matarim dona Inaz! D. Pedro faz um grande gesto dramático e pergunta In, Jasus, quim la matou?, ao que o outro responde Mê sinhô, fou o Pachâço!

Outra, deliciosa, é a da princesa que queria acompanhar o rei à guerra, do que o rei a tentava dissuadir. – Filha tendes uns pêtos muim grandes / filha, conhecer-vos vã / – Vanham fitas e espartilhos / qu’eles apretá-se-ão / – Filha, tendes cabâlos muim longos / filha, conhecer-vos vã / – Vanham pentes e tasouras, / cas guedelhas vã pró chão.

Ainda da Inês de Castro, um excerto da recolha feita por Luís Bernardo Ataíde. Trata-se da coroação em morta de D. Inês. Como vêem, trata-se de uma memória popular de séculos de um episódio das crónicas históricas. Não tenho agora à mão o meu querido Fernão Lopes, mas estou quase certo de que o refere. Com esta crôa de Fés / crôo tê corpo belíssime / porque merecedora és / croada estás nos Cés / à derêta do Altíssime. / Ai Inaz pomba gelóda, / sim rezã amortecida, / de rainha estás croóda, / assim fostes respeit’óda / más na morte que na vida. / Mês vassalos de valia / que sempre Inaz respeit’arim, / por honra e ousadia, / beijim aquela mã fria, / já quim vida a nã beijarim. (Nota: o t’ representa aqui um típico t molhado, como se fosse um t seguido de um quase inaudível ch. Veja-se também a troca de á por ó, como se usa no Algarve, em Lagos/Lógos).

E, também dessa recolha, uma outra de tom bem diferente de uma donzela (de voz bem masculina!), que responde ao trovador apaixonado: Mete medo esse falór, / istou toda num tremor, / assocegai trovador, / que ningãe vã pretrovór / este nosso bãe amor, / por vós ando imbeiçóda, / bãe sabês a crueldóde / qu’a mê pá tanho sofrido, / sempre firme a ti, mê qu’rido, / nesta torre aferrolhóda.

Finalmente, uma a que nunca assisti, mas que o meu pai me contava e que julgo ter entrado no anedotário regional. Um actor tinha que destruir um documento régio, queimando-o para um balde. Mas os fósforos estavam húmidos e ele teve que resolver o assunto rasgando o papel e deitando-o para o balde. O que veio a seguir teve que improvisar e recitar “Chêra-m’aqui a papel rasgódo!”

Enfim, como escreve com certo arrebato Luís Bernardo Ataíde, é “a linguagem [do tempo] de Frei Gonçalo Velho, (…) a voz sagrada do povo português”. E, por isto, desculpem-me a petulância: eu sinto-me genuinamente português porque, com a herança de quinhentos, me sinto genuinamente açoriano.

PS – Para os que ainda se interessam por estas curiosidades que fazem a nossa identidade de açorianos, deixo aqui a referência bibliográfica. A última edição que conheço e que consegui adquirir facilmente (mas já há uns vinte anos) por encomenda à Universidade de Coimbra é: Ataíde, L. B. L. “Etnografia, arte e vida antiga dos Açores”. Ed. Biblioteca Geral da U. Coimbra, 1974.

Maio 16, 2004

O meu primo Jacob e a família Pontiagudo 

Desta vez, a açorianice ligeira de domingo leva-me para o meu lado materno, terceirense. É uma longa crónica, porque uma lembrança puxa outra, mas domingo é dia em que se pode perder algum tempo com uma boa história. Também porque me dá algum gozo, confesso, escrever liberto das normas da escrita profissional ou dos assuntos ditos sérios. O mal é que me solto sem fim à vista, mas faltando-me o engenho e a arte. Mas, escrevendo num blogue, ninguém me toma por escritor; tenho o gozo da escrita e da invenção, sem pagar o preço da critica.

Vou contar “histórias” ou “estórias”? Ficção ou realidade? Só no fim é que saberei, ou talvez nunca saiba, porque vou escrever na zona de penumbra em que a memória se mistura com a fantasia. Será que o meu primo Jacob é uma invenção que criei ao longo dos anos, juntando uma e outra história? Mas, se me disserem que o meu primo Jacob, como o descrevo, nunca existiu, fico com muita pena. Também não me venham dizer que, se calhar, o tio Matesinho de Nemésio nunca existiu. Se não existiu, foi erro do Criador, não de Nemésio. Não me peçam certidão de que tudo o que vou contar é verdade. Eu tenho para mim que mais importante do que “si no e vero” é que seja “e bene trovato”.

O meu primo Jacob foi uma personagem espantosa da minha meninice, que misturava uma grande seriedade no que era sério, ele que não brincava nos negócios, com um sentido de humor levado aos limites. Jacob era primo-irmão da minha mãe, mas como se fosse verdadeiro irmão, criados em casas pegadas e não tendo irmãos a minha mãe. O nome que lhe dou recorda a nossa costela judaica, como explico a seguir. Foi uma das personagens mais engraçadas que conheci e, ao mesmo tempo, das mais ricas em amizade e generosidade. Era um homem de vida folgada, o que lhe permitia algum tempo de lazer para visitar os muitos amigos, ele que tinha um sentido profundo da amizade e que tudo fazia para ajudar um amigo, e tempo também para inventar as brincadeiras mais imaginativas. Disse que ele era homem de vida folgada, numa grande família de primos muito chegados que cultivou mais a actividade intelectual e profissional do que os negócios. Mas talvez que todos os genes Bensabat, de um trisavô meu judeu sefardita e negociante internacional próspero, no ciclo açoriano da laranja, se tenham concentrado no meu primo Jacob, não só no grande jeito para os negócios mas também num fácies tipicamente semítico. A mim, esses genes não chegaram, que nem sei comprar uma acção na bolsa e irrito a minha “gestora de conta” pelo meu grande desprendimento com os investimentos. Sempre ouvi dizer à minha mãe que ele, miúdo de calção e bastante cábula (os seus dois irmãos foram conhecidos professores universitários, ele ficou pelo liceu) passava os intervalos das aulas acompanhado de um criado que carregava uma grande mala com cadernos, lápis e borrachas, com que ele fazia negócio rendoso com os colegas.

As histórias que tenho dele dariam uma novela inteira. Depois vou à que quero contar, mas agora lembrei-me de uma que define bem a sua extravagância cheia de humor. Ele era provavelmente o maior amigo do meu pai, seu primo afim, a quem ele tratava sempre, por ser padrinho do meu irmão mais novo, como “compadre de um anjo”. O meu pai só ficava muito incomodado com os beijos que o compadre lhe dava em público, claro que por provocação. Jacob foi sempre um padrinho devotadíssimo do meu irmão e dizia que uma das suas grandes festas tinha sido o “casamento” do meu irmão, por volta dos dez anos. Ninguém o convencia a dizer que tinha sido a festa da primeira comunhão. Uma vez, foi durante alguns dias à Terceira, em viagem de liceu, o meu primo Z, do meu lado paterno, que era louríssimo e de olhos azuis. O meu primo Jacob, por amizade com o meu pai, tomou-o à sua conta, mas para azar do meu primo. É que o primo Jacob inventou e espalhou por Angra que aquele rapaz era o filho de um oficial alemão morto na guerra, mas que, antes, ele tinha conhecido em Lisboa. O Z passou a ser o Hitler Hans (raio de nome!). Foi convidado para as boas casas, o primo Jacob relacionou-o com todas as meninas “bem” de Angra, mas o pobre do meu primo Z passou esses dias de boca bem fechada, porque não sabia uma palavra de alemão e não se podia trair falando em português.

Por falar de férias em Angra, ainda vai outra recordação, mas descansem que não me esqueço da história principal. Ao concluir o meu primeiro ciclo de liceu com muita satisfação dos meus pais (foi o primeiro ano em que houve dispensa de exame), eles puseram-me à escolha um prémio: ou um relógio (o que era um luxo na época, para um miúdo de 11 anos) ou uma viagem à Terceira. Não hesitei um segundo em favor da segunda, eu que era doido pelo primo Jacob. No dia da chegada a Angra, estávamos juntos numa pastelaria e ele reparou que eu não usava relógio. Ingenuamente, contei-lhe a história do prémio paternal. Ele foi imediatamente a uma relojoaria ao lado e ofereceu-me um belo relógio. A sua amizade para connosco era assim. Mas com muita extravagância pelo meio. Com frequência, telefonava à minha mãe de véspera a saber o que era o almoço em nossa casa, em Ponta Delgada. Se lhe agradava, ia de propósito de Angra a Ponta Delgada para almoçar connosco, passando a noite num dos “Carvalhinhos”, o Cedros ou o Arnel (não ia de avião porque tinha muito medo!). Mas também era a maneira de se alimentar convenientemente, porque em casa, em Angra, pouco mais comia do que chá e torradas.

Estas idas ao nosso almoço também tinham história. Frequentemente, ele punha como condição à minha mãe que fizesse calhaus, a coisa de que ele mais gostava na nossa casa. Era simplesmente uma salada russa com atum e maionese, mas servida em cascas de ostra. Para ele era uma delicia, mas para grande ofensa da sua mulher, que sabia que, em casa, ele era incapaz de comer a “porcaria” da maionese de atum servida no prato! A sopa, nestes almoços, era também um momento especial sempre esperado por mim e pelos meus irmãos. Fazia-lhe muito mal, já tinha estado à morte por causa de uma sopa? Íamos para a mesa e, enquanto ele despachava o prato de sopa no meio de uma tagarelice engraçadíssima, nós os três miúdos, em silêncio, trocávamos olhares cúmplices. No fim da sopa, um de nós fazia a pergunta que ele já esperava: “Primo Jacob, reparou que comeu sopa?” Era um espectáculo! Caía da cadeira, tinha convulsões, dizia disparates, sei lá que mais. Era um enorme talento para divertir crianças, ele que bem deve ter lamentado não ter tido filhos.

Mas vamos lá à história que queria contar. Começo por dizer que ela só faz sentido porque este meu primo tinha um círculo de grandes amizades que incluía toda a melhor sociedade de Angra, embora ele não fosse nada de farroncas familiares. Costumava dizer que era sócio do clube aristocrático de Angra, o Ténis Club, onde nunca punha os pés, só porque não podia admitir que houvesse um lugar em que ele não pudesse entrar. Ora, uma vez, ele regressou a Angra, depois de uma das suas habituais viagens a Lisboa, fascinado com o conhecimento muito estreito que tinha travado com uma família de Lisboa, que lhe tinha sido especialmente recomendada porque iria brevemente para Angra. O marido era o coronel Pontiagudo e a esposa, a Sra. D. Abenz Vitória (mas que nome!) era uma senhora das melhores famílias já não sei de que região do continente. Tinham dois filhos, em idade de liceu, muito bem educados. Durante esta estadia do primo Jacob em Lisboa, longa como costumavam ser, ele foi rodeado por essa família com as maiores atenções e ficou a dever-lhes muitos favores. Coisa que um açoriano que se preze nunca esquece e tem que retribuir principescamente.

E ele assim fez. Por tudo o que eram as suas muitas amizades, não falava senão na família Pontiagudo, que começou a ser o motivo de conversa das famílias da terra. Como sócio do Ténis, propôs logo a admissão do coronel, votada por unanimidade. Tratou da matrícula dos dois filhos no liceu de Angra, o que, apesar de alguma falta de documentos, não foi difícil, dada a sua influência social. E, principalmente, organizou, para várias semanas após a chegada dos Pontiagudos, um vasto programa social, para a sua integração na sociedade angrense. Um programa da maior hospitalidade fidalga dos Açores! Até ao dia da chegada do Carvalho Araújo que trazia o coronel e a sua família. Muitos dos seus amigos estavam no cais, embora estranhando a ausência do meu primo Jacob. Ele estava uns bons metros acima, na esplanada do Pátio da Alfândega, gozando que nem um perdido. É claro que nunca tinha havido qualquer família Pontiagudo. Mas ele também tinha muito gozo em dar pistas, as pessoas é que eram ingénuas: alguém acredita, logo á partida, em pessoas chamadas de Pontiagudo ou de Abenz Vitória (esta então é uma delicia!)?

Meu super-querido primo Jacob, grande figurão da minha meninice, que já nos deixaste: vai fazendo estas partidas ao Padre Eterno, que tem tendência para macambúzio, temperamental e colérico, a ver se lhe amenizas o mau feitio e se não há mais terramotos nas nossas ilhas.

PS – O meu agradecimento ao companheiro bloguista Nuno Guerreiro (“aka” Michael Ben Yehoshua), do sempre interessante e instrutivo Rua da Judiaria, pelas informações que me deu sobre os meus Bensabat sefarditas de Marrocos. Fiquei a saber, por exemplo, que esse nome significa que os meus antepassados eram exemplares respeitadores do Sábado judaico. Eu é que, turista em Israel, não posso dizer que, embora respeitando o preceito, não me tenha ressentido do rigor do Sábado, desde logo por não poder usar o elevador do hotel.

Maio 23, 2004

Sebastião come tudo, come tudo sem colher 

O Sebastião era o único preto de S. Miguel, na minha meninice. Jovem não era, que preto que tinta, três vezes trinta. Pretos lá tinha havido muitos, nos primeiros tempos do povoamento, mas foram-se miscigenando, diluindo com o seu sangue o dos colonos com pergaminhos. O mal é, ao fim de séculos e por capricho da genética, aparecer um menino bem muito encarapinhado. O que os meus contemporâneos não sabem é que as origens do Sebastião estão bem documentadas pelo dr. Atanásio da Mota Frazão, num número da Insulana que, por razões óbvias, nunca foi publicado mas que eu possuo e de que agora me valho. Nasceu e criou-se no Cazenga, um velho musseque de Luanda. A primeira nota que há sobre ele foi o que lhe virou a vida. Brando mas orgulhoso, não tolerou que um polícia lhe batesse e, com a força de que depois falarei, ia-o matando. Escondeu-se e, noite funda, embarcou clandestino. De navio em navio, fez vida de mar pelo norte da Europa, durante vários anos, bebendo toda a variedade de cachaça que por esses mares havia e ganhando uns dinheiros a contar umas versões, cada vez mais estropiadas pela bebida e pela idade, de umas histórias da rainha Ginga com que a avó Makeba lhe embalava o sono do musseque abafado na escuridão. Um dia, creio que em Hamburgo, um marinheiro dos Carregadores Açorianos falou-lhe de S. Miguel e ele cá veio parar. Começou como treinador do Santa Clara, não era difícil, qualquer miúdo da pelada luandense jogava melhor do que os futebolistas micaelenses. Mas isto fica para outra história, a justificar a carreira da filial local do Benfica. Sim, porque se o Sebastião se tivesse esmerado, nenhum Ben David lhe tinha chegado aos calcanhares – o Ben David foi do S. Clara ou já estou a trescrever? Mas tenho que abrir parágrafo, senão os meus leitores ficam tontos.

Onde é que eu ia? Ah, falhada a sua carreira futebolística, porque era difícil compatibilizar o domingo de jogo com o fim de semana de bebedeira, Sebastião foi tropeçando na vida, aqui numa pedra, ali num galho, uma ou outra vez nas grades da Calheta, e já o conheci como engraxador. Mas, se mesmo um engraxador que se preze tem brio profissional, Sebastião era a vergonha da classe. Quando chegava a hora, fosse na relva de um jardim fosse mesmo na calçada do Campo de S. Francisco, a sesta mandava. E, ou porque esquecia a caixa de engraxador ou porque alguém por partida a escondia, lá ficava desempregado o Sebastião, até que o Sr. Francisco da Zenite o chamava, porque já era tradição entregarem-lhe na loja a caixa de engraxador.

Em conversas que tive com ele, em roda de miúdos, ouvindo as suas histórias de África, ficava por vezes transido. Não é que ele tinha sido canibal, e bem exigente gastronomicamente? Carne de polícia era detestável, sabia a podre. A de comerciante transmontano de mato não era má, embora muito gorda. A melhor era a de advogado, porque as falinhas mansas entranham-se na carne, sabem a ervas perfumadas. Mas só hoje sei que isto eram histórias à Injun Joe, para nos meter medo ou respeito, que isto de medo e respeito é uma relação que tem muito que se lhe diga. Mas ele era uma alma de criança, porque, entre essas histórias tenebrosas, vinha sempre a dos bebés de Luanda, os mais lindos do mundo. E tinha razão. Vinte anos depois, quando os vi e os tratei, apesar das ramelas, do ranho e das barrigas de fome, vi que não há muita coisa mais linda do que os grandes e doces olhos pretos de uma criança africana.

Nós miúdos, troçávamos, andando atrás dele a cantar “Sebastião come tudo, come tudo sem colher, depois chega a casa, dá pancada na mulher”. Ele sorria e, às vezes, ainda puxava por nós. Lembro-me de um exemplo deste seu carácter infantil. Ele era um nadador exímio e de grande resistência, fazendo de uma penada os dez quilómetros de Ponta Delgada à Lagoa e volta. Fazia uns dinheiros a exibir-se, com os seus indizíveis anos, mergulhando do alto do velho farol da doca, de uma altura de bem vinte metros. Ora, uma vez, com um mar terrível, estava ele na doca e ouviu um grande choro de criança, de uma miúda que tinha deixado cair à água a sua boneca de estimação e que o mar muito agitado logo levou para fora. Sebastião nem hesitou, atirou-se à água, para espanto de todos nós, que ora o víamos á flor de uma onda, logo o desvíamos na cava da vaga. Mas, chegado a terra, teve o seu prémio dos deuses angolanos, juro, que bem me lembro. A boneca estava linda, o vestido seco, o cabelo bem penteado como se viesse da festa e olhava para ele com um grande sorriso, tão grande e agradecido como o da menina sua mãe.

