O panorama noticioso é tão grave que possivelmente nos distrai de coisas menores, com riscos de desvalorizarmos comparativamente o seu significado, muitas vezes extremamente exemplar como motivo de reflexão sobre o mundo em que vivemos. São exemplos medíocres, mesquinhos, que muitos dirão que apenas aspetos tristes da natureza humana mas que eu tendo a integrar num perceção mais ampla e interativa da nossa relação com o meio. Relação com o meio é coisa de biólogo que também sou, no que se refere ao mundo vivo e ao meio físico. Mas também a relação do mundo humano com o seu ambiente particular, social e cultural.
Esta divagação vem a propósito de um caso noticiado de quase evidente plágio. O memorial a José Afonso em Setúbal, da autoria do designer português Ricardo Crista, é flagrantemente copiado do memorial de Nelson Mandela feito pelo escultor sul-africano Marco Cianfanelli. Vejam a imagem.
Muito se teria de dizer sobre o plágio, as suas motivações, a sua frequente impunidade, o que ele representa como mentalidade, também a influência anda revolução da informação, tanto para o aproveitamento inconsciente da obra alheia presente na rede como para a dificuldade paradoxal de detetar essas situações, numa tão abundante coleção de dados.
Mas o que motiva esta nota é coisa muito diferente, mas igualmente inserida no ambiente intelectual de hoje, na sequência do pós-modernismo. Uma das características centrais desse modo de pensar é a centragem na narrativa, no discurso, na linguagem, arvoradas em “verdades” individuais, todas intelectualmente e moralmente equivalentes, na perspetiva do relativismo. O discurso, mesmo quando assumidamente de “pós-verdade” (uma aberração irracionalista), domina hoje a política, as relações sociais e económicas, o sentido comum.
O que tem isto a ver com o caso dos memoriais? É ser exemplar a argumentação de Ricardo Crista para defender que não há qualquer plágio e que o seu trabalho é único e original: “o que importa é salientar a características distintivas e singulares da obra. Esta peça escultórica foi criada para permanecer em site specific, interagindo com uma dinâmica de movimento visual, ao ser projectada para um horizonte onde o mar e o céu se ‘beijam’ no toque de uma mancha azul em degradé criando uma profundidade oscilante.”
Fiquei convencido! O balão é bonito e bem colorido. O problema é o de todos os balões, se o picar com uma simples agulha analítica, só fica “pum”, um sopro de palavras gasosas e mais nada.