Nota prévia: A minha mãe, na sua compulsão pela escrita, que eu herdei, escreveu no fim dos seus oitentas uma crónica sobre as festas do Espírito Santo. Faltou-lhe o componente gastronómico, à terceirense. Vou preencher essa lacuna, com um excerto do meu livro “O gosto de bem comer”.
Função do Espírito Santo (Terceira)
(…) Era imperdoável não incluir uma referência icónica do património gastronómico açoriano, reflectindo uma profunda tradição dos ilhéus, que é a da refeição do dia do Espírito Santo, uma festa especialmente importante nos Açores. Aliás, dobre-se a língua, com o sentido de respeito telúrico que os açorianos têm para com o altíssimo terríbil, semeador de vulcões e sismos: na minha terra diz-se o Divino Senhor Espírito Santo, às vezes apenas o Divino. Com muitas variantes, mas não substanciais, a cozinha do Espírito Santo faz-se em todas as ilhas, mas atinge o seu ponto alto na Terceira, de onde me vêm as influências maternas.
O culto do Espírito Santo parece ter origens nas grandes conturbações milenaristas, com a ideia da proximidade de uma idade do Espírito Santo, mas veio a tomar forma mais aparente por acção dos franciscanos espirituais, perseguidos na França e na Itália (recorde-se “O nome da Rosa”, de Umberto Eco) mas bem acolhidos em Aragão. Daí ser ideia bem implantada que o culto do Espírito Santo teria vindo para Portugal com a Rainha S. Isabel. Ao fim de tantos séculos, e em parte por oposição ou, pelo menos, reserva por parte da Igreja, sobreviveu no continente e no Brasil (aqui, até mais tarde e mesmo até hoje) apenas vestigialmente, em algumas manifestações localizadas, como a festa dos tabuleiros em Tomar ou a festa do Espírito Santo do Penedo, em Sintra. Mas há notícia de festas do Espírito Santo em muitos outros lugares ainda nas duas primeiras décadas do século passado. Curiosamente, era ao longo do vale do Tejo, e mais em particular no Alto Tejo, que se concentravam mais particularmente essas festividades. É a região que referi como possível origem importante da colonização açoriana, principalmente a de S. Miguel.
E foi para os Açores que o culto do Espírito Santo, religioso e também profano, foi levado logo pelos primeiros povoadores, sobrevivendo até hoje com a mesma pujança e com o mesmo valor ancestral de religiosidade e de elemento identificador da realidade antropológica açoriana. Não me parece arriscado afirmar que, na grande diversidade cultural do arquipélago, de ilha para ilha e até entre subculturas da mesma ilha (por exemplo, entre camponeses e pescadores), o grande traço identificador comum, indiscutível, é o culto do Espírito Santo. Razão teve o governo regional em adoptar como hino regional o antiquíssimo hino do Espírito Santo e em declarar a segunda feira de Pentecostes como feriado regional. É este profundo sentimento de identificação do homem açoriano que justifica o florescimento de festas do Espírito Santo, com algumas adaptações pitorescas, nas numerosas comunidades açorianas da Califórnia, da Nova Inglaterra e do Canadá.
No entanto, há grandes variações nas festas, de ilha para ilha, mas com uma matriz comum. É um bom exemplo de como a variedade não prejudica, antes enriquece, um património cultural comum bem sentido, profundamente, como identificador de uma comunidade.
As festas de Espírito Santo têm um componente importante de humildade e igualdade (que se pode encontrar, tão remotamente, nas saturnais romanas), próprias das ideologias milenaristas e utopistas, de novo império, retomadas por uma espécie de “filosofia nacional”, de destino privilegiado, no discurso sobre o quinto Império do Padre António Vieira e até, tão recentemente, por saudosistas como Agostinho da Silva ou António Quadros. Esse carácter de igualdade é simbolizado pelas versões mais antigas das festas, hoje desaparecidas, como as dos Impérios dos Nobres, em que estes coroavam simbolicamente um pobre como detentor de um poder que, de facto, nada significava na realidade social da época. A coroação, hoje de uma criança, com o seu cortejo e a sua cerimónia religiosa, continua a ser central em todo o rito e a coroa de prata do Espírito Santo, o grande símbolo das festas, assim como a bandeira de adamascado vermelho com a pomba em prata, está presente em todas as casas açorianas (e é um bom negócio para as ourivesarias).