Mas, ó Sebastião, um homem não é de acúçar. Daquela vez que o bruto carro alemão do pré-guerra, em que iam as manas Rodrigues para o liceu, quase te atropelou? Na doçura do feitio ou na dormência do álcool, faiscou-te um centro nervoso, foi-se o impulso pela perna abaixo, armaram-se os músculos de enorme força e “arreaste” (como se diz na minha terra) um pontapé de pé descalço que espatifou a porta do BMW. Ou os sinais de trânsito que tinhas a mania de dobrar quando um polícia te aborrecia?

Mas não podia terminar sem o segredo especial que o Sebastião me contou, o segredo da sua filha. Um pouco toldado, disse-me, lembro-me como se fosse hoje: “Tu também vais ter uma palmeira de almas, mas não vai ser bem palmeira, és mais moderno, vais ter poste com fios, por isso tenho que te ensinar umas coisas”. A sua filhita Lianor tinha sido o seu grande tesouro, uma febre africana roubou-lha em dois dias. Quando embarcou e até ter arribado a S. Miguel, sempre a sorridente Lianor, numa nuvenzita invisível, o acarinhou, lhe contou coisas infantis nas horas de tristeza, lhe recomendou cuidado com a cachaça, que a avó Makeba não ia gostar. Em S. Miguel, numa grande palmeira fronteira ao liceu, Lianor passou a pássaro. Qual, o que havia de ser? Uma pomba branca. Eu nunca a vi, porque a minha visão das almas só veio muito depois, mas julgo que às vezes, enquanto o Sebastião ressonava de bêbedo deitado no seu banco, me parecia ouvir um arrulho de repreensão vindo lá do alto da palmeira. Ficam agora a saber porque ele passava tanto tempo no jardim do liceu. Segredo que guardámos, mas que ele hoje me mandou contar.

Pronto, Sebastião, já está. Desde ontem que me aborreces, melro negro danado poisado no meu mastro das almas. Até um preto engraxador, bêbedo e desgraçado, tem horas em que não suporta o anonimato e quer que alguém conte a sua história. Agora podes ir, com a tua melrinha branca debaixo da asa.

Maio 30, 2004

Domingo especial

Eu sou um açoriano mitificado por mim próprio. Açorianos reais são os que lá vivem e que sofreram a passagem destes quarenta anos da minha construção distante da insularidade. Tenho que compreender isto, mas não é sem alguma mágua que vejo que nenhum dos blogues açorianos que leio diariamente e que estão listados ao lado assinala hoje o grande dia identificador dos açorianos: o domingo do Divino Senhor Espírito Santo. Eu cá, não por ser crente mas por ser açoriano, vou comemorá-lo em grande festa de família (com umas tantas cápsulas de Modulanzine para a digestão).

O meu mastro do Pamir 

Na minha ilha, recordam-se as “alminhas” à entrada de cada freguesia. São uns pequenos oratórios à beira da estrada, um pilar de altura até ao peito encimado por um nicho com uma imagem e um pedido de oração pelas almas da freguesia. Ainda hoje, há sempre quem se dê ao cuidado de iluminar e florir as “alminhas”; talvez algumas velhas ainda guardiãs dos usos ancestrais e com cujo desaparecimento provavelmente também os usos desaparecerão. Nos tempos de palmilhar estrada a pé descalço, nenhum viandante deixava de se descobrir diante de uma “alminha” e rezar uma oração. Hoje, a muitos à hora, quem é que pensa nisso? Penso eu, saudosista inveterado, embora descrente de orações, quando me passeio pelos caminhos da minha terra. Pensar nas almas, mesmo anónimas, é evocar as nossas próprias, as memórias de que somos feitos. E é por isto, que, em continuação da profecia do preto Sebastião, vou falar hoje das minhas almas privativas, uma riqueza que não se pode deixar em outro testamento que não seja o das histórias que contamos.

Quando o preto Sebastião me fez uma festa no cabelo de miúdo, escovinha de máquina um, e me disse que eu ia ter um poste das almas, nem eu percebi, nem sequer ele, que, talvez nos vapores etílicos, trocou banal poste de electricidade com mastro de navio. Nunca mais soube dele até às suas recentes visitas, nunca mais me lembrei desse vaticínio. E só muitos anos depois tive a visão renovada de um sonho que anunciava um dote de que não me apercebi durante muitos anos. É por isto que revejo sempre com olhos de rever o “Hook”, partilhando com o Peter amadurecido a tristeza de ter passado tantos anos de obnubilação da vulgaríssima capacidade de saber voar na Terra do Nunca. Males do emprego, da rotina do dia-a-dia, da ansiedade pela promoção, da preocupação com a tosse dos filhos. Mas os nomes, as palavras e as memórias são a estrutura de nós próprios, mais do que o pensamento elaborado. Imponho-me esta regra, como vêem, pelo menos ao fim de semana, num trajecto curto em que a evocação quase devota das açorianices me mereceram uns pozitos de ouro da Sininho, para poder voar, se não de facto, pelo menos ao som de uma valsa de fantasia.

Há uns anos, começando a minha reforma e libertando, embora a contra-gosto, o meu espírito de criança, comprei uma casa nova, de arquitectura comum mas um pouco invulgar, toda lançada em curvas para diante, que me levaram logo a chamá-la de “o navio”. A sua proa, varanda do meu quarto, é perfeitamente adequada a cenário da canção dos amantes do Titanic. E foi esta ideia de casa-navio, tão cara a quem sempre se sentiu marinheiro, que reevocou, tantos anos depois, o meu sonho das almas e uma mudança radical na minha vida, de homem prosaico a homem que quer viver apressadamente, com a angústia de um tempo veloz, tudo o que a vida tem para dar.

Nasce-se fadado para as almas ou então quando se sabe chorar por uma criança. Houve um dia, em criança, em que chorei por muitas. Atracou à doca um lindo veleiro alemão, o Pamir, levando a bordo uma centena ou mais de crianças-cadetes, como eram os da nossa D. Fernando II e Glória, hoje só atracção turística. Sem lhes poder falar, vi-os a passearem pela cidade, num dia bem bonito, meninos garbosos no seu uniforme de jalequinha azul, com um espadim dourado que me encantava, eu que só tinha espadas de madeira feitas pelo paciente mestre Alfredo. O navio voltou ao mar, mar traiçoeiro dos Açores que numa noite virou de mar ameno da véspera a oceano negro de tempestade ciclónica. Uma grande onda o naufragou, perderam-se os meninos cadetes. E eu, da mesma idade, que não tinha falado com nenhum, chorei por eles, com lágrimas que não vinham dos olhos mas do fundo do coração.

Diz-me a minha mãe, vivíssima e espero que ainda muito longe de vir à minha procissão das almas, que desde miúdo sempre me mostrei tão inteligente (desculpem lá!) como sentimental. A primeira vez que, muito miúdo, me separei do meu pai, que ia em trabalho a outra ilha por breves dias, parece que dei na doca um espectáculo de choro desalmado. Racionalidade e sensibilidade são coisas que se deve ter em igualdade, mas quando se puxa por ambas ao extremo, sentimo-nos bicéfalos.

Mas, voltando aos meninos-cadetes alemães, vieram então depois, com clarim e tambor, mostrar-me o que viria a ser o melhor presente, só muito depois compreendido: um mastro do Pamir com as suas vergas, ainda uns restos de pano e um grande cabo que não percebi para que servia. Deram-me também um espadim dourado, que eu legarei ao Museu da Marinha de Hamburgo, mas que, por enquanto, é muito meu. Fizeram-me continência, deram meia volta e marcharam a toque de clarim e tambor para uma grande onda que os engoliu, se dobrou, recuou e acabou por desaparecer.

Agora, quando recebo amigos, ainda à porta da minha casa-navio, divirto-me a perguntar-lhes o que é aquela coisa alta e esguia mesmo em frente da casa. Eles olham-me duvidosos da minha sanidade e respondem, como a um velho gagá, que é um poste de iluminação. É claro que faço isto como teste, para ver se algum consegue ver o mastro do Pamir, o meu mastro das alminhas. É preciso confessar que ainda não tenho domínio completo sobre ele, que às vezes me falta vê-lo. Mas é verdade e certo que ele nunca me falta quando nasce uma criança futura vedora de almas – que pena que não seja todos os dias – ou quando um dos meus netos, com um telefonema qualquer de encantar contando-me a sua última história de escola ou gaguejando de entusiasmo pela vitória do Benfica, planta um arco-íris que sobe desde a base forte do meu mastro. Já reparei também que é mais vulgar ele aparecer-me quando o céu do crepúsculo tem uma faixa roxa muito viva, quando o asfalto da minha rua cheira a canela ou quando, ao longe, vejo o Bugio envolto numa neblina verde. Mas, tentando muito e não sei por que experiência estranha, sei agora de uma forma segura de ver o mastro e chamar uma ou outra alma: escondo entre as ervas em seu redor a minha única relíquia de menino, o meu pião que foi comigo para o primeiro dia de aulas, hoje estalado e cheio de marcas das bogueixas de uns piões selvagens de cravo de ferradura.

Há dias em que tenho muitas visitas, outros não. Mas há uma presença permanente no topo do mastro, a da minha avó, que aparece como estrela, tão orgulhosa como carinhosa, mas com um brilho um pouco desvanecido pelo sofrimento de doente no fim da vida. Soube logo quem era, da primeira vez que lhe ouvi um “João Manuel” como só ela sabia dizer, ainda por cima com pronúncia da Praia da Vitoira. Não me podendo fazer as festas com que me adormecia, ela que quase me criou enquanto a minha mãe trabalhava, manda-me uns raios de luz que me adoçam a pele. Nos últimos tempos tem estado um pouco exigente, discutindo comigo as receitas que devo incluir no meu livro. E não é que lhe deu para querer ser co-autora? Razão toda tem ela, mas chamavam-me maluco. Ontem, quando lhe disse que ia escrever esta estória, vi-lhe uma sombra de palidez no brilho de estrela nacarada. Não me quis dizer o que era, como nunca se zangava comigo, mas compreendi. Não vou escrever mais sobre ela, que o muito que há é só nosso, perdoem os leitores. Falo só da outra alminha de excepção, que também é estrela e não pássaro. Não está lá sempre, mas vem muitas vezes visitar a minha avó e sua querida amiga. É pequenina, toda delicada, como sempre foi em vida e, com uma luzinha de estrela que raramente me fala, limita-se a tremeluzir, sorrindo com a doçura da sua afeição por mim. Para ela, não quero inventar um pseudónimo. É a minha tia Maricas.

Todas as minhas outras alminhas são pássaros e, às vezes, que passarões. Na descida, que a viagem é bem longa, vão pousando e descansando no tal cabo preso ao mastro que agora, pelos vistos, já sei para que serve, embora nunca consiga ver onde ancora o outro extremo, que se perde, cada vez mais diáfano, no azul do céu. Como as minhas alminhas perderam, com a eternidade, o sentido das horas, vêm por vezes a tempo impróprio. Chego a irritar-me mas desculpo-os, embora, na minha idade, precise de bom sono e de não ser acordado quando calha pelo santelmo ofuscante que os meus visitantes acendem e que me afarola o quarto. E são exigentes e caprichosos, se lhes faço xu e um gesto de despedida, ainda mais piam. Pássaros do corisco, gosto muito de vos ver, mas dêem-me algum descanso. Esta noite, então, foi um reboliço. Vieram todos, empurravam-se para poderem pousar nas vergas, punham-se em biquinhos de pata para me chamarem a atenção e poderem falar antes dos outros. Uma vergonha para quem tem que se portar bem lá no Céu. Alguém lhes disse que eu ia escrever esta estória e ninguém quis ficar de fora. Adivinho que o boateiro, como contarei depois, foi o meu tio Vasco, que ouviu a história na Pepe. Tive que prometer que falaria de todos. Já não pode é ser hoje, que fiquei cansado com a perda de sono, fica para a semana.

Eça também escrevia em folhetins.

Junho 01, 2004

As alminhas da Musalia também querem vir à festa 

O meu primo Jacob veio fazer-me uma visita para me dizer alguma coisa sobre a festa de domingo que ele está a organizar. Para minha surpresa, contou-me que isso tem dado grande agitação entre as alminhas que lêem este blogue e que parece que não são poucas. Agora são as alminhas da Musalia, que também gostavam que eu falasse delas, à falta de mastro ou árvore que ela ainda é muito nova para já ter descoberto (mas lá irá). Está bem, venham cá até ao meu mastro, que também falarei delas, com a ajuda da Musalia.

Junho 06, 2004

Desilusão 

João do Saco e Musalia

Passei esta noite sempre de ouvido alerta, à espera da prometida procissão das minhas almas, organizada pelo meu primo Jacob, com a ajuda do meu amigo Amadeu. Olha que dois! Prometia grande festa e eu já lhes tinha dito que não ia por menos do que o magnífico cortejo da aldeia, ao som de Mahler, do último sonho do Kurosawa. Até viriam, por empréstimo, a Dona Zezinha e o Mestre Samuel, alminhas da Musalia. Lá vir visitar-me, o primo Jacob veio, mas sozinho, de cabeça murcha e com o cigarro ainda mais caído ao canto do bico. Vinha com permissão especial do Altíssimo para me explicar porque é que a festa tinha que ser adiada uma semana. Ainda por cima, a culpa foi dele.

Com o seu feitio brincalhão e com horror a qualquer tristeza (coitado, quem o viu, quando a doença fatal já lhe corroía os ossos, ainda a tentar brincar), dois dos seus grandes amigos lá em cima são os veneráveis Job e Jeremias, que ele se sente na obrigação de alegrar. Ontem, estava ele em casa do patriarca, que nunca se queixa, quando o primo Jacob se deu conta de que a pequena mas bonita vivenda patriarcal, restaurada pelo meu pai, tinha o frigorífico avariado. Prestável para os amigos como ninguém, logo o primo Jacob se prontificou a resolver tão grave problema, para dali a algumas horas já terem uma cervejinha fresca. Mas o meu primo não sabe que sempre foi uma desgraça para as máquinas, que mal conseguia acender um isqueiro?

Resultado, o estouro do curto circuito da antiquada instalação eléctrica celeste ficará a ecoar durante milénios (dos nossos, uns minutos para os que lá estão). Foi apagão geral, mas aí não houve grande problema, porque Jeová ordenou à pombinha do Paracleto que fosse iluminar uma velinha entre as asas de todos os anjos. Mais catastrófico foi o efeito no sistema de controlo das fronteiras celestes, com os discos todos queimados. E parece que não há lá por cima bons informáticos. Ainda não chegou o seu momento e, quando chegar, Bill Gates que se cuide! Pior ainda, para a complicada gestão das relações entre céu e inferno, de que diariamente se encarregam o diabo e S. Pedro, decidindo casos complicados como o destino de algumas almas polémicas (espere-se pelo momento do Bush!), queimou-se até ao último fio a linha do telefone vermelho, sim, que ainda há por lá guerra fria.

Concluindo: fronteiras celestes fechadas, S. Miguel e os outros anjos armados mais em alerta do que as polícias no Euro, contacto quebrado com a página www.jacob_bensabat.brincalhoes.eternidade.ceu, mas a promessa solene, transmitida pelo Padre Eterno ao meu primo Jacob, de que o adiamento da festa é só por uma semana.

Mas o Supremo foi sensível à expectativa especial, nunca por elas imaginadas, das alminhas da Musalia. E agora percebo que, na sombra do passarão que é o meu primo Jacob, papagaio de todas as cores como de todas as cores se faz um portento de humor e inventividade, mas de penas desgrenhadas de quem não liga a regras e de cigarro sempre dependurado do bico, esconde-se envergonhada porque desabituada destas andanças, a Dona Zézinha, especialmente autorizada pelo Supremo a esta primeira viagem ao meu mastro das almas. E escreve Musalia:

“…e o lastro das memórias soltou aromas de maçã e canela e acordou os nossos sonhos de criança. O Verão era um espaço mágico. Nas dunas, junto à ria, habitávamos os castelos que a nossa fantasia construía, recolhendo a ponte levadiça que nos isolava do mundo dos adultos. E o tempo pertencia-nos.

As manhãs escoavam-se entre azuis luminosos de céu e mar então, cansados e descalços, fazíamos o caminho de regresso pelo areal extenso na distância que se deixava percorrer, carregando o sabor da maresia nas pegadas de areia que espalhávamos pela casa. Lá dentro, resmungando uns amuos de quem defende território, Dona Zézinha, acertava o lenço na cabeça em sinal de aprumo e, acalmada a algazarra, a modorra do calor quebrava a resistência e a casa retomava a paz anterior.

Todos os Verões, ajeitada a faina caseira, Dona Zézinha ancorava em nossa casa. Mulher de pescador, ao jeito paciente que lhe vinha do quotidiano árido, acrescia o ar risonho que nos fazia repetir o seu nome constantemente. Saboreávamos as histórias engraçadas que sempre acompanhavam o início do dia, imaginando o pobre gato siamês ensaboado à exaustão para lhe retirar as manchas ou o “sorvete” que comprara e guardara na mala para levar à noite, aos filhos. Mas, o que mais nos divertia era o desencontro dos sabores. Perante a fúria do meu pai e o olhar benevolente da minha mãe, os nossos risos sufocados redimiam os esquecimentos, a troca do açúcar pelo sal ou o alecrim pelo cravinho da Índia. No Inverno, recortava retalhinhos de memórias, que cosia em espirais de ânsias pelo convívio estival e nos oferecia desdobrados em pequenas mantas coloridas. Ainda existem lá em casa…

“Este é o melhor tempo da minha vida”, costumava dizer e nesta frase imensa se teciam os laços dos afectos que nos ligaram durante tantos anos. Assim como o seu bolo de maçã, acariciado pelo aroma da canela, enchia as nossas mãos gulosas de ternura. Ainda hoje, no silêncio da casa se forma aquele “corredor de tempo”, onde ecoam os risos da infância e a tagarelice da Dona Zézinha.”

