As trivialidades do dia-a-dia podem ser, aparentemente, coisas irrelevantes mas frequentemente me servem como motivo de reflexão, por serem exemplares de problemas profundos de que não nos apercebemos. Hoje aconteceu-me isto, ao pagar a conta num bar-restaurante de praia. Ocorreu uma coisa de nada mas que me fez pensar no que significam hoje as classes sociais, 170 anos depois da grande teoria da História que tem nelas o seu fundamento. Mas antes de contar a história, permitam-me um enquadramento menos banal.
É hoje lugar comum que os processos históricos se desenvolvem em função da interação entre grandes e mais duradouros fatores estruturais – a economia, a tecnologia, a estrutura social, as relações sócio-económicas, etc. – e a “superestrutura”, o grande conglomerado de tudo o que influencia, mais superficialmente, a vida humana – a cultura, a ideologia, os padrões morais, a configuração dos poderes (institucionais e “fácticos”, as aspirações sociais e individuais, o grau de domínio hegemónico do senso comum pela ideologia dominante, as razões a curto prazo do descontentamento, etc. Todos nos apercebemos de um sismo, o superestrutural, mas é preciso ir para além do pensar e sentir simples para se ter uma ideia da tectónica de placas, o estrutural. O mesmo na filosofia/prática política.
Sendo este um dos grandes problemas estudados pela perspetiva marxista, a perceção dialética da complexidade dessa inter-relação é muitas vezes desafiadora de tal forma que são vulgares as deturpações mecanicistas. Para um “marxismo” escolástico, de cartilha, que se difundiu principalmente graças ao estalinismo – e depois ao maoísmo – o privilégio da dinâmica dessa interação. É a visão dogmática, determinista, segundo o qual as “leis” da História retiram ao homem e às suas comunidades um papel relevante, que não seja só o de agentes revolucionários de um processo inevitável só dependente da estrutura social e económica, uma espécie de “deus ex machina”, o deus decifro que sai da máquina da produção.
O idealismo oposto domina ainda a generalidade das formas como é vista a História, tipicamente de tipo historiográfico. A História desenvolve-se pela sucessão de acasos, sempre a nível da superestrutura, do jogo de poderes, dos conflitos e guerras, de caprichos pessoais e de psicopatias. Se há causalidades, são só a curto prazo. Da visão conflitual, resulta, por exemplo, a sobrevalorização dos feitos militares em relação à política ou à cultura. O que se conhece mais, o Júlio César político ou o Júlio César da guerra das Gálias? O Napoleão de Austerlitz ou o criador do código civil, do sistema métrico, da escola de pontes e calçadas? E, por este andar, é impossível imaginar que, no futuro, Hitler seja só o ganhador das blitz krieg?
Uma das manifestações deste desvio antidialético, a favor da superestrutura, é o que qui tenho vindo a criticar. A perspetiva geopolítica da História, que ganhou foros com a guerra da Ucrânia, a importância do conflito entre as grandes potências, a reação dos países subalternos, alimentam a perspetiva geopolítica. Já aqui discuti repetidamente este assunto e não vou repetir-me, mas convém lembrar um ponto específico, em relação ao caso que vou contar: a dinâmica de classes.
Ela é determinante para um marxista, mas posta de lado por um geopoilítico — apesar de alguns geopolíticos também se considerarem marxistas. As classes formam-se durante o desenvolvimento de cada modo de produção (ou, se preferirem, sistema sócio-económico), crescem com ele mas depois são as determinantes de contradições estruturais que levam à crise do sistema. Noutras situações, o sistema evolui mais rapidamente do que a a organização e consciência das classes, como estou convencido de que é o que está a acontecer agora, depois da enorme mudança da estrutura social – mas não do sistema! – operada desde o fim da II GM.
Um grande setor das esquerda manteve-se identificado com o que hoje é completamente diferente:a classe operária. Arbeiter, em alemão, a língua de Marx, tanto é operário como trabalhador. No próximo post, que este já vai longo, conversaremos sobre isto: classe operária ou classe trabalhadora, hoje? E o que representam hoje na relação de forças nesta “guerra de posição”, pantanosa, em que vive o movimento popular? Entretanto, cá vai a tal historieta do dia. O que é que ela terás a ver com todo este discurso.
Num bar de praia, fomos atendidos sempre pelo mesmo empregado, muito simpático, que até engraçou e brincou com a nossa encantadora neta de quatro anos. Sou seletivo nas gratificações, ou gorjetas como costumava dizer sem que isso fosse pejorativo. Considero-as como um reconhecimento por um bom serviço, para além do que é simplesmente exigido, e o rapaz merecia, porque se esmerava apesar de não ser um profissional. Nesta altura, esses estabelecimentos estão cheios de empregados jovens, sazonais. Paguei a conta com cartão e o rapaz afastou-se, sem ver que, a seguir, deixei a gratificação na mesa. Entretanto, um outro empregado, que nada tinha a ver com a história, veio levantar as chávenas de café e, olhando de esguelha para os colegas distraídos, meteu ao bolso a gratificação. Viva a camaradagem de classe!
NOTA – Tenho consciência de que falar hoje de marxismo não granjeia grande credibilidade. Há várias causas: um século de desinformação sobre o marxismo; as críticas de críticos muito respeitados mas que, para um leitor atento e informado, mostram logo que o ilustre sociólogo pós-modernista ou o teórico do populismo pós-marxista nunca estudaram minimamente o marxismo e que o conhecem só pela vulgata do antimarxismo primário; a dificuldade do estudo do marxismo genuíno, um pensamento rico mas muito complexo, facilmente deturpados pelas “escola oficial marxista” e por muitas tentativas bem intencionadas de “marxismo para todos”; e, em primeiro lugar, os erros e mesmo crimes cometidos em nome do marxismo – ou melhor, o que é bem diferente, do marxismo-leninismo – um falhanço confirmado pelo colapso do sistema soviético.
Mas muitos dos que torcerão o nariz ao meu assumido marxismo não se apresentam também como cristãos – o que respeito inteiramente, porque “nada do que é humano me é estranho”? Sem se lembrarem de que o cristianismo também foi deturpado e conspurcado ao longo da História: a construção posterior a Cristo de toda uma ganga teológica que dilui a mensagem central de Jesus, a intransigência dogmática para com qualquer heresia, as cruzadas, o massacre dos albigenses, a Inquisição, o massacre da noite de S. Bartolomeu, a cumplicidade com o colonialismo, o absolutismo reacionário nos Estados Pontifícios, etc.
Todas estas contingências históricas podem ser invocadas legitimamente para condenar a doutrina cristã? Então porque é que os erros e mesmo crimes do sistema soviético (e também a Revolução Cultural chinesa, a monstruosidade do regime de Pol Pot ou a transformação do poder popular em poder pessoal monárquico na Coreia do Norte) hão de justificar o opróbrio do marxismo, como sistema teórico de ideias, de economia política, filosofia da História e utopia prática (realizável) humanista?