Disse cerimónia religiosa, que há pelo menos dezenas de anos se passa na igreja e com a participação do clero, mas nem sempre foi assim. Por razões que não conheço a fundo, mas que julgo relacionarem-se, por um lado, com a reserva da Igreja pós-tridentina em relação a tudo o que não fosse a ortodoxia religiosa e, por outro, com a altivez e enorme força de carácter das comunidades populares açorianas – veja-se o que diz Mouzinho da Silveira, no seu testamento, a propósito dos corvinos que foram à Terceira apresentar-lhe as suas reivindicações – as festas açorianas do Espírito Santo que chegaram até nós são essencialmente populares e marginais à Igreja. Até nos locais emblemáticos de culto, os impérios ou teatros, que todo o visitante dos Açores conhece, principalmente, pela sua profusão e riqueza de arquitectura popular, na ilha Terceira. São pequenas capelas, normalmente de um estilo barroco em versão popular, com uma grande paleta de cores, encimadas pela pomba do Espírito Santo em vez da cruz. Na altura das festas, abrem-se de par a par as suas portas, não para que entrem as pessoas, que lá não cabem, mas para expor os símbolos, coroa e bandeira, num trono de vários andares exuberantemente decorado com flores e castiçais valiosos.
(Tendo chamado à baila Mouzinho da Silveira, abro um parêntese para contar a história, tal como a conheço. Não podem imaginar o que ainda é hoje o isolamento dos corvinos, os cerca de quatrocentos habitantes do Corvo, a ilha minúscula que fica nos confins do arquipélago. Viviam oprimidos pelos altos encargos do regime senhorial, que a revolução de 1820, com os tempos conturbados de efervescências absolutistas que se lhe seguiram, nunca chegou a abolir. Certo dia, depois da instalação na Terceira do governo liberal de D. Pedro IV, um grupo de corvinos meteu-se num pequeno barco e afrontou as muitas milhas do terrível mar açoriano para chegarem à Terceira e irem à viva voz com Mouzinho, a quem expuseram as suas queixas. Mouzinho ficou de tal forma impressionado com essa gente de enorme carácter e coragem que, não só nessa noite de “directa”, como hoje dizem os jovens, redigiu todos os decretos de abolição dos morgadios e dos direitos feudais senhoriais, como dispôs no seu testamento que queria ser enterrado no Corvo, junto dos mais nobres portugueses que tinha conhecido. Ainda espero que se venha a concretizar um dia essa exemplar disposição testamentária do grande Mouzinho.)
Mas, porque afinal este é um livro de cozinha, passemos ao outro elemento simbólico da fraternidade de Espírito Santo, que é o da oferta a todos os pobres da refeição das festas. O imperador, eleito anualmente – ou melhor, leiloado pela melhor oferta de grande festa – tem a obrigação de fornecer essa refeição a todos os pobres do seu império, que tanto pode corresponder a uma freguesia (nos Açores não se diz aldeia) como até a uma rua da cidade, como era na minha meninice na rua do Saco em Ponta Delgada (uma rua que me lembra, com todas as suas histórias, a Via del Corno de Vasco Pratolini e que talvez, um dia, venha a ser a referência de muitas memórias a passar a escrito, se o Divino Senhor Espírito Santo me der vida e saúde…).
Essa distribuição de alimentos varia um pouco de ilha para ilha. Em todas é constituída basicamente pela “pensão”. Mas em S. Maria há várias refeições de Espírito Santo e na Terceira há também o bodo de leite, em que se traz as vacas, engalanadas, para serem mungidas na praça da freguesia. À margem da gastronomia, refira-se também o caso excepcional da Terceira, com as suas touradas à corda. Os terceirenses são uns “bon vivants” (novamente contra a errada ideia continental do açoriano tristonho).