Junho 10, 2004

Gentes do Pico 

Num dos textos da Moriana/Musalia, citando uma canção, li que nas suas veias corre basalto. Ela lá sabe, mas a minha ideia é que de basalto, firme mas também esculpível, é feito o carácter dos picarotos. Nas veias, corre-lhes uma mistura agridoce de verdelho e sangue de baleia.

Micaelense fanático como já viram, com metade dos genes e grande parte da educação terceirenses, confesso-me um admirador porventura idílico das gentes do Pico, os picarotos. Antes de ir ao principal, anoto que não conheço nenhuma simbiose tão grande entre mar e terra. Nas outras ilhas, ou se é camponês ou se é pescador. São mesmo quase duas culturas diferentes, como Armando Côrtes-Rodrigues tratou com grande mestria dramatúrgica e um grande sentido telúrico na sua peça, hoje esquecida, “Quando o mar galgou a terra”, quase tão importante como o “Mau tempo no canal” para se ter uma ideia do carácter das gentes açorianas. No Pico, o foguete do homem da vigia das baleias transformava num ápice o camponês em pescador de baleias. Enxada abandonada, farnel esquecido, era ver quem mais corria pelas ladeiras a chegar ao cais e tomar o seu lugar na canoa baleeeira: mestre, arpoador, trancador ou simples remador.

Enquanto vivi em Ponta Delgada, até ir para a universidade, não tive contactos com jovens picarotos. Conheci-os depois na universidade e ficaram dos meus melhores amigos. Aliás, não é difícil. O picaroto, se é amigo, é-o mesmo. O carácter espelha-se-lhes no físico, frequentemente maciço e entroncado, a que a tez clara e os olhos azuis dão um ar pouco comum em Portugal. Há uns anos, o V., assistente universitário, contactou-me para fazer o seu doutoramento sob a minha orientação. Marcámos uma conversa e lá ele apareceu. Baixote, largo de ossos, alourado e de olho muito azul. Um aperto de mão bem firme, e, sem rodeios nem circunlóquios, entrou directo no assunto, mostrando uma boa cabeça e uma grande determinação. Acabou por ser uma das mais difíceis e melhor trabalhadas teses que me satisfaz imenso ter orientado. Mas, voltando ao primeiro encontro, enquanto o ouvia, vinha-me à cabeça uma ideia, até que lhe perguntei se ele era do Pico. E não era mesmo? E também, como tal, é daqueles meus doutorados de que já falei para quem eu sei que sou um amigo.

E, ao mesmo tempo, o picaroto é doce, tem uma alma de criança, uma simpatia natural e espontânea que encanta todos os visitantes. Parece que não precisam de atitudes de defesa, eles que vivem sob a protecção do magnífico totem que é a montanha do vulcão. E, para não falar só das gentes, tendo eu como insuperável, porque na matriz da minha primeira memória do mundo, a beleza de S. Miguel, e apesar da difícil escolha entre a semelhança/diferença das ilhas, acho que nenhum turista pode ir aos Açores sem visitar essa pérola da construção telúrica que é a ilha do Pico.

O meu pai também tinha vários grandes amigos picarotos, do tempo em que o final do liceu tinha que ser feito em Ponta Delgada. Creio que ele teve uma propensão natural para fazer amigos entre eles. Partilhava com eles a integridade, o espírito de missão, a dedicação ao trabalho, a ética inquebrantável, a profundidade inabalável da amizade e dos sentimentos. Julgo que também herdei um pouco disto e, daí, como disse, a minha admiração e a facilidade em lidar com os picarotos, gente que não precisa de contrato escrito.

Junho 13, 2004

Guisado de gente 

Até se ver, terminei por ora as minhas histórias das alminhas. Este conto em folhetins foi um reeencontro comigo mesmo e também, do fundo do coração, com todos os que me fizeram e muitos são. Não há maior injustiça e arrogância do que pensarmos que nós somos só nós. Como todo o homem, por mais primitivo que se considere, sou uma mescla que nenhum tear consegue reproduzir em tecido. Os meus pais fizeram a matéria prima e deram-me o amor que é necessário para nos sentirmos apoiados na grande aventura da vida, mas pelo nosso próprio caminho. Como num bom cozinhado – tinha que vir! – compraram carne de primeira sem sequer olhar ao preço, talharam-na ao fio da fibra e esmeraram-se na marinada inicial, volteando-me na vida com cuidados de chefe. Depois vieram uns que puseram a aquecer manteiga e banha, outros azeite, que sabiam já que eu adoraria mais tarde terras de imensidão como a minha, mas a perder de terra em vez de perder de mar, e a mudar em ouro estival as searas verdes da primavera. E os que picaram a cebola? Outros esmagaram o alho na dose certa. Uns tais discutiram e escolheram a quantidade exacta de louro e de salsa. Outros, forçosamente açorianos, temperaram-me com açaflor e malagueta. Sal e pimenta, condimentos do humor, foram muitos os que os dosearam. Um outro decidiu da Jamaica, ainda outro do tomilho, aqueloutro se melhor ia com o tomilho o estragão, a segurelha ou a salva. Os mais tardios vigiaram bem o lume. Os grandes amigos de hoje, fazem fila para a colher de provar e dão um ou outro palpite de correcção final de temperos. Eu sou eu porque sou todos esses.

O meu mastro das alminhas (FLD, por agora) 

(Aviso ao leitor: isto é texto para quem ainda sabe gozar o domingo, para imprimir e ler com vagar à sombra das tuias, bebericando um verdelho, que escrita telegráfica só em Morse, não em palavras saboridas. Aos bloguistas apressados, as minhas desculpas.)

O que o meu primo Jacob promete é devido, para mais que ele já andava de um lado para o outro do seu celeste Pátio da Alfândega, a passear-se nervoso com o adiamento da festa, com o empenho que ele põe nestas coisas. Lembram-se do programa de festas para a família do coronel Pontiagudo? A festa hoje foi de arromba, só ensombrada por ele não se ter lembrado de que nem todos são madrugadores como ele. É verdade que dias de reformado são todos iguais, mas eu continuo a marcar o domingo como dia especial, em que dou largas ao meu defeito de ser muito dorminhoco. Necessidade de quem tem que carregar as baterias para uma actividade sempre frenética, de quem, como me dizia a minha avó em folgas plebeias ao seu espírito de finura, “tem bicho carpinteiro no rabo”.

Mas hoje houve variante, não foi só o santelmo do costume que me acordou. Quando rebentou o primeiro foguete, estremunhacordei e vi de viés que ainda eram seis da manhã. Lá fui à minha varanda-proa e estava o vigia das Feteiras carregado de foguetes. Foram sessenta e o primo Jacob disse-me que era só uma amostra para Novembro (depois conto porquê). Só um vizinho meu é que deu pelo caso, tenho que falar com ele como quem partilha dotes, mas a perguntar-me se os traficantes de droga já tinham chegado ao nosso bairro.

E lá vem a procissão, cabo abaixo. De capitão, como não podia deixar de ser, o primo Jacob, sempre ajudado pelo meu ídolo de infância, o meu amigo Amadeu, a fazer macacadas, de canário muito louro, não podia deixar de ser. Figurão inesquecível, com nome predestinado. Amadeu, o que ama a Deus ou o que Deus ama? Ou Theo e philo, em grego? Em qualquer caso, passa pelas crianças, que Deus só ama os que amam as crianças e só se ama a Deus se se olha para Deus com olhos de criança. O Amadeu tinha um carro muito velho, ainda com buzina de corneta e borracha, que dava sinal logo no princípio da rua. Só se ouvia ao mesmo tempo, de dentro de uma casa, “ó José, olha o menino”, para o José ter cuidado com o irmão mais novo, que ainda chuchava sentado na soleira a ver as nossas brincadeiras. Mas, chegado o Amadeu, parava toda a brincadeira, que tudo o que coubesse amontoado no carro lá ia brincar para terras mais vastas e de aventura, como rebolar Monte Gordo abaixo e, às vezes, cair no Charco da Madeira. Foi com ele que vi os ensaios da companhia de circo com que estava tão entusiasmado mas que falhou por falta de artistas, era com ele que ia às cantigas ao desafio. Mas continue o cortejo.

À frente, um grupo de foliões do Espírito Santo, opas e mitras de bispo, às ramagens vermelhas, rabeca, viola da terra, pandeireta e ferrinhos, tocando a cantilena que lamento não poder reproduzir. O meu filho informático tentou pôr a música em mp3, mas caloiro ainda é caloiro. E até banda de música, reunida com grande custo pelo Amadeu de entre seus velhos conhecidos músicos da União Fraternal e da Rival das Musas. Do ensaiador encarregou-se o primo Jacob, que, com o seu irresistível encanto, conseguiu que o Karajan, sem cachet, os pusesse a tocar qualquer coisa pelo menos reconhecível como o triplo concerto.

Logo vêm uns anjinhos, com arcos de grinaldas. Porquê, perguntei-me, lembrando-me apenas das danças de carnaval da minha terra. Só depois me lembrei de que hoje é S. António e que o primo Jacob, sei lá como, deve ter sabido que uma certa noite de S. António, há muitos anos, deu uma grande volta na minha vida. Os anjinhos, como os conhecemos, são brancos quase transparentes, mas no meio lá vem um com ar bem real e morenito. Ah, é o Jorginho! Aos anos que não pensava nele. Companheiro de brincadeiras na Rua do Saco, morto atropelado num desfile militar, foi o primeiro cadáver que vi. E logo de uma criança! Menino de sua mãe, só não tinha a cigarreira porque ainda não tinha idade. Mas fez-me rir, falando-me do maluquinho da travessinha. A travessinha da Rua do Saco tinha uns pilares de pedra a impedir o trânsito. Sobre um deles, empoleirava-se o maluquinho anónimo, a mais minúscula figura de gente que já vi, a cantar odes e hinos à Virgem, até que uma das manas solteironas da janela defronte lhe atirava um chinelo. Tem agora lá em cima uma peanha dourada para cantar junto à Senhora.

Honras especiais para o primeiro grupo. O doutor Armando vem de asa dada com o seu grande amigo, o meu querido avô José da Costa. Riem-se às gargalhadas entre quadras repentistas em latim macarrónico. Como sempre o conheci, o doutor Armando vem com penas de estamenha do Nordeste. Diz-me que encontrou finalmente o descanso de uma vida angustiada, na companhia do seu grande amigo S. Francisco. É mesmo o seu ajudante oficial na construção do presépio celeste oficial, mas vai-me contando que o sublime santo fica sempre incomodado ao colocar o burro e a vaca, porque parece que é aquilo a Companhia de Jesus. O meu avô, que entre 54 netos se permitia dar-se ao luxo de me escolher como um dos preferidos, vem como mocho da ciência, em minha homenagem, mas inconfundivelmente com o peito polvilhado de rapé. Mocho e ciência, mas para ele, homem cristalizado no renascimento, primeiro as humanidades. Lá me perguntou se eu continuo a pensar em cada palavra escrita ou dita, como me ensinou, porque primeiro está o verbo. Fácil foi fazer lá em cima grande amizade com o Padre Vieira, para além dumas visitas frequentes a Cícero, Virgílio, Horácio e muitos outros, sobrando-lhe ainda tempo para umas discussões teológicas com Tomás de Aquino. Mas sobre o meu avô não digo mais, que merece outras escritas.

Com eles também, um bando de estorninhos, de olho vivo, gente querida de que já falei: Ilídio Sardoeira, Lúcio Miranda, Almeida Pavão, Mário Rego Costa, Isabel Coutinho, todos aqueles que me fazem ter saudades do meu liceu. Vêm também saudar-me o João, o Hugo e o Manuel, companheiros de infância perdidos na guerra. Vêm tios e vêm primos, amigos que se foram antes de tempo, figuras da meninice como o ferreiro onde me atardava à vinda da escola, maravilhado perante o rubro da forja e as faíscas das marteladas, o taberneiro da esquina que lavava na rua as grandes pipas, com seixos a rolar com um ruído inesquecível, o mestre torneiro que me fazia ver sair uma obra de arte de um tosco barrote, o mestre Alfredo que me fazia espadas e pistolas de madeira, tantos mais, que saudades e que alegria em vê-los.

E, lá ao cantinho, a Sra. D. Assunção, vizinha de conversa da minha avó, janela com janela. Fez-nos uma partida, aos três irmãos. Ofereceu-nos um magnífico “jogo dos 15”, em madeira e cortiça, esmeradamente trabalhado pelo seu marido. Mas, como não disse a quem oferecia, ainda hoje nos digladiamos sobre a posse do precioso jogo. Só ao domingo e à segunda-feira é que não conversavam, que o calendário religioso era diferente. Uma senhora viúva que se preze não pode ir à missa ao domingo, só à segunda, de braço dado com a vizinha do café, a mais doce das doçuras que conheci, sempre embiucada no seu capote e capelo e exímia em fazer à miudagem da Rua do Saco os moinhos de cana e papel, com um grão de tremoço a travar o alfinete.

Sebastião preto melrão é que ficou à distância e não me ligou muito, talvez envergonhado de tão luzida companhia. Mas vi que estava a gostar, porque comentava muito para a sua melrinha Lianor. E foi ela que se atreveu, saltitando de lá detrás, a vir-me pousar no ombro e dar novidades. Com a ajuda da avó Makeba e de uns oguns que por lá andam – politica de ecumenismo! – Sebastião deixou o álcool e é hoje o muito apreciado treinador do Celeste Futebol Clube. E que o pai me mandava dizer que nunca tinha visto o vaticinado poste de electricidade como este, com paus tão grandes de través e bocados de pano, onde é que já se viu tanta bandeira em poste de electricidade, que era o que ele me tinha prometido. E que eu tivesse cuidado, porque já estou em idade de começar a pensar a quem é que deixo esta virtude de ver as alminhas, como ele me deixou.

E pairando acima, porque só poisa para falarmos a dois e essas conversas não conto, a minha águia real, o meu pai.

Minhas alminhas do corisco, não param quietas? Já disse que nenhuma fica sem me falar, tenho todo o dia à frente, mas tenham calma. Não se excitem! Ó tio Vasco, olha que ainda cais ao chão, com essa ânsia de me vires contar as últimas novidades e boatarias da Pepe; e tu é que espalhaste o boato desta crónica, fizeste vir este enorme bando de pássaros, vê lá se te portas bem, se não ainda te fazem lá no céu aquela operação dos sessenta anos que nunca quiseste fazer, a coisa que mais medo te metia! E, depois, vocês são tantos que não dá para falar de todos. Mas bico calado, que eu é que escrevo e tenho o direito a estabelecer a ordem de piadura. O que não posso é pôr tudo isso a escrito, compreendam, que os leitores dos blogues não gostam de ler mais do que dois parágrafos e ainda tenho que escrever sobre o mestre Samuel, que promessa é promessa.

E escreve Moriana/Musalia … e a cumplicidade do mar sempre presente nas nossas brincadeiras infantis. Mesmo defronte da casa, a “baía”, recanto da praia entre rochedos, era o ponto de partida para tantas viagens imaginadas nos barquinhos coloridos que lançávamos à babugem das ondas. Mas havia o Argus. Branco, enlaçado por vivo pintado a negro, nome orgulhosamente desenhado, saltava na cresta das vagas pela mão segura de Mestre Samuel, rosto tisnado pelo sol tantas as horas embaladas no mar e corpo curvado no jeito de lançar as “mourejonas” e de “safar” as linhas e os anzóis dos “açafates”.

Quando o mar se revolvia de fúria e o barco descansava em terra, Mestre Samuel, animado pelo conforto de uns dedinhos de vinho, encostava a sua voz ao postigo da porta e entoava risos e quadras que nos deliciavam. A companheira, “olhos de gata” como ele dizia, acenava a cabeça em reprovação muda que mais não era que a ternura envergonhada. A secagem das amêndoas e dos figos era o seu trabalho, armava o “almanxar” em círculo, onde estendia as esteiras recolhidas à tardinha negando aos frutos a carícia do “sereno”.

Mestre Samuel corria pela praia atrás de nós para nos lançar na água e nós, em susto e gargalhada, lá mergulhávamos. O mar, que tanto amava, ajeitava o baptismo da sua mão segura envolvendo o nosso corpo em golfadas saborosas de sal e espuma. Assim aprendemos a nadar e a amar esse espaço imenso mas cuidando, quando de súbito se levantava a brisa de “mar de fora”. Tranquilo, era quando apresentava mais perigos, como no poema de Vinicius, e era tempo de fugir. E ensinou-nos a magia dos números nos dias de “levante”, eram sete as ondas e só depois o mar permitiria o nosso abraço, devolvendo-nos à areia em jogos harmonizados.

Em transparências cristalinas, ficaram as memórias de caprichos infantis nas conchas que Mestre Samuel recolhia e me trazia embrulhadas num sorriso.

Olhando na distância, imagino que o barquinho ao longe, embalado pelo mar, é Mestre Samuel sonhando antes de nos vir apanhar no areal.

E acabo eu. Ao crepúsculo de hoje, mas do meu relógio, foram-se as alminhas, com as minhas lágrimas de saudade e de alegria por esta comemoração antecipada dos meus sessenta anos. Se alguns dos meus leitores também têm mastros de almas, podemos juntá-los, fazer um navio e com ele umas explorações por mares de fantasia ainda nunca navegados.

Junho 20, 2004

A escola da Suzete 

A Suzete, duas ou três portas abaixo da minha, na R. do Saco, morenita engraçada, com laçarotes na cabeça, fazia sempre tentativas vãs para entrar nas nossas brincadeiras, a que o machismo incipiente das coboiadas e apanhadas resistia ferozmente. Só lhe dávamos atenção quando ela saía para a escola. A sua escola, particular, era na vizinha R. de S. Miguel e era a mais invulgar das escolas que já conheci.

