De como uma trivialidade suscita uma reflexão teórica (II)

A cena a que assisti e que narrei no “post” anterior envolveu trabalhadores jovens, sazonais, precários, com condições aparentes para terem consciência e combaterem o sistema que os mantém em tal situação. Pertenceriam, na terminologia clássica, a uma classe, potencialmente revolucionária, em luta com a burguesia e o seu sistema. Nessa situação, seria impensável aceitar-se um ato de desonestidade entre camaradas de trabalho como o que contei. Mas essa situação tem alguma coisa a ver com a realidade atual?

Alguns até dirão que já nem há classes – coisa que as classes dominantes sempre disseram – embora um grande capitalista lúcido, Warren Buffett, tenha dito que “claro que ainda há guerra de classes, e é a minha classe que está a ganhá-la”. Da mesma forma, os partidos do sistema, do “centro-esquerda” a todas as direitas, também se dizem não classistas, como se toda a sua política, da ideologia aos interesses práticos, não refletisse sempre uma posição de classe, a nível do coletivo e do seu aparelho.

É verdade que, hoje, a estrutura de classes é muito mais complexa e que são muito mais fluidas as fronteiras entre as classes, assim como mais complicados os critérios que podem ser adotados para a definição das classes. Isto é um desafio, teórico e prático, que se coloca aos que continuam a defender a primazia do conflito de classes no processo histórico, mas de forma alguma legitima a anunciada morte das classes. Remeto os interessados para a discussão deste tema em todo um capítulo do “Utopia Hoje”.

A negação ou subalternização da ideia de classe também afeta a esquerda, quer aquela – aqui já tantas vezes discutida por mim – que privilegia a perspetiva geopolítica, quer a que é mais ou menos influenciada pelo populismo, substituindo o conflito de classes pela oposição entre dois campos informes e mal definidos, os de cima, “a casta”, e os de baixo, “a gente”.

Só os partidos que se mantêm na linha tradicional da Internacional Comunista é que invocam sem ambiguidades a sua natureza de partido de classe, a classe operária, e que esta é a classe portadora das capacidades revolucionárias, de derrube do capitalismo. Será ainda assim? O que é hoje a classe operária? E até que ponto ela é hoje revolucionária?

Antes do mais, deve-se ter presente que há dois aspetos distintos mas interligados na formação de uma classe. Ela existe em si própria, objetivamente, como resultado de um novo modo de produção e, secundariamente, de diferenciações em virtude de mudanças tecnológicas, de estrutura hierárquica do trabalho, de cultura e ideologia, também de “osmose social” (assimilação de características de outras classes). Paralelamente, ela desenvolve-se para si própria, ao tomar consciência dos seus interesses comuns, dos seus adversários, da relação de forças, e finalmente ao ter um projeto político e instrumentos para o efetivar.

Principalmente a partir do fim da II Guerra Mundial, tem havido uma mudança considerável na configuração do capitalismo – e de toda a vida social – que, com a transformação também do tipo de trabalho, das qualificações, da revolução tecnológica e da digitalização, alterou profundamente a estrutura de classes.

A velha classe operária desenvolveu  a sua consciência e força de classe no ambiente e condições favoráveis da fábrica, com grande concentração de operários, muitas vezes também vivendo em bairros dependentes da fábrica, favorecendo a camaradagem, a discussão coletiva, o estímulo mútuo. Em boa parte, isto desapareceu. A fábrica já não é tanto o local escuro e pesado, a misturar corpos suados e ruído das máquinas. Tudo é mais assético, mas sem os antigos laços, com uma classe operária muito mais heterogénea, com muitos dos seus membros já exercendo trabalhos especializados individualizados – com atenuação do espírito de equipa – e funções de controlo, com hierarquização e enfraquecimento do sentimento de igualdade.

Ao mesmo tempo, reduziu-se consideravelmente o peso numérico da classe operária propriamente dita, tanto na população ativa como no setor produtivo. Alguma osmose social, o acesso a alguns bens e serviços antes próprios de outras classes, grosseiramente chamadas de “classes médias”, novas aspirações, tendo a ver com modos de vida de outros estratos sociais que a televisão e o cinema davam a conhecer, tudo isto levou a algum “emburguesamento” da classe operária, à mistura também com o resultado do movimento inverso, o da proletarização de setores da pequena burguesia. 