Desde logo, porque aproveitam todas as oportunidades para a festa. Apesar de, convencionalmente, a festa de Espírito Santo ser no domingo de Pentecostes, cada freguesia terceirense – e também nas outras ilhas – escolhe um dos fins de semana desde a Páscoa até ao domingo da Trindade para a sua festa, para não haver sobreposições e se aproveitar bem as festas de todas as freguesias. E é um rodopio de toda a população terceirense, durante várias semanas, por todas as freguesias da ilha. Depois, com o bodo de leite no sábado, a coroação no domingo, a tourada à corda na segunda feira e o curtir da bebedeira na terça, trabalha-se só três dias por semana durante todo esse tempo. O que vale é que a terra é muito fértil.
A distribuição de alimentos não se limita aos pobres. Os membros de cada irmandade, como eram os meus pais, pagam ao longo do ano uma quota (recolhida por um grupo que percorre o império com a sua bandeira do Espírito Santo) para também receberem a pensão na altura das festas. A sua distribuição é pitoresca, mas não sei se ainda se faz como era na minha meninice. As vitualhas iam em carros de bois, daqueles bem velhos, com rodas maciças de madeira, todos enfeitados com grinaldas e arcos de flores de papel, com uma grande roda frontal de flores de papel brilhante de várias cores. Os próprios bichos, com a sua pachorra, também iam bem enfeitados. À frente, os foliões, um quarteto de tocadores de rabeca, viola da terra, pandeireta e ferrinhos, vestidos com uma opa vermelha toda às ramagens e com uma mitra à bispo, do mesmo tecido. Atrás, na Terceira, ia outro carro de bois enfeitado com ramos de faia, em que se acumulava a malta miúda a fazer macacadas. Por isto me dizia a minha avó, quando eu julgava dizer alguma coisa com graça, “ainda hás-de ir no carro das faias”.
Apesar de algumas variantes de ilha para ilha, como disse, a “pensão” do Espírito Santo é composta basicamente por um pão, uma boa quantidade de carne, um bolo de massa sovada e uma garrafa de vinho de cheiro. Na minha ilha, a carne é habitualmente usada para um assado. Na Terceira, para além da alcatra, faz-se um cozido de que se usam alguns ingredientes e o caldo para uma sopa. Tudo isto compõe uma refeição a que se chama a função do Espírito Santo e que passo a descrever, tal como ainda hoje se faz ritualmente em Algés, na minha família, normalmente a cargo do meu irmão mais novo, o mais tradicionalista de todos nós, e agora a perpetura a bênção maternal.
A confecção básica é a do cozido, de que se faz a sopa. Para o cozido,
600 g de carne de vaca (alcatra e aba), 300 g de toucinho entremeado, 125 g de bacon (antigamente, toucinho fumado), meia galinha, uma linguiça grande (como já disse, não usar a linguiça do continente, mas sim chouriço, de preferência um chouriço picante), 500 g de fígado em peça, 0,5 l de sangue de porco coagulado (já não se pode usar o de vaca, que era o tradicional), um repolho, 6 batatas, uma cebola, 3 dentes de alho, sal, pimenta preta, pimenta da Jamaica e tomilho (é o único prato de cozinha popular portuguesa, que me lembre, que usa tomilho – aqui está mais uma especificidade da cozinha açoriana). Como se vê, o cozido açoriano, de que também já descrevi atrás a variante micaelense das Furnas, é menos variado do que muitos cozidos continentais. Não fica nada pior por isso. Desses ingredientes, só o sangue é que pode ser difícil de obter. Se tem um talhante conhecido, peça-lhe que arranje o sangue coagulado no matadouro. Com toda a família instalada no continente, nunca tivemos dificuldade em obtê-lo.
Cortar as carnes, o fígado, o sangue e a galinha aos pedaços e a linguiça em rodelas grossas. O repolho é cortado em nacos grandes. Cozer tudo, excepto o fígado e o sangue, com a cebola, o alho e os temperos, ficando o repolho por cima. O fígado e o sangue são cozidos à parte, em água com sal e pimenta e um ramo de hortelã. Quando o cozido estiver pronto, juntar umas colheres do molho da alcatra feita entretanto ou a fazer e uma cs bem cheia de manteiga. O cozido é acompanhado com arroz cozido no caldo.
Para a sopa, colocar numa terrina um pão caseiro partido (à mão, segundo a tradição) em bocados grandes, com uma ramo de hortelã e abafar com o caldo do cozido durante alguns minutos. Juntar repolho e batata do cozido. Ao servir, juntar a cada prato de sopa um pedaço de fígado e um de sangue.