Funcionava numa casa típica daquelas ruas, com porta abrindo para um corredor que se estendia até ao fundo da casa e para que dava a correnteza de quartos. Era nesse corredor que funcionava a escola, com a porta da rua aberta para iluminar e arejar. Junto a uma parede, um quadro, todo o equipamento da escola. Do outro lado do metro de largura do corredor, alinhados ao longo da parede, os alunos, ardósia ao colo e sentados em cadeirinhas ou bancos, que a escola não fornecia. Não sei já porquê, todos nós lhe chamávamos a escola da preta. E, à ida ou à vinda, lá delirávamos ver a Suzete dos laçarotes, pasta numa mão e cadeirinha na outra.

Julho 04, 2004

Nação açoriana? 

Existe uma nação açoriana? Para mim e creio que para a maioria dos açorianos, decerto que não. Então porquê esta pergunta, a merecer honras de entrada, em dia de Açorianices? É que, há dias, a expressão foi usada no Foguetabrase, um blogue micaelense muito lido, também por mim. Eu critiquei, mas isto deu origem a numerosos comentários “nacionalistas” que me preocuparam, primeiro porque, pela linguagem, me pareciam de jovens, depois porque, como é inevitável, muitos deles saltavam logo para o independentismo. Achei, por tudo isto, que valia a pena esta conversa, apesar de ser em dia em que as atenções estão viradas para outras coisas!.

Embora seguro do que sinto, tenho que admitir que falo com base em senso comum e naquilo que aprendemos na escola, por estar longe de ser perito na matéria. Nem sequer sei bem em que disciplina do saber é que se discute a ideia de nação, se na história, no direito, na antropologia. Mas, como duvido que os meus patrícios oponentes saibam mais do que isto, em teoria, vamos à discussão. Começo por dizer que tenho a ideia de que a ideia de nação compreende um factor subjectivo, o do sentimento generalizado de se ser nação (passe a petição de princípio), e uma série de elementos identificadores objectivos. Comecemos pelo primeiro, como diria o conselheiro Acácio.

Olho primeiro para a minha experiência e pelo que assimilei de tantas conversas com as mais variadas gentes. Nunca vi esse tal sentimento de pertença a uma nação própria. Mesmo em fases de grande discussão politica, como foram os acalorados debates de verão na “abertura” marcelista ou a campanha eleitoral de 1969, o autonomismo – esse sim, lá voltaremos – esteve sempre na primeira linha da discussão, mas nunca passou pela cabeça de ninguém falar de nação. Aliás, isso seria incongruente com o facto de um dos grandes animadores do debate ser um continental e grande patriota, como a história veio a demonstrar, o meu saudoso Ernesto Melo Antunes. Mas abro parênteses para lembrar que há incongruências dessas: o “herói” do independentismo açoriano, o Dr. José de Almeida, é português continental. Passando agora a outros, alguma leitura vem em meu favor. Há muitos anos, li a colectânea de artigos de jornal de Aristides Moreira da Mota, textos notáveis do expoente da luta difícil pela autonomia nos fins do sec. XIX, parcialmente ganha com o decreto de 2 de Março. Em página alguma vejo uma nota nacionalista. Mais recentemente, a eminência do sentimento da insularidade, Natália Correia, nunca advogou tal barbaridade e a sua vivíssima participação na vida politica portuguesa demonstra o que ela sentia que era, na diferença. Podem argumentar-me com Nemésio, que tanto prezo, mas isso obriga-me a dizer uma coisa muito triste: mesmo os génios podem ter uma fase senil.

Mas não nos sentimos portugueses, os açorianos? Para falar de coisas triviais, gostaria de estar aí agora para ver se andam ou não a celebrar na Avenida as vitórias da selecção portuguesa, se hoje à noite não roem as unhas e se não haverá por aí este festival de bandeiras que aqui vejo, até demasiado.

Vamos agora aos definidores objectivos. Alguns, nem vale a pena discutir. Em primeiro lugar, a língua comum. É certo que há nações com a mesma língua, mas, em regra, isto deve-se à separação dos estados, como no caso americano ou brasileiro. Às vezes o estado faz a nação, depois de roturas politicas. Mas mesmo isto é tão complicado, que até temos as indiscutíveis nações australiana e canadiana, com um chefe de estado “estrangeiro”. E há o caso oposto das nações multilingues, como a Suíça, mas que são construções históricas sólidas, mesmo que “ilógicas”. Também nos mostra a história como a vontade politica nem sempre é suficiente para o nascimento de uma nação. Os espanhóis da América latina aspiravam à independência, por razões que, como no Brasil, eram politicas e económicas, não nacionalistas. O sonho de Bolívar era o de uma grande nação hispano-americana. A história acabou por consagrar um bom número de estados, cada um a solidificar a sua própria nação. Isto quer dizer que, se os Açores fossem independentes, com o tempo emergiria a nação açoriana. Antes disso, não.

Em segundo lugar, a origem étnica. O povoamento açoriano teve alguns componentes exóticos, com realce para o flamengo, mas que não são muito significativos. Nós, açorianos de hoje, somos uma mescla genética de amostras de tudo o que era português há 500 ou 550 anos. Finalmente, para despachar, as tradições e a cultura. Ninguém nega a particularidade muito própria que elas têm nos Açores. Mas só o viver-se sempre lá e não se conhecer a realidade portuguesa é que pode justificar que não se distinga o mesmo entre o Minho e o Alentejo, por exemplo. E lembram-se de uma entrada neste blogue sobre as comédias açorianas? Os temas eram a Inês de Castro e outros episódios da história portuguesa.

Outros, valerá a pena discutir com maior cuidado. Realço a identidade histórica e institucional, porque o espaço não me dá para outros elementos que me parecem relevantes para a discussão da nacionalidade. Os grandes momentos da história açoriana estão ligados à história portuguesa: o apoio ao Prior, com as batalhas de Vila Franca e da Salga, o levantar de todas as forças que permitiram a expedição liberal para o Mindelo. Ao longo de séculos, as relações económicas externas foram quase exclusivamente com Portugal, mesmo nos ciclos da laranja e do ananás. O papel dos Açores na economia da expansão, com a volta do largo, é enquadrado estritamente na história portuguesa. Mais importante, aquilo a que chamei a identidade institucional. Sempre os Açores se regeram pela leis portuguesas, sempre dependeram dos poderes régios e eclesiásticos portugueses e não há uma única estrutura histórica de poder que se afaste da concepção portuguesa do estado ou do poder (o caso dos capitães do donatário parece-me uma solução prática que não contradiz a lógica do poder real e senhorial de então). E, hoje, os açorianos participam com o maior interesse na vida política portuguesa e nas suas eleições. Voltando à identidade histórica, é óbvio que é muito mais fácil escrever uma história dos Açores ou da Madeira do que uma história do Minho. Mas acho que isto se deve exclusivamente ao isolamento e à circunscrição espacial muito mais fácil para o discurso histórico.

E com tudo isto, somos portugueses como os outros? Não, porque não há os “outros portugueses”, há muitas especificidades no ser português e por isto sou apoiante convicto da regionalização. E também porque há sempre uns que são mais iguais do que os outros e creio que nós, açorianos – e também os madeirenses – somos menos iguais, que mais não seja por tudo o que o isolamento foi cristalizando como características muito específicas. O que daqui resulta é a autonomia, que perfilho inteiramente, tanto que, deslocado há tantos anos, participo como posso na vida politica regional, que mais não seja aceitando dar o meu nome, com grande satisfação, para a comissão de honra da candidatura do PS e de Carlos César, que espero que ganhe as próximas eleições regionais. Já aqui escrevi, mas não sei se é fácil de perceber:sou muito português porque sou muito açoriano e sou muito açoriano porque sou muito português.

PS – No fim de toda esta conversa, fico com a impressão de que alguns leitores se perguntarão porquê “gastar cera com tão ruim defunto”. Mas eu tenho uma tendência irresistível para conversor. Fazer repensar um em cem dos meus contraditores já é gratificante.

Julho 11, 2004

Cartas de amor 

Em jovem escrevi muitas cartas de amor, mas não à minha namorada! Isto envolve um dos meus “cómicos” de estimação, o W. O meu grupo de mais velhos do liceu tinha um local típico de encontro, a devanear e a gozar os passantes, a lembrar a Carmen: “Sur la place / chacun passe, / chacun vient, chacun va; / drôles de gens que cês gens-là!” Esse sítio estratégico, de nossa propriedade tácita, era o canto do clube, a esquina da R. António José de Almeida, antiga Rua Nova da Matriz. Apesar de sermos um grupo de jovens, reuniam-se a nós algumas personagens pitorescas, muito mais velhas: o Jorge, o “doutor” do União Micaelense, o Maximino engraxador e o W, de quem vou falar, contando uma história de que hoje me penitencio, porque não abona muito as minhas qualidades morais.

Se bem me lembro, o W era contínuo de uma qualquer repartição pública. Gostava de ser intelectual; e ser intelectual, para ele, era dar-se com aqueles rapazes do liceu. As colheradas que ele metia nas nossas conversas eram de morrer de riso. Claro que nós também o provocávamos, desafiando-o a arbitrar alguma discussão entre nós. Era uma delicia! Ora o W tinha uma paixão assolapada por uma colega minha de liceu. Confiante na minha cumplicidade, pedia-me para lhe escrever as cartas de amor. Admito a minha maldade e que isso não se faz, mas quem é que, como jovem irreverente, não tiraria todo o partido dessa situação? Tenho pena de não as ter, mas lembro-me bem de que me esmerava na pirosice e no ridículo. Mas, para ele, eram lindas e tenho a impressão de que a G nunca chegou a saber quem é que as escrevia. E lá tinha eu que inventar razões para convencer o W de que as cartas certamente tinham sido muito apreciadas mas que haveria razões fortes para que a G não respondesse. Mas que quem porfiasse sempre alcançaria… E lá ia mais uma carta. Hoje, penitencio-me.

Setembro 05, 2004

O Parque das Furnas 

Gosto muito de ler um escrito de um açoriano afastado da sua ilha e que sente a sua pertença quando lá vai. O meu filho mais velho, quase quarentão, diz que é mais açoriano do que eu (como se isto pudesse ser possível!). Parece ser o caso da Ana Falcão Afonso, filha de um caro amigo bem conhecido neste blogue, nascida e residente em Lisboa, mas, como ela própria diz, micaelense de sangue, que é que importa mais – quando se toma isto como memórias da educação, tradições de família bem cultivadas. No seu (Indis)Pensáveis, escreveu uma entrada sobre o Parque das Furnas, hoje visita obrigatória para todo o turista que se preze. Não chega em dimensão à Pena ou ao Buçaco, mas não lhes fica nada atrás em beleza e sentimentos que evoca no visitante.

Ao que diz a Ana, queria só acrescentar três notas. Primeiro, o parque, apesar de relativamente pequeno (se pensarmos no Buçaco), é feito de recantos de intimidade. Não admira que sempre tenha sido um sítio excelente para namorados. Mesmo no auge do turismo, como o conheço muito bem, consigo sempre encontrar um local onde não sou perturbado na conversa com o meu livro. O segundo aspecto marcante é o silêncio. Apesar de o parque estar encravado no meio da freguesia, há um filtro absoluto que côa qualquer ruído que nos lembre que estamos no meio de uma vida normal de aldeia. Finalmente, e isto não se consegue descrever, o magnífico jogo de luzes e sombras, de claros e escuros, que enriquece toda a panóplia de verdes do parque.

Mas tenho outro motivo para escrever esta nota, um motivo talvez menos conhecido pelos visitantes de visita rápida. É a secção relativamente recente de flora autóctone. O micaelense, orgulhoso das suas paisagens, não gosta muito de admitir que elas são artificiais. Os dois emblemas floristicos, a criptoméria e a hortênsia, são uma introdução do sec. XIX, que rapidamente dominaram e transformaram a paisagem, mas com um sucesso que ninguém preveria. A flora endógena é a da laurissilva, típica da Macaronésia (os arquipélagos do Atlântico temperado norte, Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde), hoje mantida significativamente apenas na Madeira. Outrora, antes das glaciações, ocupava também toda a bacia mediterrânica. Tem uma grande variedade de espécies arbóreas, loureiro, vinhático, pau branco, folhado, cedro local, sobre uma camada baixa de variadas urzes, fetos e musgos.

Em S. Miguel já só resta a vegetação da Serra da Tronqueira, entre a Povoação e o Nordeste. Julgo que poucos turistas a conhecerão, e é pena. O principal óbice é a estrada, linda mas, ao que julgo, ainda de terra e muito estreita. Disseram-me que não pode ser modernizada por pertencer a uma reserva natural.

Isto tem a ver com o Parque das Furnas porque, há já mais de uma dezena de anos, segui o plantio de uma secção do parque dedicada só à laurissilva, com larga representação de espécies. Foi uma iniciativa a todos os títulos meritória. Não sei é se os visitantes lá irão com frequência, porque fica um pouco escondida, nas traseiras da Casa do Parque. Também não sei como está, se as árvores já cresceram o suficiente para se ter a ideia real. Quando for a S. Miguel com tempo suficiente, não deixarei de ir visitar esse canto do parque.

Setembro 12, 2004

Ponta Delgada e Angra do Heroísmo 

Nestas férias, alguns dos meus leitores terão estado nos Açores e visitado pelo menos as duas ilhas mais conhecidas, S. Miguel e Terceira, a que agora também cada vez mais se vai juntando, nos programas turísticos, e bem, a ilha do Pico. Vou lembrar-lhes agora só as cidades, porque comentá-las é menos subjectivo do que falar das paisagens.

Apesar do meu bairrismo, não tenho de Ponta Delgada uma impressão que sobreleve o meu gosto por muitas outras cidades portuguesas. A malha urbana é incaracterística, o centro de ruas estreitas desvalorizado por um trânsito automóvel caótico. Foi uma cidade feita toda de costas para o mar e o visitante que chegava de navio só via traseiras muitas vezes decrépitas. Como ainda tenho uma vaga memória de criança, a ligação ao mar era reduzida ao cais e a um pequeno espaço de convívio, o Aterro, com a sua popular varanda de Pilatos. Isto corrigiu-se, nos anos cinquenta, com a construção da Av. Marginal, mas sem grandeza e incomparável, por exemplo, com a do Funchal, e com uma praceta “de honra”, uma minúscula e ridícula inspiração do Terreiro do Paço.

Comércio banal, falta de espaços de lazer – com excepção de alguns jardins bem cuidados, alguns no centro da cidade – oferta cultural pobre, apenas com duas livrarias. A noite, que no meu tempo era animadíssima, com milhares de pessoas a gozarem o fresco e a vista de mar da Avenida Marginal ou a passearem-se pelo vizinho Campo de S. Francisco, é agora a tristeza de um marasmo deserto e silencioso, que os tempos são de descanso doméstico em frente da televisão.

Mas não deixa de ter coisas notáveis. Ficam, a justificar bem a visita, muitos exemplos dispersos de excelente arquitectura religiosa e civil. A igreja da Matriz, equilibrada nos seus diversos estilos, desde o gótico da capela-mor e do transepto ao manuelino dos seus portais de mármore, tudo completado com o barroco de cantaria basáltica. A igreja de S. José, franciscana, de magnífico maneirismo tardio e a da Esperança, habitação do Senhor Santo Cristo e do seu magnífico tesouro de arte sacra, magnífico conjunto equilibrado de azulejaria e de talha dourada. E, depois, os outros conventos barrocos, como o da Conceição, o de S. André, ou a ermidinha que resta do de S. Gonçalo.

Ficam-me também na memória as magníficas casas senhoriais. Não é difícil apercebermo-nos delas, porque, salvo uma ou outra na periferia da cidade, basta percorrer as ruas principais para as vermos, na sua imponência de decoração simples, baseada num jogo minimalista de largas fachadas brancas iluminadas por belíssimas janelas e varandas de ferro forjado e de cantarias barrocas de basalto. Para os conhecedores, alguns pormenores interessantes, como os frisos em diamante, mais vulgares na Ribeira Grande, e as janelas de avental, de que são bom exemplo as da Câmara.

Já Angra é outra coisa. É toda a cidade que é monumento, na sua traça urbana pequena na realidade mas grande na concepção e ambição. Emoldurada pelo Monte Brasil, a cidade abraça a baía, em anfiteatro. Não tem grandes monumentos, sobressaindo principalmente a Sé, de um simples mas elegantíssimo renascentismo já a cair para o maneirismo, o palácio dos capitães-generais e, nas casas senhoriais, a casa Bettencourt, logo por detrás da Sé. Mas o que se vive logo em Angra é o ambiente geral da cidade, de equilíbrio de volumes, de coerência de estilos, de ruas largas e bem traçadas.

A comparação entre as duas cidades suscita-me, muito de longe, uma impressão que tenho sempre sobre as mais conhecidas cidades italianas, Deixo de lado Roma, porque é muito mais uma cidade para se estar e sentir do que só para se ver. Mas, em relação a outras duas cidades tão conhecidas, Florença e Veneza, costumo dizer que Florença é uma cidade bonita cheia de monumentos magníficos, enquanto que Veneza dilui os seus monumentos num monumento global que é toda a cidade. Embora o meu bairrismo micaelense não mo permita dizer, tenho a mesma ideia em relação à comparação entre Ponta Delgada e Angra.

Setembro 19, 2004

Os artífices do meu tempo 

Volto a recordar figuras da minha meninice, agora os artífices, muitos que conheci. Guardo deles uma memória antiga e desvanecida mas que ainda hoje me põe a dúvida: artistas menores? Para mim, esses artífices foram os meus primeiros educadores artísticos, homens modestos de cujas mãos eu via saírem do bruto coisas tão bonitas. Ver, em menino, fazer coisas bonitas, é o começo da nossa educação artística.

