Espinosa, hoje

Vivemos uma era de irracionalidade, de obscuridade escura, em que impera o fanatismo, o maniqueismo, a incapacidade de ver cores ou as infinitas gradações de cinzentos, só preto ou branco. Se, por simplismo esquemático, virmos as coisas numa perspetiva funcionalista (que não é do meu marxismo), em que tudo o que acontece resulta, em última instância, do cumprimento dos interesses do sistema dominante, como se ele fosse dotado de inteligência e vontade, dir-se-ia que a grande vitória do capitalismo maduro, na fase atual, foi ter-se visto livre da herança do iluminismo, do racionalismo. Homens pensantes e com espírito crítico, capazes de compreender a complexidade no quadro da totalidade, são um perigo para um sistema que já viu que o controlo do senso comum pela hegemonia ideológica é mais eficaz do que a coerção pela força e repressão. Marx foi um perigo pela agitação socialista, mas também por nos ensinar a dialética materialista e aplicada à história e à vida social do dia a dia.

A construção do homem unidimensional já vem de longe. Foi alimentada pela sua transformação de produtor em consumidor, pela mentalidade do sucesso, pelo consumismo, pela limitação ao material das expectativas de vida. O individualismo foi depois consagrado pelos filósofos irracionalistas do pós-modernismo, cujas crítica pode parecer a alguns uma mania minha. A luta social e integradora foi dominada, pelo fomento do identitarismo extremo, com o seu elitismo e fraccionismo. Estamos hoje no grande naufrágio, em que vale o salve-se quem puder, em que todos os valores são abafados pela competição.

Os últimos grandes acontecimentos mundiais, Ucrânia e Palestina, trouxeram à superfície as manifestações desta mentalidade, que elimina qualquer posição reflexiva e crítica. Só há extremos, quem não é comigo é contra mim. Mesmo que se manifeste, “à antiga”, a total solidariedade com os oprimidos, os agredidos, que se exprima uma clara atitude ética-política de defesa da justiça, deve-se ficar é pelo simples agitar da bandeira, porque o discurso é mais importante do que o pensamento e a vontade coerente. O que conta é a “narrativa”. Procurar compreender os acontecimentos; ir às origens; enquadrar as ações mas sem desculpabilizar os erros e crimes, seja de quem for, em virtude de um enquadramento a servir de absolvição total; não usar a crítica racional como instrumento de validação argumentativa do pressuposto ideológico em vez de raiz dessa construção ideológica, tudo isto é ir contra a regra agora vigente.

Nesta situação, conforto-me voltando às lições dos meus velhos mestres, aqueles que, passando por cima da espuma de vagas como as de agora, foram ao encontro do horizonte que se fez história.

Por isto, aqui fica uma máxima de um dos meus padroeiros, Espinosa:

“Curavi humanas actiones non ridere, non lugere, sed intelligere (Cuidei das atividades humanas: não rir, não lamentar, não detestar, mas compreender)”