A seguir, serve-se uma alcatra.
A alcatra é um ícone da cozinha terceirense. Tem tanto valor afectivo para mim, como parte do meu património construtor da personalidade, que sou extremamente exigente. Ela faz-se em todas as festas, com destaque para o Espírito Santo e as famílias rivalizam na boa confecção da alcatra, daí o tal aspecto de que falava, de património cultural. Começou a popularizar-se cá, em alguns restaurantes, mas não é a mesma coisa, a começar pela falta do típico recipiente de assar, que é essencial para a qualidade do prato.
A receita da minha família materna tinha fama, feita com o vinho verdelho da quinta do meu bisavô no Porto Martins. Era um vinho de produção familiar, mas que tem a sua história. O meu primo Sousa Júnior foi um notável infecciologista, da época da peste, catedrático da Faculdade de Medicina do Porto. Reformado, foi vender o vinho da família para uma taberna do Porto Martins, de chinelos de ourelo, perdido em conversas à Nemésio com os camponeses da terra.
A rivalidade na qualidade da melhor alcatra da Terceira era com a das grandes amigas Maias da minha avó, de quem bem me lembro, porque elas tinham o seu vinho dos Biscoitos. A sua família Brum é hoje a única que teima, corajosamente, em cultivar o grande vinho dos Biscoitos. Transformaram a quinta num excelente museu de vinho para turistas e claro que lá vendem o seu vinho. Não percam o trabalho magnífico de museologia do vinho dos Biscoitos do meu caro amigo Luís Brum. Agora, até há uma confraria.
Isto lembra-me outra história – nunca consigo parar, nem quando vejo os meus amigos já entorpecidos com as minhas histórias -, que, para começar, tem que se dizer que o vinho dos Biscoitos generoso tem pelo menos 16º. Um dia, o meu pai teve que ir à Terceira com quatro mestres para começar uma obra. Enquanto ele ia visitar a família, combinou encontrar-se com os mestres em qualquer sítio, porque a obra era urgente. Encontro, nada. O meu pai calcorreou a cidade de alto a baixo e foi encontrá-los numa taberna do Alto das Covas, a dormir profundamente sobre a mesa onde estavam creio que seis garrafas de vinho dos Biscoitos, para eles uma novidade.
O alguidar da alcatra é conservado com todo o cuidado pelas cozinheiras terceirenses. É um recipiente de barro local, não vidrado (esta é a característica mais importante), com forma de alguidar mas mais alto e estreito. Antes de ser usado, tem que ser obrigatoriamente preparado, ficando uma semana cheio de água (que se muda duas vezes) com um molho de hortelã, cinco dentes de alho esmagados, uma cebola aos quartos e duas folhas de louro. Com o uso, vai adquirindo “patine” da alcatra. Mas também há riscos em deixar envelhecer demais um alguidar de alcatra. Um dos meus irmãos preparou um dia uma alcatra e, ao retirá-la do forno para a servir, com todos os convidados já à mesa, partiu-se o fundo do alguidar e lá ficou a alcatra espalhada por toda a cozinha.
Como tenho um alguidar vindo da Terceira, nunca me preocupei em encontrar cá um bom substituto. Agora que escrevo este livro, noto esta minha falha, não podendo aconselhar aos meus leitores uma boa alternativa. Mas, com a descrição que fiz, talvez a encontrem. Se não, usem um recipiente de barro não vidrado, relativamente alto em relação ao diâmetro e experimentem. Mas é provável que não fique uma alcatra genuína.
Há três versões da alcatra. Na cozinha popular, ela é feita com o vinho de cheiro, o vinho tinto de muito má qualidade feito das uvas americanas com que se replantaram os vinhedos açorianos depois da praga da filoxera, no século XIX. Na cozinha aristocrática, como disse, usa-se vinho verdelho, onde se arranja, agora só nos Biscoitos. Na terceira versão, actual, uso outro vinho branco. É importante que seja um branco de muito boa qualidade. Em princípio, para um assado de carne, devia ser um branco seco. Mas, se quiser aproximar-se da tradição rica de usar verdelho ou vinho dos Biscoitos, faça uma excepção à regra e substitua na minha receita o meio litro de vinho branco por 4 dl de branco seco e 1 dl de moscatel ou de Madeira meio-seco. Melhor ainda, o Madeira verdelho ou seco.