Lembram-se dos grandes cartazes de anúncio dos filmes? O Sr. José Vieira tinha como base uma folha A4 de publicidade do filme. No chão do sótão do Coliseu, uma grande folha de papel, de muitos metros quadrados. Em meia dúzia de pinceladas, escalava a imagem, com mais outras retocava-a, ao fim de umas horas saía para mim uma maravilha, que depois via desfraldada na fachada.

O ferrador da R. de S. Miguel foi responsável por muitas repreensões da minha mãe, por atraso no regresso da escola. A forja rubra é uma memória inesquecível. Mas depois, que mestria nessa coisa aparentemente tão simples que é ferrar um cavalo. Sai da forja, às faíscas que foram o meu primeiro fogo de artifício, uma tira de ferro incandescente. Umas marteladas sábias, com suor a cair sobre o pão de Vulcano, uns mergulhos na água que protesta fumegando, e a barra entorta-se e toma a forma. Mais outras punções delicadas a abrir os furos para os cravos, e vai-se o ferreiro e vem o sapateiro. Cavalo imóvel como que percebendo que aquilo é para seu bem, pata imobilizada entre os joelhos do ferreiro, marteladas certeiras e eu a pensar sempre ver uma grande felicidade nos olhos do cavalo. E disponibilidade ainda do ferreiro para dobrar em círculo cravos de ferradura, que a minha geração usava muito como anel. Para o meu grupo, era quase um sinal tribal.

O torneiro da Rua do Saco maravilhava-me. Colocava no torno um barrote, ficava calado, dependurado das suas costas reumáticas de velho, tirava da gaveta duas ou três goivas, ligava o torno e começava a esculpir a partir de uma ponta. Parecia que aquilo ia ao acaso, mas eu via que havia em cada movimento, em cada mudar de goiva, um plano bem presente na cabeça e na imaginação daquele velho e a concentração de quem sabe que um gesto errado estraga todo o trabalho. É por isto que eu tenho um grande espanto pelos escultores directos no mármore. Vi fazer muita escultura, a um tio meu, do barro ao gesso, depois ao bronze. Mas tudo era emendável. Agora imaginam o que seria se Miguel Ângelo tivesse falhado uma única escopradela no David?

Também sempre gostei do trabalho de precisão. Já maduro e profissional, quando as ideias científicas não me ocorriam, ia conversar com o meu bom amigo Armindo Canha, mecânico de precisão do meu instituto e dono de mãos preciosas. No meio da prosa muito amiga, ia-me deslumbrando com o que ele fazia ao torno. Na meninice, o meu símbolo da precisão era o pai do Carlos Maria, meu fronteiro na R. do Saco, gravador de ourivesaria. Na altura, não havia pantógrafos, era a sua mão firme, apesar de doente reumático, e a sua arte que inscreviam na prata as dedicatórias e saudades. E, se falhasse, quanto custaria a peça de ourivesaria assim ida para o lixo?

PS – E, a propósito, aqui exprimo a minha homenagem a um excelente grupo profissional que conheci: os sargentos artífices da Armada.

Outubro 03, 2004

Açordas açorianas 

Hoje, a açorianice é culinária e talvez interesse mais aos leitores continentais. Tenho alguma razão para este devaneio, porque andei numa fase de evocação de memórias, acentuada pela próxima publicação de dois livros evocativos das minhas tradições, e aparentemente disparatados para quem me lê aqui sobre coisas sérias, como a politica do ensino superior. Um será “O gosto de bem comer”, de que já falei aqui. Do outro, “As alminhas”, digo só que é uma narrativa de ficção que não sei qualificar bem e a que chamo de imagino-memórias. Nasceu de algumas histórias aqui contadas aos domingos, foi crescendo e acabou por dar um livro. A seu tempo, darei notícias e, obviamente, proporei ao editor uma sessão de lançamento na minha terra.

As açordas, como todos sabem, são um emblema da nossa cozinha meridional, particularmente da alentejana. Vai por aí é muita confusão. Açorda é uma sopa de pão numa infusão de cheiros e alho. Por estas bandas da capital, chama-se-lhe sopa à alentejana, quando com coentros, e chama-se açorda a uma coisa sem raízes que tenta imitar as inigualáveis migas alentejanas. A cozinha açoriana tem muitas reminiscências do povoamento meridional e abunda em açordas (sopa), com muitas variantes locais, adaptadas aos produtos da terra. Não se usa azeite, produto de importação, nem o coentro, pouco usado nos Açores.

Faziam as minhas delicias em miúdo. Cheguei a fingir-me de doente, a quem sabia muito uma açorda, porque a família achava que aquilo era comida demasiadamente vulgar. A minha avó, muito perspicaz, é que me piscava o olho e se encarregava de satisfazer o capricho do neto querido! Como nunca vi uma das muitas açordas açorianas (fazem-se em todas as ilhas e tenho para cima de vinte receitas genuínas) nos restaurantes de Ponta Delgada – hei-de escrever sobre a grande falha turística da oferta de cozinha regional genuína – vou dar duas receitas muito simples. A primeira é a da açorda de hortelã, a tal que fazia as minhas delicias e que ainda hoje faço tantas vezes. A segunda, em recordação do meu pai, que sempre me dizia que era das coisa de que mais gostava em criança, das que a minha avó lhe fazia.

Açorda de hortelã

Penso ser uma curiosidade para quem está habituado às açordas alentejanas. Vejam que a técnica é exactamente a mesma, provavelmente secular, mas com a variação dos produtos locais.

Para 4 pessoas: 1 pão rústico, 3-4 cs de manteiga, 4 ovos, um grande ramo de hortelã, 1 cabeça de alho, sal e pimenta.

Numa terrina, colocar a manteiga, o pão aos pedaços, os alhos bem pisados e picados grosseiramente, sal e pimenta. Escalfar os ovos deixando a gema líquida e usar a água a ferver para embeber bem todo o conteúdo da terrina, que se deve tapar e deixar abafar durante alguns minutos, antes de servir a sopa para pratos em que se colocou um ovo escalfado.

Açorda de cebola e tomate

Refogar na manteiga a cebola às rodelas finas, o alho pisado e esmagado e o tomate picado. Acrescentar a água e os temperos e escalfar os ovos. Servir para os pratos com bastante pão aos pedaços.

Outubro 17, 2004

Turismo sem gastronomia? 

Ao domingo, enquanto der a veia, vou continuar nas açorianices e também, hoje, nas cozinhices. Volto a um tema a que já me referi: a pobreza da cozinha tradicional micaelense na restauração local. Há alguma coisa razoável, mas fora de Ponta Delgada. Mas os turistas, na maioria dos casos, não têm carro e, fora as excursões, ficam pela cidade. Em Ponta Delgada, ficam os visitantes com uns vislumbres da riquíssima cozinha micaelense, ainda por cima completamente diferente das cozinhas continentais que conhecem. Podem comer uns bons filetes da excelente abrótea açoriana, um bife barrado de alho e malagueta – num restaurante antes famoso, mas que se pôs a dormir -, e pouco mais, porque me recuso a incluir a moda, desde há uns anos, da morcela com ananás, pernóstica e contra os sabores tradicionais (morcela é com ovo estrelado ou com inhame, eventualmente com arroz). Ficam-me, para as minhas idas rápidas a Ponta Delgada, dois restaurantes atascados onde ainda se come bem e um outro restaurante popular nos arredores, onde o meu habitual anfitrião me leva com frequência e para meu bom proveito.

Não vou falar para os restaurantes normais, mas sim para os hotéis emblemáticos, onde, a meu ver, se come mal. Até aí há uns anos, no continente, havia a habitual cozinha de hotel, de estilo internacional ou, mais precisamente, francês, tentando agradar a todos. Esta cozinha precisa de imaginação e boa técnica, o que, infelizmente, falta na minha terra. Hoje, no continente, em particular em Lisboa, a cozinha de hotel reganhou pergaminhos. Basta ver os exemplos do Hotel do Guincho e do Carlton. Só tenho pena de a carteira não me dar para ir lá mais vezes. Por isto, os seus restaurantes estão sempre muito mais cheios do que só com os hóspedes. Voltamos ao Eça e ao jantar de hotel. Pelo contrário, a cozinha dos hotéis micaelenses, mesmo os de 4 estrelas onde costumo ficar, é paupérrima.

O turismo preferencial de S. Miguel devia ser um turismo de qualidade. Para estes turistas interessados em mais do que “enlagostar-se” ao sol, a experiência da boa gastronomia local é fundamental e é um dos fortes atractivos turísticos. Mas o problema não é simples, porque a cozinha micaelense pode ser demasiadamente agressiva para os hábitos dos turistas, hoje em boa parte escandinavos. Há duas possibilidades. A primeira, que é a que aqui se pratica na boa hotelaria, é adaptar a cozinha tradicional a uma certa forma de gosto internacional. Nas minhas receitas, para estar certo de que os meus amigos não vão estranhar a cozinha, tenho dezenas de exemplos de receitas de boa cozinha com “toque” açoriano, mas estas não as forneço agora, que preciso delas para o meu próximo livro. A alternativa, que prefiro, é a de ementas separadas: uma ementa de alta cozinha internacional e uma ementa paralela de cozinha local genuína e até perdida. Não deve é ser muito extensa, para ir abrindo o apetite para a sua mudança frequente e para permitir uma confecção esmerada.

Um dia destes, elaborei um projecto meu de uma tal ementa dupla. De receitas micaelenses genuínas, de entradas a sobremesas, são quarenta, claro que para ir variando. E são apenas uma selecção de pratos de que tenho receitas que julgo genuínas, embora talvez não de origem tipicamente popular. A minha herança gastronómica micaelense vem da minha avó paterna, cujos cozinhados tinham fama e merecem ser recuperados com exemplo da melhor cozinha tradicional micaelense, apurada por um gosto mais educado e elaborado. Mas não bastam os títulos ou as receitas, é preciso saber confeccioná-las com rigor e com boa memória dos gostos ancestrais.

Por razões afectivas, gostava que fosse o Hotel de S. Pedro a adoptar este ripo de ementa dupla que proponho. Além disto, teria um efeito multiplicador, na formação dos seus estudantes de hotelaria. Far-lhe-ei uma proposta quando se aproximarem as próximas férias (depois se verá o que tem a ver uma coisa com a outra).

Quanto a livros, também acho pobre o panorama. Há um confrangedor, numa colecção de cozinha das várias regiões do país. Outro, de edição regional, é um trabalho esforçado, mas resultante num amontoado de receitas frequentemente contraditórias, muitas das quais tenho experimentado sem que me façam lembrar os paladares de infância. Fico com pena quando muitos conhecidos continentais me pedem a indicação de um livro. Obviamente, tenho que proteger o meu, mas lá vou dando uma ou outra receita genuína. Ainda hoje, tive um caso destes, a que não pude resistir. Um brasileiro com ascendência açoriana pedia-me uma boa receita de alcatra. Lá foi, com muito gosto em corresponder a um interesse vindo de tão longe.

E, já agora, hotéis da minha terra, deixem-se dos bufetes. Pode ser prático mas é uma coisa horrorosa para qualquer pessoa com bom gosto gastronómico, de que faz parte, obrigatoriamente, um bom serviço de mesa. Os bufetes só são aceitáveis em restaurantes de almoço de negócios com pouco tempo e, nunca por nunca, ao jantar. Os suecos gostam disso? Mau sinal para o que deve ser um turismo micaelense de alta qualidade. Deixem cair esses suecos e procurem mercados de qualidade.

PS – Já aqui tenho falado do meu livro, “O gosto de bem comer”, mistura de normas gastronómicas, indicações de boa técnica, conselhos para uma cozinha do dia-a-dia de boa qualidade, muito para cima de uma centena de receitas da minha autoria, receitas de família até agora em segredo, uma selecção de cozinha açoriana, tudo embrulhado em muitas histórias e recordações. Vai ser publicado pela Caminho, a minha editora. Eu queria um livro simples, mas eles acham, para meu agrado, que o livro merece uma edição especial. Por isto, vai demorar. Só para fotografias, com que não contava, vou ter que cozinhar muito por estes próximos tempos – proveito para os meus amigos. Provavelmente, só sairá em Outubro de 2005. Fica para prendas de Natal.

Outubro 31, 2004

Poetas açorianos esquecidos 

Vou abrir hoje uma nova série de entradas temáticas do dia de açorianices. Portugal é um pais de poetas, mas, como em muitas outras coisas, os açorianos estão na primeira linha. Antero, Nemésio, Côrtes-Rodrigues (Violante de Cysneiros), Natália Correia e outros tiveram projecção nacional e entraram na história da literatura portugueses. Mas há inúmeros outros, com mérito, que não tiveram essa projecção. Quero dá-los a conhecer, servindo-me essencialmente de um livro que não sei se ainda se vende, “Antologia poética dos Açores”, extensas 522 páginas compiladas por Ruy Galvão de Carvalho, insigne professor de liceu e, depois, da Universidade dos Açores.

Por razões sentimentais, compreenderão que comece por José da Costa, apesar de também ter a isenção suficiente para dizer que, com tudo o que lhe devo e com a memória inexcedivelmente veneradora que dele tenho, não é dos meus poetas favoritos. Acho que, às vezes, a excessiva preocupação com o rigor formal lhe tolhia um pouco a livre imaginação poética, que tinha. Segue-se a nota biográfica de Ruy Galvão, que omite um aspecto relevante. José da Costa era um homem de profunda religiosidade, que impregna toda a sua poesia. Daí o título de um dos seus livros: “Acordes Místicos”.

“Nasceu na freguesia da Ponta Garça a 19 de Junho de 1881 e faleceu, em Ponta Delgada, a 10 de Maio de 1963. Professor da Instrução Primária e Explicador de Português e Latim de sucessivas gerações de estudantes liceais e mesmo de pessoas interessadas no conhecimento dos segredos e particularidades da língua-pátria. Mestre no verdadeiro e elevado sentido da palavra, dotado de uma memória prodigiosa e de uma inteligência aguda. Culto bastante. O seu lugar devia ter sido numa universidade ensinando Humanidades.

Foi o Prof. José da Costa publicista, colaborou na imprensa e fez versos. Poeta, um poeta clássico, um poeta que faz versos, e fá-los segundo as regras da Poética. Com medida e perfeição formal. Foi também pintor-miniaturista.

Dele são: Stabat Mater, poema em latim com tradução (1926), o poema heróico-cómico Saltapíada ou a Casula Negra (1949) e Acordes Místicos (1963). Estes os volumes que publicou. Os versos não incluidos e dispersos pelos jornais, dariam para mais volumes.” (RGC)

RESIGNAÇÃO

(Junto à sepultura de meus filhos)

Julguei que minhas mágoas iludia

chorando-vos aqui, em soledade;

mas só quando vos vir na eternidade 

há-de ter fim a Dor que me crucia.

Já vejo aproximar-se, lesto, o dia

em que tem de morrer esta saudade;

já vislumbro a perene alacridade

em que se há-de volver esta agonia.

E a minha alma não olha, sucumbida,

para a terra em que estão bebendo vida

raizes de ciprestes e de túias…

A Cruz, que é glória minha e é meu norte,

diz-me que além da Noite, além da Morte,

brilham clarões de eternas alelúias.

Dezembro 12, 2004

O meu 8 de Dezembro 

Devia ter escrito no dia, mas guardei para as açorianices de domingo. Como sabem os que me conhecem, esta data não me toca como festa religiosa, mas o dia diz-me muito, por memórias da minha infância. Nem sei se era originalidade micaelense ou se também se passava em outras terras. Era o dia das montras, costume que, ao que leio, ainda se mantém. Começava aí o período das compras de Natal e todo o comércio de Ponta Delgada se engalanava, com requintes de decoração das montras e exposição dos produtos a apetecer compra de prendas natalícias. Mais para o fim da tarde e à noite, toda a cidade, de fato domingueiro, vinha para o centro. Era difícil passarem automóveis, tal era a multidão a ocupar as ruas. Via-se as montras mas também se faziam grupos de pessoas amigas, a conversar em plena rua.

Era uma noite de alforria, para mim e para os meus irmãos habituados a deitar com as galinhas. Separávamo-nos dos meus pais, com reencontro a hora marcada. Eles iam ver as montras das poucas lojas de boa costura, de artigos domésticos ou, à falta de livrarias, as secções de livros da Papelaria Âmbar e de outras papelarias. Não faltava também a Ourivesaria Martins do Vale, para eles a melhor, dos tios do actual Presidente do Governo Regional. Que bem que ainda me lembro dos simpatiquíssimos irmãos Martins do Vale, provavelmente já falecidos. A compra de ourivesaria, sempre a acrescentar à prataria da casa, era para os meus pais, na época, o melhor meio de investimento.

Os três miúdos, ataviados de festa, fatinho igual e já de gravata, faziam a ronda das lojas de brinquedos mas tinham uma atracção especial por uma espécie de loja dos 300, que de tudo vendia, a Loja das Variedades, na R. do Valverde. E, sobretudo, o célebre pato, sobre um grande espelho debruado a prata. Mistério da física que ainda não dominávamos, o pato ia aquecendo e, com a dilatação do líquido interior, inclinava-se até um pequeno tanque de água. Arrefecia então e voltava à posição inicial.

Ah, pato querido da minha infância, bem gostava de o ter!

Dezembro 25, 2004

Presépio (I) 

Já muitas vezes aqui falei da figura emblemática do meu extraordinário avô prof. José da Costa. O prof, com minúscula, significa um modesto professor primário, mas com a verdadeira nobreza de um espírito superior e de uma cultura invulgar. Um pouco aventureiramente, já sugeri que, na sua prole de quase sessenta netos, eu era o neto preferido. Sei o que isto é. Filhos são todos iguais, mas netos, às vezes, já é diferente.