Finalmente, o enorme crescimento do setor ternário trouxe o aparecimento de um grande contingente de novos assalariados não muito diferentes do operariado, em remuneração e direitos, isto é a grande maioria dos trabalhadores da administração, do comércio e dos serviços. E não discutindo agora outro fator em foco nas últimas décadas, a imigração, em grande parte a preencher vazios no emprego antes ocupado por camadas menos diferenciadas do operariado nativo. É assunto que daria todo um outro artigo, pelo que apenas o deixo agora mencionado.

Parece evidente que, como “classe para si”, com forte organização e consciência de classe, a classe operária perdeu a relevância que tinha. E será que, ao menos, continua a ser objetivamente uma classe, “em si”? Como defendi no livro, creio que não adianta, nem teoricamente nem para efeitos práticos, separar hoje o operariado do conjunto mais amplo de uma nova “classe trabalhadora”. O problema é defini-la.

Esta discussão tem sido viva no campo académico marxista mas não cabe agora expô-la. Muito resumidamente, as propostas tendem a opor-se em dois polos: a manutenção da definição histórica e individualização da classe operária, remetendo todas as “novas classes” para a pequena burguesia, hipertrofiando-a ao encontro dos que defendem que a chave política (eleitoral) está nas mãos da(s) classe(s) média(s); e os que, pelo contrário, diluem a velha classe operária em todo o conjunto heterogéneo dos assalariados, um novo e enorme proletariado. Entre os dois extremos, algumas propostas de compromisso, mas anote-se que não têm sido muitos os autores a estudarem esta questão.

O quadro pode ser bastante mais complicado quando se entra em conta com critérios que não têm a ver simplesmente com o modo de produção predominante ou a apropriação de mais-valia, tais como sejam o tipo de trabalho – produtivo ou não, manual ou intelectual –, a propriedade dos meios de produção, o controlo da aplicação do capital, o controlo social (não técnico) do trabalho de outros, a participação na reprodução social (garantia da apropriação e do funcionamento do poder político), a apropriação de mais-trabalho no caso do trabalho não produtivo, a natureza do trabalho, criativo ou de rotina, os interesses convergentes com a burguesia ou com os trabalhadores, a caracterização ideológica em termos de contribuição significativa para a construção da hegemonia ideológica e cultural da burguesia, etc..

Com estes critérios, como explicado no livro, julgo que hoje podemos considerar uma nova classe trabalhadora, sucessora moderna da velha classe operária, a par das outras duas classes fundamentais – a burguesia e a pequena burguesia – e de um conjunto diferenciado de “classes de intersecção”, tais como pequenos empresários, profissionais independentes, dirigentes, intelectuais e técnicos superiores, técnicos especializados de base. A classe trabalhadora inclui os operários tradicionais da indústria, transportes, construção e conservação/reparação (embora diversificados nas atuais tipologias do trabalho produtivo); os assalariados do setor primário (agricultura e pescas); os assalariados da administração das indústrias e assalariados do comércio e serviços, com trabalho de natureza essencialmente não criativa e de rotina; os trabalhadores indiferenciados.

Esta nova classe trabalhadora é, objetivamente, uma classe em si, num rearranjo técnico-social da produção. Mas, sendo nova e heterogénea, não pôde assimilar a consciência de classe da antiga classe operária que nela se diluiu, nem elaborar uma ideologia autónoma e um programa político adequado ao tempo presente, nem sequer organizar-se, política e socialmente.

É urgente que uma esquerda consequente crie ou reordene um partido alternativo de classe, com o objetivo central de organizar esta nova classe trabalhadora e de contribuir para a sua consciencialização e mobilização para o combate, ao mesmo tempo que, num novo quadro social e de análise, se constroem novos blocos políticos e sociais. Teoricamente, seria desejável a reconversão nesse sentido de um atual partido de esquerda. Na prática, não parece ser uma hipótese realista. Como fazer nascer esse novo partido alternativo? Não há uma solução milagrosa; é um caminho a fazer-se caminhando, mas podem e devem propor-se algumas linhas gerais, bem como posições de princípio. É matéria que fica para próximo artigo.