2,5 kg de uma mistura de carnes, cortadas em pedaços grandes: 2/3 de folha ou ponta de alcatra e 1/3 de aba grossa (segundo a nomenclatura do continente, que difere da açoriana; nos Açores, seriam, respectivamente, rabadilha e lagarto); 2 cebolas grandes, 4 dentes de alho, sal, 12 grãos de pimenta preta, 8 grãos de pimenta da Jamaica, uma folha de louro, 6 cs de manteiga, 250 g de toucinho fumado, hoje bacon (retirando a carne!) e 0,5 l de vinho branco. Tradicionalmente, usava-se também um osso com bastante tutano, o que enriquecia notavelmente o prato. Hoje é proibido. (Nota, 2011 – isto foi durante a fase da BSE. Hoke voltou a poder usar-se).
Colocar às camadas alternadas os pedaços de carne, a cebola às rodelas finas, os alhos pisados com a casca, a manteiga e os temperos. A última camada não deve ser de cebola. Regar com o vinho e um pouco de água, a cobrir, e assar em forno muito quente. Dar voltas com frequência e acrescentar de tempos a tempos umas colheres de vinho (nas duas primeiras vezes) e depois de água. Ao fim de algumas horas (cerca de seis horas!), a carne deve estar a desfiar e o molho gordo e apurado.
A alcatra melhora muito se feita com antecedência e depois reaquecida, quantas mais vezes melhor. Este é mais um dos pratos açorianos que se serve sem acompanhamento. O acompanhamento é o pão que, sem ser considerado má educação, se vai embebendo bem no molho. Para maior cerimónia, sugiro aos meus leitores que sirvam a alcatra para os pratos individuais com uma boa fatia de pão rústico ligeiramente torrado, mas nunca com arroz ou batatas, como nos restaurantes continentais que servem “alcatra”.
No fim da refeição, a massa sovada. Há muitas receitas, mas esta é considerada a melhor dos vários ramos e raminhos da família:
1 kg de farinha, 400 g de açúcar, 1 chávena de leite, 8 ovos, 60 g de manteiga, 70 g de banha, 40 g de fermento de padeiro, 1 c. chá de sal. Derreter o açúcar no leite quente. À parte, derreter em banho-maria a manteiga e a banha. Aquecer os ovos, inteiros, em água morna e diluir o fermento e o sal num pouco de água quente. Misturar tudo e amassar muito bem, dando muitas voltas à massa e, como diz o nome, calcando-a com o punho. Polvilhar com farinha, embrulhar num pano e deixar a levedar num local a boa temperatura. Formar os bolos, semi-esféricos e, segundo a tradição de origem religiosa, dar-lhes com uma faca um talho em forma de cruz. Deixar levedar novamente e levar ao forno bem quente, durante cerca de uma hora, no tabuleiro polvilhado com farinha.
É indispensável ter na mesa muitos confeitos, uma velhíssima tradição portuguesa, hoje esquecida, de umas pequenas porções de açúcar em ponto muito alto, de alfenim, aromatizadas com erva doce e moldadas com forma de framboesas. Ainda hoje, estão sempre na nossa função familiar, porque o meu irmão A. L. é perito em fazê-las, como tudo o que é doce. Na Terceira, o açúcar em alfenim também serve para moldar as variadas figuras que ornamentam e deliciam os gulosos pelo super-doce: pombas, cobras, cães, tudo o que vem à cabeça. Não é dia para pensar em dietas e calorias.
Finalmente, nada disto me sabe bem se não me curvar antes perante a mesa de Espírito Santo que o meu irmão arma, miniatura dos teatros do Divino: mini-bandeira, coroa, castiçais, flores, tudo contra o mais puro branco do melhor linho ilhéu. E, em fundo, o belíssimo terço do Espírito Santo, este sem rival açoriano com o micaelense.
E, com tudo isto, a minha velha fórmula: sou muito açoriano porque sou muito português e sou muito português porque sou muito açoriano.