João Vasconcelos Costa
Mesmo os mais renitentes em aceitar comparações internacionais aceitarão que a Espanha é instrutiva. Referi-me, num dos meus apontamentos, à sua carreira docente universitária. Ao contrário do nosso ECDU, não é objecto de lei específica, é estabelecida pela lei orgânica das universidades (LOU), de 2001 (a ser revista em breve), num capítulo “del professorado”, regulamentado por alguns decretos posteriores. Os universitários espanhóis mais modernistas consideram má a carreira espanhola. Infelizmente, o mau espanhol até pode ser menos mau para Portugal, tal é o nosso atraso.
Só são funcionários públicos os professores catedráticos e os professores titulares. Mesmo os professores ajudantes, equivalentes aos nossos auxiliares, nunca têm nomeação como funcionários, como cá, sendo contratados por períodos temporários. Da mesma forma, um conjunto variado de docentes e investigadores contratados que, no total, não podem ultrapassar 49% do total de docentes e investigadores. Repare-se que a maioria exigida não é de doutores (a percentagem que mais usamos) mas de professores catedráticos e titulares (estes últimos equivalentes aos nossos associados). Entre nós, as universidades já se ufanam de terem maioria de doutores. Na Espanha, se somarmos a esses 51% mínimos a alta percentagem de doutorados contratados, nomeadamente os professores ajudantes, a percentagem sobe imenso.
O regime remuneratório não é uniforme, sendo determinado por uma base geral complementada por suplementos de mérito, em função da avaliação individual (outra diferença essencial, que discutiremos adiante), nos domínios científico, pedagógico e da gestão. Podem ainda acrescer outros suplementos decididos pelas comunidades autónomas, de que dependem as universidades. Saliente-se que o regime diferenciado de remunerações, em função do mérito, já vigorava desde 1989. É verdade que não são complementos muito significativos, têm maior significado simbólico, como “medalha”, do que financeiro. Em todo o caso, é impensável em Portugal!
O acesso a ambas as categorias docentes tem uma base dupla. Por um lado, uma habilitação, a nível nacional, independente das universidades; por outro, concursos específicos de recrutamento, da competência de cada universidade. Repare-se que o sistema não é comparável com a nossa agregação. Em primeiro lugar, porque é necessária habilitação para cada uma das categorias e depois, mais importante, porque a habilitação não depende das universidades. Uma diferença fundamental é a de haver restrições ao número de habilitados. Ao contrário da agregação, que qualquer um pode obter apenas por mérito absoluto, a habilitação é um concurso anual único para cada disciplina, em função do número de vagas. Neste aspecto, tenho reservas, porque, em princípio, não aprecio limitações administrativas. Anote-se que esta limitação talvez venha a ser revogada no processo de revisão da LOU que está em curso.
Antes de descrever as habilitações, convém focar a avaliação individual, importante no processo e que não existe entre nós (pergunto-me quando a teremos ou se a teremos em tempo útil). Compete à “Agencia Nacional de Evaluación de la Calidad y Acreditación” (ANECA) ou às agências regionais das comunidades autonomas. É obrigatória como requisito para qualquer contratação, e, em muitas circunstâncias, também para os professores funcionários, designadamente para atribuição de acréscimos remuneratórios. Para a avaliação individual da actividade de investigação dos funcionários e a obtenção dos chamados sexénios (incrementos salariais permanentes por cada seis anos de actividade científica positiva) existe outro organismo nacional, a “Comision Nacional de Evluación de la Actividad Investigadora”.
Os júris das habilitações são comissões disciplinares de sete membros, sorteados de entre os professores com classificação positiva na sua avaliação, em dois períodos consecutivos de seis anos no caso de catedráticos ou um período, no caso de titulares. Podem também participar professores de outras universidades europeias (porquê só europeias?).
A candidatura à habilitação é feita por apresentação do currículo, de um projecto docente e de um projecto pedagógico. As provas, individuais e públicas, consistem na discussão destes elementos e numa lição escolhida pelo candidato de entre três sorteadas pelo júri de entre o programa apresentado pelo candidato. No caso da habilitação a professor titular, há ainda uma terceira prova, a apresentação de um trabalho inédito de investigação (no meio de muita coisa boa, discordo completamente dessa necessidade de ineditismo, limitadora da regra hoje essencial de “publish or perish”).
Este processo vai ser simplificado na revisão da LOU. As comissões-júris vão passar a fazer todas as avaliações sem sessões públicas. É contra o nosso mito das provas públicas, que nunca percebi. O que é que adianta a presença de um público que nada conhece do currículo do candidato e que, em geral, não domina a matéria da lição? É folclore, e caro.
Ao contrário das habilitações, a nível nacional, os concursos de acesso são determinados pelas universidades, mas limitados a candidatos titulares da habilitação. Anote-se que as universidades são obrigadas a abrir concurso nos vinte dias seguintes à abertura de uma vaga. A duração máxima do processo de concurso é de quatro meses. Queria ver ambas as coisas em Portugal!
Todo o procedimento dos concursos é da responsabilidade de cada universidade, conforme os seus estatutos e regulamentos, embora com sujeição a princípios gerais de equidade e transparência. Em todo o caso, os membros do júri devem cumprir os requisitos de avaliação pessoal acima referidos.
Dito tudo isto, e considerando que um modelo destes seria muito positivo em Portugal, fica-me uma dúvida essencial. Esta regulamentação resolve o problema da endogamia? Creio que não, como me demonstram vários artigos de colegas espanhóis que tenho lido. Falta uma disposição fundamental, coisa sagrada nos EUA, mesmo no Reino Unido, apesar de não vertida para nenhuma lei nesses países de direito consuetudinário. Não podem concorrer ao acesso ou contrato à primeira categoria (no noso cso, professor auxiliar) os que, nos dois anos anteriores, tiverem tido relação contratual com a universidade.
Escreve-me um amigo espanhol, a quem mandei previamente este artigo, para correcções: “ESTO SERIA IMPOSIBLE EN ESPAÑA…UNA REVOLUCION!!”. Muito mais em Portugal, mas não podemos deixar de nos defrontar com o problema da endogamia. No entanto, há mais vida para além da lei. Tive grandes relações com o departamento de Biologia molecular da Universidade Autónoma de Madrid. Conheci muitos jovens doutorandos, brilhantes, que, obviamente, pretendiam um lugar na universidade. No entanto, sabiam que, para isto, era preciso irem fazer um bom “postdoc” nos EUA, senão seria difícil a universidade admiti-los. Aqui está um exemplo de que não há boa lei senão consolidada por boas práticas.
Finalmente, reparo que não referi um organismo espanhol com papel importante em todo este assunto, o Conselho de Coordenação Universitária. Entre nós, só se fala ultimamente de uma agência de avaliação e de acreditação, como a ANECA espanhola. Não basta. A avaliação e acreditação são muito importantes, mas principalmente como instrumento da regulação. A regulação compete ao governo? Na lógica da “nova administração pública”, prefiro que a um organismo independente e com ampla projecção social. Para não me desviar do tema deste artigo, sugiro que liam o que sobre isto escrevi e que visitem a riquíssima página do CCU espanhol, para verem as suas atribuições e composição.
(Agradeço os comentários e emendas de José-Ginés Mora)