Anos e anos, sempre o meu avô fez um presépio magnífico, com figuras à Machado dos Santos, provavelmente bem antigas, mas que não sei por onde param, nas partilhas complicadas de uma família numerosa. Recolhia as melhores pedras do cascalho local para a gruta, ia ao campo recolher as palhas mais bonitas, e, principalmente, pintava ele o cenário, a anil e prata, até a cegueira o diminuir. Era então que me chamava especialmente, como seu sucessor, como também já tinha sido o meu pai. Quantos céus pintei, com estrelas e o imprescindível cometa! E quantas vezes o meu avô, já limitado na visão, confiou na “arte” do neto!

Dezembro 26, 2004

Presépio (II) 

Vou continuar a falar de presépios. Não podia deixar de recordar o grande presépio da minha meninice, o da Matriz da Ribeira Grande. Em tempos de automóvel coisa de luxo, os citadinos deslocavam-se como podiam aqueles longos 20 Km para verem o presépio espectacular, espalhado por todo o chão da sacristia – não garanto, talvez fosse outra grande sala. Havia de tudo, até, se não me engano, um comboio eléctrico e um lago com barquinhos. Em cantos diferentes, cenas da vida local, da lavoura à faina agrícola familiar, incluindo – lembro-me bem – uma matança de porco. E também carrinhos de lata, passeando-se pelas estradas estreitas do meu tempo. Bandas de música e marcha de soldados também não podiam faltar. Era difícil os meus pais convencerem-nos de que eram horas de voltar para casa.

Dezembro 28, 2004

A mijinha do Menino 

Continuo hoje em onda gastronómica, agora da minha terra. No meu tempo de menino, havia uma hierarquia bem definida de formalidades de Natal. A uns, mais distantes, mandava-se telegramas. A seguir, aqueles a quem se enviava um postal, com assinatura manuscrita. Depois outros, pessoas especiais, a quem se enviava uma oferta de doces, no nosso caso os torresmos doces, segredo de família da minha avó. Lugar especial tinham os grandes amigos e a família, que mereciam visita pessoal durante a semana entre o Natal e o Ano Novo.

Toda a gente estava preparada para estas visitas, de mesa sempre posta com doces e os indispensáveis licores, a “mijinha do Menino”. Cada família se aprimorava na pelo menos meia dúzia de licores e cultivavam algum secretismo neste primor familiar, muitas vezes o contributo masculino para as festas. Se juntarmos todas as provas da mijinha, a colecção de licores açorianos é enorme. Também eu tenho os meus segredos, incluindo uma boa dúzia de licores inventados por mim (de maçã; de zimbro; de ovo, canela e conhaque; de laranja, chocolate e vinho do Porto; de televisão!?…, etc.). Mas o licor emblemático dos Açores é o de leite. É o único licor que conheço que não passa pela preparação convencional do açúcar em xarope, é apenas um longo macerado. Há milhentas receitas, mas nunca bebi um tão equilibrado entre o doce e seco como o do meu avô materno, receita depois legada ao meu pai por falta de filho varão. Como acho que o património gastronómico se deve partilhar, embora com direitos de autor, aqui vai a receita.

1 l de leite, 1 kg de açúcar, 1 l de álcool, meia vagem de baunilha, 1/4 de uma tablete de chocolate de leite, um limão pequeno.

Misturar todos os ingredientes, com o chocolate raspado e o limão aos bocados, com casca. Agitar duas vezes ao dia, durante 10 dias. Coar por papel de filtro ou por um pano, devendo ficar transparente mas com cor dourada.

Janeiro 02, 2005

O regresso aos Açores 

A primeira açorianice de 2005 é dedicada a um velho amigo. Desde que viemos estudar, poucas vezes nos encontrámos mas, há dias, viajando juntos, pusemos as recordações em dia, numa excelente cavaqueira como ele bem sabe fazer. Reformado como eu, já concretizou aquilo que, para mim, ainda é um desejo: passar metade do ano nos Açores, a outra no continente. O que é curioso é que ele, micaelense de gema, optou por se instalar semestralmente noutra ilha. Diz-me que S. Miguel, para ele, é um sofrimento – já não é a “nossa” gente, sente-se perdido entre pessoas que não lhe dizem nada, acentuam-se-lhe as saudades da juventude.

Senti, por mim, que ele deve ter razão. Escrevi num livro que espero que saia em breve:

“Hoje, a minha cidade já não é da minha gente real, cansado que estou de desejar inutilmente um encontro casual em plena rua com um velho amigo ou simples conhecido. Passeio-me na cidade como se todos os outros fossem simples passantes. Para mim, a cidade é menos de gente e mais física, ruas e casas, mas todas a evocarem-me a gente com quem me cruzava e convivia, aquela que para mim, hoje, continua a ser a minha gente real. Recordo o tempo em que a minha propriedade da cidade fazia parte de um variado conjunto de pequenas sociedades por quotas, cada uma, como a minha e dos meus amigos, pretendendo a cidade como sua, com visão muito própria. Hoje vejo-a como uma grande sociedade anónima, de accionistas que desconheço inteiramente, o que me deixa à vontade para assumir a minha própria postura de accionista anónimo. Os outros vivem abafados na realidade de uma pequena cidade isolada, votam, discutem a pequena politica local. Eu apenas recebo os dividendos, não tenho que me preocupar com a realidade porque até nem tenho voto da assembleia geral dessa sociedade, e posso imaginar a cidade como me apraz, sabendo que nela estou a conviver com uma realidade actual, mas em que posso enxertar com liberdade a visão que desejo”.

Esta é a atitude do micaelense que lá vai episodicamente. Mas concordo com o meu amigo em que, provavelmente, não é atitude que se possa manter durante seis meses seguidos.

Janeiro 09, 2005

Picuinha histórica 

Num artigo do Público, a propósito da guerra jardinesca para desalojar do Palácio de S. Lourenço o Ministro da República, escreve o jornalista madeirense Tolentino de Nóbrega que aquele palácio foi “residência de capitães donatários, morada dos governadores gerais (1581-1640), dos capitães gerais (1640-1834) e dos governadores civis (1834-1974)”. Esta referência, que presumo correcta, surpreende-me por mostrar algumas diferenças na história do governo dos dois arquipélagos. Mas tenho que discutir isto com cuidado: da história dos Açores sempre vou sabendo alguma coisa, mas nada da madeirense – com pedido de desculpas aos meus bons amigos da região irmã. Não sabia que a instituição do cargo de capitão geral (não será capitão general?) na Madeira tinha sido muito anterior à dos Açores, que só aparece com o pombalismo, em 1766.

Mas isto serve-me de pretexto para um esclarecimento sobre uma confusão muito frequente. Capitão donatário foi coisa que nunca houve, embora se desculpe a referência por contracção da verdadeira expressão, capitão do donatário. A donataria era uma relação feudal que implicava cedência prática de soberania – esta sempre do rei – e não era, obviamente, para fidalgos menores ou cavaleiros de baixa estirpe. Dos bem conhecidos, João Gonçalves Zarco e seus descendentes, Gonçalo Velho, Rui Gonçalves da Câmara, Jácome de Bruges, Álvaro Martins Homem, João Vaz Corte-Real, etc., nenhum foi donatário. Primeiro donatário foi o Infante D. Henrique, que legou a donataria e a administração da Ordem de Cristo, intimamente ligada às descobertas, ao seu sobrinho D. Fernando, depois transmitida aos filhos deste. Quando o último, D. Manuel, ascendeu ao trono, incorporou a plena posse das ilhas no património da coroa.

O que os referidos governantes das capitanias foram foi capitães do donatário, seus representantes, por ele nomeados e a ele subordinados, embora com largos poderes, inclusive o de usufruírem alguns direitos senhoriais, como a cobrança de impostos sobre as moagens e outras actividades. Portanto, meus patrícios, embora isto possa ser uma picuinha, para sermos correctos, digamos sempre capitão do donatário.

Janeiro 16, 2005

Uma tradição micaelense de carnaval 

Quinta feira, dia marcante da minha adolescência, mandei uma mensagem à minha lista de amigos (incluindo os internéticos):

Há um costume de carnaval da minha terra que creio que não tem correspondência cá. As quintas feiras que precedem o carnaval são de amigos, de amigas, de compadres e de comadres. As pessoas visitam-se em assaltos, todas mascaradas, e o anfitrião tem que prever que vai ser assaltado e ter a mesa bem fornecida, especialmente dos fritos, que cá são de Natal, e com destaque para as excelentes malaçadas micaelenses. Hoje, é dia de amigos na minha terra. Sei que hoje, aqui, não vai haver nenhum “assalto” à minha casa. Bem gostaria. Mas é dia de manifestar a amizade.

As muitas mensagens de retorno desvaneceram-me. Sou um sentimental e a misantropia horroriza-me. Eu sou um “parasita” psicológico dos amigos. Bem gostava de ter um enterro à Big Fish, lembram-se?

Nesse dia, recordei para mim uma impagável memória de infância. Quem conheceu o meu pai, sabe que ele era sisudo, muito sério e pouco dado ao humor, a não ser umas anedotas de estlo “british”, uma influência que ele cultivava. Mas tinha um amigo impagável de alegria e humor, o meu querido amigo Teófilo. Com outro nome, será personagem importante do meu livro “O mastro do Pamir”. Um dia, amigo Teófilo obrigou o meu pai a mascarar-se e decidiu da mascarada. O meu pai foi de bebé, com uma grande fralda, touca na cabeça e uma grande chucha. O riso dos filhos ecoou por toda a R. do Saco. O meu pai visita-me sempre como nobre águia real. Um dia, vou exigir-lhe que venha naqueles apetrechos.

PS – A escrita “malaçadas” tem muito que se lhe diga. Eu fiz um híbrido de melaçadas (de melaço) e de malassadas (mal assadas). Como gastrónomo, não tenho ideia firme de qual a origem da palavra e da ortografia correcta. Como os fritos de carnaval não têm nada a haver com pior ou melhor assados, inclino-me para as melaçadas. Elas, no meu tempo, comiam-se normalmente apenas polvilhadas de açúcar mas também, como na minha casa, com calda, como os sonhos. Talvez, em tempos antigos, na frustrada tentativa de introduzir em S. Miguel, ida da Madeira, a cultura da cana, se servissem com melaço.

Janeiro 30, 2005

As lagoas de S. Miguel 

A açorianice de hoje, mais uma vez fotográfica, não é para os meus patrícios – e porque não? É principalmente para os que já se deliciaram com estas paisagens ou que ainda desejam vê-las.

Mas outras há, bem bonitas mas muito menos conhecidas: a do Canário, as Empadadas, a de S. Tiago, a do Congro, a dos nenúfares (um pequeno mimo da natureza).

Mas volto às três principais. Provavelmente morrerei com a dúvida de escolher qual é a minha preferida. As Sete Cidades perderam definitivamente a estranheza do contraste entre uma azul e outra verde, recordação inesquecível da minha meninice. Apetece-me vê-la se também quero pensar no homem, naquela pequena mancha de casas que vislumbramos entre as duas lagoas – e que gente magnífica -, lembrando-me sempre da Luísa taberneira da minha juventude, padeira de Aljubarrota transplantada para aquele covão de terra, mestra na escolha do queijo de S. Jorge com que nos recheava um grande pão, quando lá acampávamos.

A lagoa do Fogo é toda outra coisa. Nem voz de homem, nem sinal de presença animal, é pura natureza, no mais sublime, no desenho do espaço, na conjugação com um simples piar de milhafre. E, acima de tudo, o desafio ao turista apressado para se deixar estar e ir vendo muitas e muitas lagoas diferentes, que cada nuvem ao passar lhe modifica o retrato.

A lagoa das Furnas, outra diferença indescritível. É obrigatório vê-la do Pico do Ferro (melhor ainda, do Salto do Cavalo). Ela não vale por si, tem que ser vista no conjunto do vale magnífico. Os turistas visitam as Furnas num dia, vêem as surpreendentes caldeiras e comem o célebre cozido enterrado. Eu, conhecedor, posso dar-me ao luxo de ir a férias a S. Miguel só para ficar uns dias no hotel das Furnas (encantador no seu estilo modernista), descontrair-me no parque, relaxar-me junto à fonte da piscina térmica, absorver os vapores sulfúricos das caldeiras e explorar cada canto e cada nascente daquele paraíso.

Como é que posso terminar? Só parodiando uma canção pimba: “Eu tenho três amores, não sei de qual gosto mais”.

Janeiro 31, 2005

Se bem me lembro… 

Que delícia! A esta hora, ganhei plenamente o meu dia. Sem nada de jeito na televisão, fui fazendo zapping até me aparecer a RTP Memória e logo com um velho “Se bem me lembro…” de Vitorino Nemésio. Quem me dera saber conversar assim! E que comoção ao ouvir-lhe aquele tão típico “Praia da Vitoira”, emblema da pronúncia praiense partilhado pela sua boa amiga e minha querida avó.

Fevereiro 06, 2005

As memórias de infância 

A açorianice de hoje é um pouco intimista. A infindável reescrita do meu futuro livro de histórias cada vez me remete mais para a revivência das minhas memórias de infância. Na construção da minha açorianidade, e de mim próprio, são um alicerce tanto ou mais forte do que a impressão viva da diferença da paisagem, do mar, da arquitectura urbana, de tanto mais. Um homem faz-se até aos vinte e, nesses vinte, bem importantes são os da meninice. Depois, é como um vinho, ou se fez muito bom e o envelhecimento só o melhora, ou é banal e a vida estraga-o.

Quando é que acaba a infância? Podemos desenvolvermo-nos em homens-meninos, coisa muito diferente de continuarmos meninos-homens? Assunto complicado, que tem a ver com o perecimento do adquirido. Diz-se que ninguém se esquece de nadar, patinar ou andar de bicicleta, depois de aprendido em miúdo. Isto é prosaico. Há outras coisas muito mais importantes que a vida oblitera, como saber voar em fantasia, namorar aos cinco anos de forma tão diferente, sempre com a pergunta inquieta de como é o pipi das meninas, saber apreciar como néctar o dedo final da cerveja do pai nas festas do Senhor Santo Cristo. Acima de tudo, a roturante morte da infância que é dizerem-nos que o Pai Natal não existe. Na minha terra, era o Velho do Natal. Não existe? Essa agora, quantas vezes eu o vi, escapando-se rapidamente da despensa onde tinha deixado as prendas, depois de tocada a campainha a chamar a miudagem? Confesso, no entanto, que sempre me ficou a atormentar que o meu Velho do Natal não fosse a rotunda personagem a quem eu escrevia as cartas dos desejos. Coitado, o meu tio Carlos não podia fazer melhor, era magro que nem um espeto.

Há quem me diga que não teve uma infância marcante. Não há infância imarcante, pode haver é infância esquecida. Ela está lá sempre, para quem sabe ser sempre um pouco menino no fundo dos modos de adulto. Conversando melhor, tenho muito prazer em ver, frequentemente, que as minhas histórias vão evocando as desses meus amigos mais preocupados com a vida do dia-a-dia. Todas as nossas infâncias são marcantes, todos nos lembramos dela; o problema é que, em geral, as arrumamos no lugar devido de todas as memórias. São diferentes conforme a vida, mas são todas marcantes, sejam as de “gente feliz com lágrimas”, sejam as que depois acordam como “raiz comovida”.

Podem dizer-me que a sua infância foi vulgaríssima. Esquecem a escola, fosse ela nos Açores ou no Alentejo, as reguadas de uma qualquer D. Salete, o ranho sempre a correr de um tal Francisco, os traques constantes de um Zé Gordo e a cabeça sobre a carteira de um António, atascado com o seu pequeno almoço de mata-bicho, uma sopa de pão e vinho. O que é preciso é um sempre balançar entre a paixão pelos interesses que nos motivam e uma memória viva das origens.

Fevereiro 08, 2005

O meu Carnaval 

Apesar de não ser domingo, este dia não pode deixar de ser de açorianice, sobre o meu carnaval. Vou falar no passado, mas dizem-me que ainda hoje é assim. Não havia corsos nem desfiles de mascarados. Na Terceira, em tempos de jovem da minha mãe, havia umas batalhas de flores, coisa poética mas de meninas bem. Em S. Miguel, era a valer, interclassista, as batalhas de água. E tinham muito de militar, na distribuição entre combatentes de infantaria, de cavalaria e entrincheirados nas fortalezas. 

A infantaria era dos grupos ou independentes isolados que saíam à rua com as suas duas armas principais. A seringa era um grande cilindro de lata, com um êmbolo e uma extremidade afunilada. Levava uns bons dois litros de água e havia sempre as tabernas abertas onde nos podíamos reabastecer. Depois, as granadas, as limas, grandes cápsulas de estearina cheias de água – havia uns selvagens que as faziam sólidas – preparadas numas formas próprias que se vendiam por toda a cidade. Eu, os meus irmãos e mais um dos amigos do meu pelotão, passávamos os dias anteriores a fazê-las às centenas. Combatíamos na rua, peonagem contra peonagem, mas também contra os entrincheirados em casa. Estes, eram mais vítimas da cavalaria motorizada, grupos reunidos em camiões de caixa aberta, com grandes bidões de água, bombas e mangueiras potentes. Mal sabia eu que, mais tarde, também iria reencontrar os camiões de água, no Rossio, mas em condições muito menos carnavalescas!

Havia duas tácticas quanto ao uniforme. Ou fato de borracha de pescador, ilusão de armadura, ou então, como eu, mangas de camisa à bárbaro porque, fato especial ou não, ficava sempre molhado à mesma. E não havia salvação. Quem saía à rua neste dia sabia bem qual era a regra do jogo. Imunes à molhadela geral só as crianças pequenas, os soldados fardados, os mascarados e as danças.

As danças eram impagáveis, descidas à cidade de todas as freguesias. À frente o general, de farda de gala, com um indispensável apito a marcar as ordens. Depois os pares de homens e de “mulheres”. Que mulheres! Façanhudas e às vezes até de bigode, peito enorme, maquilhagem o mais garrido possível, sapatilhas porque os pés de camponeses não davam para calçado feminino. Havia duas modalidades: as danças de arcos em grinalda, como aqui as marchas dos santos populares, e as de cadarços. Coisa curiosa, vemos estas também na Catalunha, danças à volta de um mastro, de que pendem fitas seguradas pelos dançantes e que a coreografia vai enrolando à volta do mastro.

O mal é que as danças terminavam sempre prematuramente. Com paragem obrigatória em cada taberna, ao fim já nem apito de general dava para compor o grupo e o vinho pesava mais do que a vontade de entrudar.

Fevereiro 13, 2005

Os romeiros de S. Miguel 

Hoje é o primeiro Domingo da Quaresma, o que impõe um tema para as açorianices: os romeiros de S. Miguel. Mesmo para um não crente, a açorianidade não se pode dissociar da especial religiosidade do povo açoriano, profundamente ligada ao Deus judaico-cristão mas também com muitos vestígios de paganismo medieval, cristalizado em séculos de isolamento. É a religiosidade ancestral da necessidade de socorro em relação às malfeitorias da natureza. Senhores e camponeses, ricos e pobres, fidalgos povoadores e plebeus que com eles foram à aventura, todos ficavam igualados na pequenez indefesa de uma fúria telúrica, hoje muito atenuada, mas ainda bem viva nos primeiros tempos do povoamento.

Os primeiros ranchos de romeiros formaram-se em consequência de calamidades que açoitaram o povo micaelense e que, na linguagem popular, têm o nome de “castigos”. O micaelense de 500 nada sabia das forças da natureza, mas tinha consciência dos seus pecados, cujo castigo era a ira divina, terramótica ou vulcânica. Segundo a tradição, os romeiros tiveram origem no grande sismo de 1522 que parcialmente destruiu Vila Franca do Campo, destruição completada pelo desabar de um monte que lhe ficava a cavaleiro. De facto, parece que as romarias são um pouco posteriores e datam de outro cataclismo, as enormes erupções vulcânicas de 1563, que atingiram praticamente toda a ilha. A lava escorria por todos os montes, iluminando a noite, enquanto as cinzas e fumos toldavam o dia. O melhor é ler Gaspar Frutuoso.

Castigos de Deus, ainda hoje assim os vê o micaelense e pede misericórdia nas romarias da Quaresma. São dezenas, cada ano, os ranchos de romeiros, grupos só de homens, não só populares mas também, com frequência, gente abastada. Confessados e comungados na manhã do domingo de partida, percorrem a pé toda a ilha, subindo e descendo montes para visitar todas as igrejas e ermidas de invocação da Virgem. A indumentária é uniforme: sapatos grossos, roupa simples, um xaile de lã aos ombros e um lenço enramado na cabeça, saca de pano à bandoleira para os víveres, um bordão e, inevitavelmente o terço, aliás dois, um na mão e outro ao pescoço – já vão ver porquê. Formam em duas filas, de cada lado da estrada. Ao meio, só algumas figuras destacadas. À cabeça, o porta-cruz, o mais novo do rancho, geralmente uma criança, que isto de romeiro começa de pequenino, quase que como um rito de iniciação. Até nisto há regras; a cruz está erguida e virada para a frente enquanto os romeiros rezam cantando, mas o porta-cruz vira-a para si e reclina-a sobre o braço esquerdo enquanto os romeiros descansam. Ainda ao meio, mas atrás, vem o mestre, obedecido por todos os romeiros como se fosse abade medieval. A fechar, o procurador das almas, o que recebe os pedidos de oração das pessoas que vêem passar o rancho.

A disciplina é rigorosa. A boca do romeiro só se abre para cantar as rezas, qualquer outra conversa necessária só depois de autorizada pelo mestre; regra cumprida mesmo nos momentos de descanso, deitados nos taludes de leiva à beira da estrada, abrigados debaixo de uma criptoméria da chuva incessante de Abril.

Nas conversas excepcionalmente consentidas, nunca o tratamento pelo nome. Durante a romaria todos têm só um e o mesmo nome, irmão. Mesmo à noite, recolhidos por quem os acolhe, evitam conversas uns e outros, quase que só um agradecimento pelo jantar obrigatoriamente frugal, banho e cama que lhes são dados. E é sagrado dar-lhes abrigo, como sempre fez a minha mãe. Muitas vezes fui eu dormir para o sótão – a falsa, como se diz na minha terra – para um romeiro dormir na minha cama, não sem antes rezar um terço pela família de acolhimento. Este terço é rezado com aquele que eles trazem ao pescoço e é deixado à guarda da dona da casa – que frequentemente também reza por ele, com a família – até ser recolhido antes da partida para mais uma jornada.

Uma das obrigações dos romeiros é a encomendação das almas, cantada como que num lamento vindo ainda dos tempos medievais.

As gentes por que passam os ranchos de romeiros limitam-se a um código simples, pergunta quase silenciosa do procurador das almas, “Quantas?” E é uma troca de deveres, orações por quem pede, no número de romeiros, e, tantas quantas as almas encomendadas, ave-marias cantadas pelos romeiros, ao longo da estrada, a terminar, à chegada a cada igreja ou ermida, pela tal linda e comovente oração medieval da encomendação das almas. Curioso é que o número real de romeiros é sempre acrescentado de três, porque com eles vão também três romeiros invisíveis, Pai, Filho e Espírito Santo, outras vezes Jesus, Maria e José.

Nas igrejas por onde param, e onde se vê que há um rancho pelos bordões todos alinhados no adro, cantam a encomendação das almas. Ao longo do caminho, naquela contabilidade complicada de almas encomendadas e de orações, gerida pelo procurador, que as vai abatendo da lista terço a terço, vão recitando incessantemente a sua característica Ave Maria, completamente diferente da litúrgica, que acho que vale transcrição:

Sempre o Senhor é convosco

Bendita sois vós Senhora

Entre todas as mulheres

E a todas superiora.

Bendito é o fruto

Do vosso ventre Jesus!

Jesus que por Vosso Amor

Morreu nos braços da Cruz.

Santa Maria que sois

Mãe de Deus e nossa esperança

Nossa Mãe, nossa alegria

Nossa paz e segurança.

Rogai por nós pecadores

Ó doce estrela do Norte

Agora, sempre e depois

Na hora da nossa morte

Assim seja, assim o espero,

A minha alma em Vós confia,

Ave, Maria assim seja

Assim seja Ave, Maria!

Ave, Maria de Deus Padre

Ave do Filho e Sacrário

Do Espírito Santo Esposa

Da Trindade o Santuário.

Com esta vivência infantil e com os meus hábitos de família, não admira que um impenitente incréu, como eu, me continue a impressionar tanto com as manifestações religiosas do meu povo, genuínas e ancestrais. É uma dimensão cultural que não enjeito.

Fevereiro 27, 2005

O meu professor de Moral 

Há coincidências curiosas. Pessoas de que não nos lembramos há muitos anos e que, subitamente, nos são evocadas por mais do que uma vez, em breve espaço de tempo. Numa viagem recente com um amigo, ri-me com o que ele me fez recordar de uma figura da nossa vida de liceu. Voltei a recambiá-la para o esquecimento, mas ontem a minha mãe, ao que creio pela primeira vez, referiu-me outra vez o nome. Tomei isto como um sinal de sentido obrigatório, a exigir-me que fale do meu professor de Moral.

Foi um precursor de alguns dos conhecidos padres mundanos. Creio que a humildade não era virtude cristã de sua grande estimação. Normalmente, era ele que celebrava a missa dominical a que ia a minha família. As suas homilias eram um portento, não só pelo empolamento pomposo de uma entoação de fala que cultivava, começando a frase em dó menor e acabando em si maior, mas por coisa mais invulgar: a exibição de cultura. Entre a explicação de uma parábola ou a citação de um evangelista, mais de metade da prédica eram citações que iam desde Pascal até, pasme-se, Einstein. Até fazia critica de Freud, imaginam bem a que propósito!

No desabrochar da minha adolescência, quando ainda me confessava (quase sempre o mesmo pecado), era o porta-voz de um anúncio terrível de inevitável eternidade de fogo e enxofre.

Tinha uma coisa positiva… Entendia que o seu ensino devia incluir a formação cívica. O problema é que este cívico tinha para ele um significado muito particular, ao seu estilo mundano: o da etiqueta de vida social. Aí era impagável. As histórias que me foram ocorrendo durante esta escrita são demais para uma entrada, mas não resisto a contar – ou a recordar aos do meu tempo – a mais emblemática, sobre o tema de como nos sairmos bem de situações embaraçosas.

“Viajava eu no Vulcânia e serviram ao jantar uma entrada de camarões, coisa então desconhecida nos Açores. Entretido em conversa científica com um prémio Nobel americano (JVC: esta é minha, desculpem lá meter a colherada), mal reparei que o criado me pôs junto ao prato uma taça com água e uma rodela de limão e, logicamente, comi o limão. Pareceu-me então que os companheiros de mesa me olhavam surpreendidos e reparei que estavam era a molhar os dedos. Ora vejam, meus meninos, como é que devemos proceder nestas alturas. Virei-me, chamei o criado e disse: gosto tanto de limão que primeiro como-o e só depois é que o uso para lavar as mãos. Traga-me outra taça, por favor.”

PS – Nas nossas festas de liceu havia sempre o número imprescindível da impagável imitação pelo José Salomé. Por onde andará o Salomé? Se algum leitor o souber, diga-lhe, por favor, que este escriba lhe envia um abraço saudoso.

Março 06, 2005

Restaurantes de cozinha regional micaelense 

Já aqui referi a pobreza da oferta gastronómica tradicional na restauração da minha terra. Há bons restaurantes, às vezes quase tascas, onde se come bem. Mas ou são fora da cidade ou então não adequados a um convite a um hóspede de cerimónia. Não estou a ver o reitor da Universidade levar um convidado a um dos meus preferidos de Ponta Delgada, bem popular, o Avião (tasca infecta no meu tempo). Também não ao balão da Ribeira Grande, à tasca de peixe da Relva de que já não recordo o nome (mas que bela abrótea, de todos os feitios), ao Zé da Atalhada, mas, porque não, já com melhor aspecto, ao muito bom Jaime da Vila Franca.

Nesta minha última ida à minha terra, tive uma surpresa. Não vou fazer publicidade, mas espero que as agências de viagem o conheçam e recomendem aos turistas de qualidade. É um restaurante de hotel. Ao almoço, os clientes têm, em bufete, larga escolha. Podem ir para tudo o que é convencional, mas também podem fazer uma entrada como eu fiz: morcela (pena que mal frita e de qualidade mediana (então não há as do Costa e as do Cavalo Branco?), linguiça aceitável (há muito melhor), torresmos (têm que ser mesmo de molho de fígado!), queijo fresco com malagueta, sarrabulho e uma pasta de linguiça (ambos muito bons). Imperdoável, faltou o pé de torresmo e uns “charrinhos” de molho de vilão, servidos frios, no dia seguinte. Intenções muito boas mas, como vêem pelos parênteses, algumas falhas.

Passando aos quentes, o mesmo critério. Alguns pratos para turistas que não querem aventuras gastronómicas, já nem lembro quais, mas, em destaque, o nosso polvo guisado e a feijoada assada, tipicamente micaelense. Faço os mesmos reparos. Quanto à feijoada, muito bem, embora lhe faltasse o mel e a canela, imprescindíveis. O polvo é que não! Molho mal apurado, ausência do indispensável cravinho (ou da pimenta da Jamaica), batatas no próprio guisado (concordo que o turista quer acompanhamento, mas façam umas simples batatas cozidas à parte, porque não há nenhum polvo guisado com esmero que resista à junção das batatas ao guisado).

Desilusão na mesa das sobremesas. Não conhecem a riquíssima doçaria açoriana? E os bons queijos? Nem sequer um bom Topo, muito menos um Pico que não se encontra cá.

Em conclusão, iniciativa muito meritória, oportunidade para um micaelense poder mostrar a um amigo, em ambiente de qualidade, a nossa gastronomia. Mas muito a melhorar, na qualidade e confecção genuína. Onde estão os bons cozinheiros de S. Miguel, herdeiros da cozinha de família? Grupo Bensaúde, não querem um bom contrato de consultoria, idealização de ementas e fornecimento de receitas genuínas?… Sugiro também uma pequena secção da cozinha aristocrática açoriana. Tenho muito a fornecer!

Saudades da Terra 

Hoje arrisco-me a uma entrada sentimentalista, talvez piegas. Quinta feira, em época de Quaresma, passeando-me por Ponta Delgada, tive uma grata mas comovente surpresa. Comecei a ouvir, ao longe, uma toada familiar, que se foi revelando como a tradicional ave-maria dos romeiros. Pouco depois, lá os vi, em plena rua central.

Que saudade, desde há mais de quarenta anos! Calculando para onde iam, lá os segui até à igreja da Esperança e assisti a toda a cerimónia, primeiro no adro, depois dentro da igreja. Relembrei cânticos esquecidos, enquanto conversava com um velho da Lomba da Maia, origem do rancho, que chorava porque uma artrose já não o deixava ir no rancho, mas que tomava diariamente a camioneta para se encontrar com os seus romeiros, a maioria dos quais na casa dos trinta, sinal da pujança desta tradição micaelense, única.

Ouvi a encomendação, as orações pelas almas – que, mesmo à última hora, já no adro, as pessoas iam depositar na conta do procurador das almas -, o pedido de protecção contra os castigos, o louvor à Senhora da Esperança, anfitriã de momento daquele rancho. Para terminar, a emoção do pungente “Senhor Deus, misericórdia!”, que está no meu “site” como oração mista, de mulheres e homens, no terço do Espírito Santo, mas em tudo igual à dos romeiros.

Porque é que falei em pieguice? Porque não posso deixar de fazer uma confissão: bem bom que tinha comigo um lenço, porque bastantes foram as lágrimas de comoção que tive que enxugar. Quando a açorianice dá para sentimentalismo… Desculpo-me com o tal velho, também com olhos rasos de água.

PS – Que pena não ter tido comigo nem gravador nem máquina fotográfica. Aqui fica uma que googlei, com agradecimentos a um autor desconhecido.

PS 2 – Falando sobre isto com o Reitor da Universidade, meu anfitrião, disse-me ele que tinha acabado de despachar uma licença de uma semana para um professor poder ir num rancho de romeiros. Não admira, é filho de um professor de liceu, romeiro inveterado, amigo de família, Hoje já com idade impeditiva de tal esforço físico. Herança de família não são só dinheiros, são também as tradições.

Os pícaros açorianos 

Em alguma coisa temos que ser quadrados. Para mim, é no respeito auto-submisso por alguns hábitos estabelecidos, entre os quais a sesta de Sábado. Das duas às quatro, sem falta. Às vezes, estes hábitos querem ter vida própria, libertarem-se do nosso domínio e foi o que me aconteceu ontem, quando o sono se aborreceu de estar ao meu serviço e desertou meia hora antes do regulamento. Como sou teimoso, cumpri em semi-modorra, crepuscular, o tempo faltante. Nestas alturas, vêm-me à cabeça ideias tontas ou palavras fora de qualquer lógica. Ontem, não sei porquê, foi “picaresco”.

Gosto muito das novelas picarescas. Releio sempre com prazer o “Lazarillo de Tormes” ou o “Chapéu de três bicos”. O significado de picaresco tem variado e não merece unanimidade. Os interessados podem ler na internet um bom mini-ensaio sobre o tema. Eu uso-o impropriamente num sentido muito largo: uma narrativa, novela ou romance sobre personagens que alguns diriam “simplórias”, ou tipos populares vivaços e extravagantes, tudo recheado obrigatoriamente com muito humor. Até mesmo, numa noção muito irregular e cortesã do picaresco, para um certo estilo de narrativa sarcástica, de que destaco, como exemplo o meu muito relido “A crónica do rei pasmado”, de Ballester.

O que é que isto tem a ver com açorianice? É que, para mim, muita da literatura regionalista/universal açoriana me evoca, com imprecisão, confesso, a literatura picaresca. Os contos de Nemésio estão cheios disso, bem como a trilogia de romances de Cristóvão de Aguiar, “Raiz comovida” – desculpa lá, meu querido amigo, se levas isto a mal, mas é um grande elogio. Mesmo autores desconhecidos, como Tomás Vieira, essencialmente um bom pintor, mas que se aventurou pela escrita numa narrativa pitoresca/picaresca, “Herdar estrelas”. Vou deixar aqui um exemplo, o final do conto “A burra do Lexandrino”, de Nemésio. Aquele Lexandrino conhecido do tio Matesinho, que ia dar água à burra à meia noite.

Em vão João Calceta, prático e piteireiro, queria obrigar as ventas do garrano, mal babadas da água, ao tanque espelhento de lua e sonoro das bicas a correr. Cego para fontes de amochar, sedento sim mas da burra, o Fadistinha fincava-se nas ferraduras de trás e sacudia o focinho.

– Ah, filho da mãe! – careteava o Calceta, passando a arreata à mão esquerda para o esmurrar com a. direita: – Come-te a natura, estapor?! A fome é tanta, exquemungado, que já uma burra te serve prò pulga-piolho, ladrão?! Olh’ … olh’ … olha! …

– Fuge, sô Lexandrino! Fuge! … – grita-lhe Camarinho. Mas já não foi preciso, nem. ao Calceta o reparo, nem ao Camarinho o arreda. Certeiro, decisivo, o garrano do Calceta fez o que tinha a fazer. E, diante do Camarinho e do Furão dobrados a rir pelos rins, diante do Çalceta varado ao ver o seu rico garrano em acção (com licença!) de padrear, Lexandrino fitava os cabeções_ do capote como quem se livrou de boa. Depois, fitou Carlota. Não mais me há-de esquecer o seu olhar dorido ante a burra já dona, seu ar de decepção, de escândalo e de engulho! Nem noivo preterido, nem amante logrado fizeram jamais a cara siderada de Lexandrino diante da trela caída, da burra serena e fecundada…

Do coito nocturno e escandaloso – sacrílego, se atendermos ao que Lexandrino, pajem de boa fé, ia cantando à ilharga dela – nasceu (para encurtar). a mula do Jé Inácio. Como saísse rabeira, cor de café com leite, e sendo o garrano do Calceta negro como azeviche,- a burra do Lexandrino perluxosa e alvacenta, Joaquim Camarinho declarou rudemente, coram populo :

– Sai ò pai e atira à mãe…

(Eram assim, cândidos e brutais, os velhos com quem me criei e que meu Pai me ensinou a estimar.)

Que a burra do Lexandrino foi leviana e devassa?! Mas se ela é que era a mãe da mula do Jé Inácio, casta, redonda, rabeira, que me levou de carroça à primeira entrevista de amor, com o coração aos pulos? ? E se o Sr. Lexandrino, que ensinou meu Pai a cantar, a criou como a uma filha? … Façam o favor de me dizer como é que a hei-de julgar…

Perdoem-me o gosto fora de moda, o desprezo pelos prémios. Para mim, a literatura portuguesa do séc. XX, fora o caso especial de Pessoa, teve dois gigantes: Aquilino e Nemésio. Mas esta leitura tem efeitos pessoais negativos. Relendo “A burra do Lexandrino”, perdi a vontade de continuar a trabalhar na minha interminável narrativa de “imagino-memórias”. Há que ter a noção dos limites. Não podemos ser bons em tudo.

Março 13, 2005

Viagens para os Açores 

Nunca viajei na Air Luxor, não sei como serve, só tem para mim a desvantagem de ser madeirense (bairrismo entre ilhéus…). Agora que houve novo contrato de viagens para os Açores, diz-se que ficou afastada por arranjos entre a TAP e a Sata. No novo contrato, impôs-se como condição o serviço a cinco ilhas. Na minha recente ida a Ponta Delgada, já fiquei prejudicado, por uma incrível escala em S. Maria, aterragem e descolagem (parece que não, mas o físico ressente-se), um quarto de hora metido no avião sem ar condicionado, para saírem três passageiros e entrarem quatro.

Talvez em consequência deste novo contrato, o serviço ficou intolerável, sem que me pareça ter havido diminuição das tarifas. Seja qual for a hora do voo (por exemplo os voos Lisboa-Ponta Delgada das 12:20 às 13:35 ou das 19:10 às 20:25) acabaram as refeições quentes. Serve-se apenas um pequeno cacete, de pão banal, com os mais vulgares recheios de sandes, e uma pequena sobremesa, tudo a temperatura frigorífica. E isto com a assinatura de Vítor Sobral, que vergonha para um chefe que respeito. A partir de agora, convite só em executiva!…

Sobra uma vantagem. O Pico passa a destino dos voos nacionais. É uma ilha magnífica, que só fica atrás do Faial e de S. Jorge numa coisa: a vista do Pico! É das ilhas mais preservadas da corrupção da antiga paisagem pelas exóticas criptomérias e pelo domínio paisagístico das pastagens. Não vou descrevê-la, nem falar dos biscoitos, dos mistérios, dos currais de vinha, da bela arquitectura popular. Tudo isto vem nos guias turísticos ou na internet.

Prefiro falar dos homens, repescando uma entrada antiga. Micaelense fanático como já viram, com metade dos genes e grande parte da educação terceirenses, confesso-me um admirador porventura idílico das gentes do Pico, os picarotos. Não conheço nenhuma simbiose tão grande entre gente do mar e da terra. Nas outras ilhas, ou se é camponês ou se é pescador. São mesmo quase duas culturas diferentes, como Armando Côrtes-Rodrigues tratou com grande mestria dramatúrgica e um grande sentido telúrico na sua peça, hoje esquecida, “Quando o mar galgou a terra”, quase tão importante como o “Mau tempo no canal” para se ter uma ideia do carácter das gentes açorianas. No Pico, o foguete do homem da vigia das baleias transformava num ápice o camponês em pescador de baleias. Enxada abandonada, farnel esquecido, era ver quem mais corria pelas ladeiras a chegar ao cais e tomar o seu lugar na canoa baleeeira: mestre, arpoador, trancador ou simples remador.

Enquanto vivi em Ponta Delgada, até ir para a universidade, não tive contactos com jovens picarotos. Conheci-os depois na universidade e ficaram dos meus melhores amigos. Aliás, não é difícil. O picaroto, se é amigo, é-o mesmo. O carácter espelha-se-lhes no físico, frequentemente maciço e entroncado, a que a tez clara e os olhos azuis dão um ar pouco comum em Portugal.

E, ao mesmo tempo, o picaroto é doce, tem uma alma de criança, uma simpatia natural e espontânea que encanta todos os visitantes. Parece que não precisam de atitudes de defesa, eles que vivem sob a protecção do magnífico totem que é a montanha do vulcão. E, para não falar só das gentes, tendo eu como insuperável, porque na matriz da minha primeira memória do mundo, a beleza de S. Miguel, e apesar da difícil escolha entre a semelhança/diferença das ilhas, acho que nenhum turista pode ir aos Açores sem visitar essa pérola da construção telúrica que é a ilha do Pico.

Tenho a impressão de que esta ligação directa para o Pico vai mudar substancialmente o turismo das ilhas centrais. Até agora, ia-se e ficava-se no Faial, num dia tomava-se o barco para a Madalena para uma breve volta ao Pico e regresso vespertino à Horta. Afinal, o Faial vê-se num dia, incluindo uma breve ronda pela cidade da Horta, vila engraçada mas minúscula, promovida a cidade pelo seu filho Duque de Ávila. Agora, aconselho o inverso aos turistas. Vão é daqui directos ao Pico, por três dias e façam a viagem inter-ilhas ao contrário, para uma ida ao Faial de manhãzinha até ao fim da tarde.

Março 20, 2005

A Loja Correia 

Provavelmente já foi há bastante tempo, mas só na minha última ida a Ponta Delgada é que reparei numa coisa tristemente marcante, o desaparecimento da Loja Correia, emblema do comércio chique, na Rua Nova da Matriz (aprendi com a minha avó, para António José de Almeida já tenho a de Lisboa), em que se esfumaram fortunas de gastadoras compulsivas.

Fez-me logo lembrar a velha D. Guidinha Pimentel, figura bem simpática da minha juventude. A Guidinha era um encanto de pessoa, mas mais surda do que uma pedra. Admiravelmente, isto não a impedia de fazer a sua vida como professora de piano, de casa em casa de gente bem que queria as suas meninas bem prendadas. Lá que o Beethoven compusesse surdo, compreende-se, mas como é que a Guidinha corrigia os desafinanços das suas alunas? Também para aquilo em que elas o usavam, para umas exibições do “Für Elisa” para tios duros de ouvido, qualquer coisa servia.

Grande vício seu, para que não tinha meios, era embonecar-se. Não lhe bastavam os vestidos e chapéus ratados oferecidos pelas amigas, era também cliente diária da Loja Correia. Ainda a loja não abrira, Guidinha já estava a marcar o ponto. Deixavam-na à vontade na sua pesquisa de novidades, sempre indecisa entre o vestido salmão e o saia-casaco lilás, porque a sua paleta de cores, adequada a uma virgindade serôdia, era limitada, entre os extremos inadmissíveis do cor-de-rosa de calafona e do roxo episcopal.

Mas não era bem aquele, lá o voltava a pendurar e a tentar-se por outro. Finalmente, a escolha semi-definitiva e a sala de provas, mas sempre algumas dúvidas. “D. Mariana, parece-me que este me cai bem, mas se calhar fica melhor com o laço daquele outro”. “Não há problema, D. Guidinha, vamos já experimentar”. Meia hora de costura até à prova final. “Sr. Correia, acho que não me fica mal, mas tenho que pensar. Amanhã volto cá”. “D. Guidinha, por quem é, estamos sempre às ordens. A loja é sua!”.

PS – Twilight zone… talvez mais para lá do que para cá!

Ainda a Guidinha

Como a DK, em comentário, ficou na dúvida sobre a veracidade da Guidinha, e como estou em veia de imaginação, vou então contar outra estória, lembrando-me da sua surdez, mas esta sem ambiguidades. É mesmo inventada.

A Guidinha, para quem as poucas lições de piano mal davam para pagar a renda de casa, jantava em ronda pelos muitos amigos e, frequentemente, na minha casa. Um dia, vi que a Guidinha, sentada ao meu lado, mirava com curiosidade um grande penso que eu tinha na mão. Então, expliquei-lhe, em longa conversa porque não consigo contar nada em duas palavras, o que tinha sido aquilo. Eu tinha resolvido, pela primeira vez, fazer um bolo. Belo bolo de chocolate, às camadas de massa e creme de chocolate, esmeros de vigilância do forno a vigiar a assadura, com ajuda da Ascensão. Eu, esbraseado com o calor do saudoso fogão de lenha monumental, de ferro e latão, ao centro da cozinha. Tanto abri e fechei o forno, a espetar palito no bolo, que uma vez me distraí e encostei a mão à chapa quente, com resultado numa profunda queimadura. Durante a explicação, a Guidinha mostrou a maior atenção, com muitos “Ah”, “não me digas”, “foi assim?”. Acabada a conversa, a sua curiosidade tanto tempo reprimida pelo meu falar incessante, não se conteve: “Ó meu filho, tenho estado a reparar, o que é que tu fizeste nessa mão?”

Abril 10, 2005

Um ícone da cozinha açoriana 

A açorianice volta-se hoje, outra vez, para a cozinha. Vício meu. Já aqui escrevi que é difícil falar de cozinha açoriana, tão diversa ela é, embora com traços comuns. No entanto, há muitas semelhanças – semelhanças, só – entre algumas coisas tradicionais, como sejam os enchidos, os torresmos de porco, as lapas de molho Afonso e o arroz de lapas, o peixe recheado, o peixe frito com molho de salsa verde, pouco mais, que, com muitas variantes, se comem em todas as ilhas. Sobressai, na identidade do arquipélago como um todo, um prato comum a todas as ilhas, certamente ancestral, com pequena variedade de ilha para ilha: o polvo guisado. Ainda por cima, é o prato de cozinha açoriana mais fácil de “imitar” pelos meus amigos continentais.

Ainda há dias, elogiando uma ementa regional de um hotel de Ponta Delgada, abri reparo para a má qualidade do seu polvo. Comecemos por uma receita típica, que vos vai mostrar como, aparentemente, este prato excelente é tão fácil de fazer. Conheço muitas receitas, mas agora, perdendo talvez clientes para o meu próximo livro, vou revelar a da minha avó paterna, uma especialidade. Aparentemente, a receita é simples, tal como a publicarei:

Um polvo com cerca de 2 kg, 1,5 dl de óleo, 3 cebolas, 3 dentes de alho, cerca de 0,5 l de vinho de cheiro, uma folha de louro, 1-2 cs de massa de malagueta, um ramo de salsa pequeno, sal, pimenta preta e 4 cravinhos.

Cortar em pedaços pequenos o manto e os tentáculos do polvo. Refogar as cebolas e os alhos, tudo picado, a folha de louro, o ramo de salsa, inteiro, a massa de malagueta, sal, pimenta preta e os cravinhos. O polvo pode ser juntado logo no princípio do refogado ou uns minutos depois (eu prefiro), quando a cebola começar a alourar. Deixar reduzir um pouco a água destilada do polvo (5 minutos em lume alto) e cobrir com vinho de cheiro. Apurar bem, a lume médio-baixo, juntando um pouco de água quando necessário.

Agora vêm os problemas para os meus leitores do continente. Primeiro, como atenrar o polvo, coisa essencial? A técnica tradicional é batê-lo fortemente com o rolo da massa. Puxa pelo físico. Aquilo que faço sempre, adaptando uma velha técnica laboratorial, é simplesmente congelá-lo e descongelá-lo, o que parte bem as fibras, sem prejuízo do sabor.

A seguir, outra coisa esquisita da receita, o vinho de cheiro, que entrou nos Açores depois da praga da filoxera. No continente, este vinho, chamado morangueiro, compra-se – clandestinamente – a produtores individuais no Minho e também na zona da Bairrada. Mas, sendo muito difícil de encontrar, pode-se substituir pelo vinho mais próximo em travo e acidez, que é o verde tinto, o mais carrascão possível.

Problema mais difícil é o da malagueta, a pimenta da terra. Não se vende cá. A malagueta açoriana, que uso em muitas receitas, não tem equivalente. Hoje vejo com frequência nos supermercados malaguetas vermelhas, grandes, com cerca de 10 cm, produzidas em Portugal. São uma razoável aproximação da malagueta açoriana, embora muito mais picantes e com menos sabor. Se as encontrarem cá, abram-nas ao meio, retirem completamente as pevides que são muito picantes, deixem em bastante sal durante duas semanas no frigorífico, a macerar e moam no mixer. Usem esta massa em muito menor quantidade do que indico para a malagueta açoriana porque, como disse, é muito mais picante, mesmo sem as pevides. Com parecença distante com a malagueta, mas mesmo assim a menos afastada por parte de todas as “pimentas” que conheço, sugiro a pimenta da Caiena, que se encontra facilmente entre nós, em pó, usada em dose que resulte num picante marcado mas não excessivamente forte. Ainda outra possibilidade, muito menos canónica, é a de misturar um pouco de malagueta picante com massa de pimentão. E não esqueçam que, se a malagueta for muito salgada, não devem salgar demais o guisado.

Depois, a cozedura do polvo é o ponto critico deste prato. A altura do lume deve ser a adequada para que, ao fim de cerca de 45 minutos, o polvo esteja bem tenro e o molho muito apurado. Se, para apurar o molho, o que é essencial, tiver que se prolongar a cozedura, corre-se o risco de o polvo começar a endurecer. É melhor retirar o polvo e apurar mais o molho. Apurar significa um ponto muito critico, questão de minutos, entre um molho muito líquido e um molho detestável de óleo com manchas de escuro do vinho. O ponto certo é um molho aquoso mas grosso, com olhos bem visíveis de gordura. Só a experiência é que domina isto.

Finalmente, o acompanhamento. Como é muito vulgar em pratos da cozinha açoriana, este come-se sem acompanhamento, só com o pão ao lado a embeber no molho (não é indelicadeza, na minha terra, se não como é que se podia comer alcatra?). Há quem guise batatas aos cubos no molho do polvo, coisa que horrorizava a minha avó e a mim também. Penso que “enfarinha” o molho e o degrada e nunca o faço. Mas, como os leitores estão habituados a acompanhamentos, sugiro umas simples batatas cozidas à parte ou um puré de batata. Ou então que não façam o polvo como prato mas sim como entrada, sem acompanhamento. Duvido é que os convidados consigam comer qualquer coisa a seguir!

Estão a ver como uma receita aparentemente simples se pode tornar complicada? Nenhum livro de cozinha é supletivo da boa técnica culinária. É isto que faz os chefes, para além do bom gosto, obviamente.

Abril 17, 2005

Turismo de S. Miguel 

Não há mais de dez ou quinze anos, comecei a ver em S. Miguel um turismo especial. Já então havia programas de verão para continentais, por vezes programas modestos em hotéis de 3 estrelas, mas o que mais notava, nos meus passeios, eram os turistas de elite, abominando Algarve e Benidorm. Ingleses, alemães, franceses, nórdicos, de carro alugado a descobrir a ilha, com aquele ar indefinível de comportamento e vestuário que aponta para gente educada. Muitos diria que eram universitários. Encontrava-os às vezes nos miradouros, já eles lá estavam e ficavam depois de eu partir, agarrados a leituras que iam intervalando com a contemplação da paisagem. Encontrei-os sempre no museu – quantos turistas o visitam hoje? – e nas livrarias. Vi-os comprar, sem discutir preços, bordados e louças regionais. Presumo que fossem clientes de bons restaurantes e que procurassem a gastronomia tradicional. Dizia para comigo: este é o turismo que quero para a minha terra: poucos mas bons.

Hoje, é uma desgraça. O novo boom turístico fez-se tipicamente com vagas de escandinavos de classe baixa. Dizem-me que há vários charters semanais que despejam estes turistas para bons hotéis, desperdiçados, e que só vêem a ilha em excursões programadas. Raros alugam um carro, coisa imprescindível para quem quer conhecer verdadeiramente S. Miguel. Do tal aspecto educado, nem vislumbres. Nem fazem despesa que fique na ilha, a não ser uma cerveja se o calor aperta. É só vê-los pela cidade, depois de uma ida ao Manteiga, cheios de sacos de plástico com víveres para todo o dia. Lembro-me de uma vez, ao pequeno almoço no mais famoso hotel micaelense, haver um grande grupo destes e uma senhora, arranhando inglês, me dizer: “eat, eat, it’s for all the day”.

Provavelmente, isto já é irrecuperável e afecta a imagem do turismo de qualidade. No entanto, há dois nichos de qualidade que julgo que deviam ser explorados pelo turismo micaelense, com uma campanha bem dirigida. Um é o turismo de empresa, seja para reuniões de trabalho, seja para férias de “fringe benefits” aos seus quadros. O outro é o “turismo” científico, congressos e “meetings”. Neste caso, como nenhuma reunião científica internacional dispensa hoje a presença tanto de europeus como de americanos, S. Miguel tem uma localização geográfica privilegiada. Precisa é de ter infra-estruturas adequadas para essas reuniões, um mini-centro de congressos e um serviço de “organização de eventos”, seja uma empresa especializada seja uma das agências de viagens.