João Vasconcelos Costa
Ele aí está, novamente, e em força. Boçal, bronco e psicopático, com Trump, Bolsonaro, Duterte, desavergonhado com Narenda Modi ou Recip Erdogan, mais refinado com Le Pen, Salvini, Orbán, Kaczynski, Abascal, Ventura. Nos últimos anos do século XX, os herdeiros do fascismo estavam presentes apenas em dois países europeus, a Suíça e a Eslováquia. Ao longo das últimas duas décadas, conseguiram essa proeza em mais nove países, desde a Itália a sul à Finlândia a norte. No total da Europa, o seu peso eleitoral passou, no mesmo período, de 4% para 14%. A lista já impressiona: Frente Nacional na França, Lega na Itália, partida para a Liberdade na Holanda, Vox na Espanha, Partido da Liberdade na Áustria, Democratas Suecos na Suécia, Partido do Povo Dinamarquês na Dinamarca, Verdadeiros Finlandeses na Finlândia, Aurora Dourada na Grécia, Alternativa para a Alemanha (AfD) na Alemanha, UKIP no Reino Unido e agora já o Chega em Portugal, bastantes dos quais com peso eleitoral importante.
Tal como no tempo dos fascismos do século XX, a ultradireita tenta ocupar o espaço de revolta desorganizada de largas camadas atingidas pela crise económica, pelo desemprego – em boa parte devido à globalização com deslocalização de empresas e com a desindustrialização -, pela precariedade, pela competição para o trabalho por parte dos imigrantes explorados pelo patronato e vítimas de “dumping” social, pela insegurança e instabilidade social, pela falta de perspetivas e, agora, pela quase destruição do Estado social de bem-estar. Ao mesmo tempo, este avanço da ultradireita é facilitado pelo abandono dessas camadas sociais pela esquerda: colapso do mundo comunista, traição da social-democracia e desvio das atenções de boa parte da nova esquerda radical – e até da ala esquerda do Partido Democrata americano – para outro tipo de causas, identitárias ou pós-modernistas.
A vaga de afirmações políticas e ideológicas ou de “programas” eleitorais dos últimos anos no sector mais extremista do espetro da direita traduz um regresso das propostas fascistas? No essencial, julgo que sim, embora sem a exuberância de posições claramente ditatoriais, podendo aparentemente conviver com um arremedo de democracia, musculada. No entanto, não se deve desistorizar nem descontextualizar o fascismo, dando-lhe continuidade até hoje (até terminológica), sob risco de não sabermos combater indo ao coração do que hoje caracteriza as novas formas do autoritarismo ditatorial de extrema-direita.
O fascismo do século XX pareceu ultrapassado com os anos gloriosos da segunda metade do século. Só em circunstâncias especiais é que o sistema político capitalista e o seu centro imperialista optaram por recorrer à violência, como no caso dos golpes militares na América latina.
Com a emergência em força do neoliberalismo de Reagan e Thatcher, fortalecido pela implosão da URSS e pela conversão generalizada da social-democracia blairista ao ordoliberalismo alemão e ao consenso de Bruxelas, o controlo do sistema mundial deixou aparentemente de passar por políticas de tipo fascista ou de ultradireita. A teia de dependências económicas, os mecanismos de controlo da globalização e, no caso europeu, as constrições à soberania, resolviam qualquer possibilidade séria de contestação do sistema.
Afinal, o regresso da besta, em força e aliciando até setores importantes das classes trabalhadoras, parece indicar que o sistema dominante pode estar disposto a recorrer (passe o vício funcionalismo) a forças de ultradireita que a memória histórica recente poderia fazer pensar que seriam inaceitáveis para a opinião pública.
Ele aí está, de novo? Ele quê? Muitos dirão pura e simplesmente o fascismo, mas isto faz correr o perigo de nos deixarmos desviar para uma discussão semântica, inegavelmente pertinente do ponto de vista do rigor histórico mas que pode desviar do essencial. “’Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” (A rosa antiga está no nome, e nada nos resta além dos nomes”). Era bom que, na história, também só ficassem os nomes, mas, de qualquer forma, discutir a rosa é mais importante do que discutir o nome. A menos que muitos, pondo em discussão o nome, estejam de facto, encapotadamente, a duvidar da rosa.
Outros discordam da reutilização do termo fascismo para designar o conjunto de novos partidos e movimentos de ultradireita que têm vindo a crescer na Europa e, depois, em outras paragens. É em boa parte falacioso porque, se são diferentes, são-no em relação a uma ideia de fascismo que é muitas vezes incorretamente generalizante. Se o fascismo do século XX foi multiforme, não se pode usar uma pretensa identidade para, só por si, se dizer que a realidade de hoje, com as suas inegáveis diferenças, nada tem de comum com o fascismo. Temos de começar por nos entendermos sobre o que foi, essencialmente, o fascismo e daí partir para a comparação com o presente. A besta é a mesma, embora a roupagem e a linguagem sejam muito diferentes, em muitos aspetos.
Seja com que nome for, está aí outra vez a besta. Reconhecê-la assim, na sua monstruosidade, é que é o essencial, mas demos-lhe um nome, para nos entendermos. Extrema-direita? Não me agrada, porque aponta para uma continuidade “geométrica” com toda a direita, que pode causar enganos arriscados e traduz alguma dificuldade de definição mais precisa, assim como quando se fala em centro-esquerda englobado numa noção de esquerda com muito de impreciso. Será preferível dizer-se ultradireita, apontando para uma posição para além de uma fronteira que, apesar de tudo, a direita tradicional, conservadora, antiprogresso, defensora estrénua do capitalismo, mas respeitando no essencial a democracia liberal, não se atreve a cruzar.
Alguns aspetos que associamos ao fascismo do século XX são acessórios ou, no caso dos fascismos de maior duração, temporários. Em Portugal, por exemplo, o militarismo não foi relevante até às grandes encenações da época da guerra colonial. Pelo contrário, toda a retórica da colonização épica, civilizadora, não teve paralelo, por exemplo, na Espanha, com um minúsculo domínio colonial. Também os fascismos ibéricos estiveram estreitamente ligados à Igreja católica, sendo fervorosamente religiosos os seus líderes máximos, enquanto que no partido nazi se cultivava uma espécie de paganismo nacionalista, contra o transnacionalismo das igrejas. Hitler e Mussolini tinham baixo grau cultural, enquanto que Franco era general e Salazar professor universitário.
A repressão e o genocídio interno e externo tiveram grande e monstruosa expressão na Alemanha, no Japão e na Espanha, sem paralelo em Portugal ou nos esquecidos fascismos húngaro, romeno ou croata. Na Península ibérica, o integralismo de base católica e a influência maurrasiana, assim como a apologia do ruralismo, sobrelevaram sobre o cosmopolitismo e até o modernismo artístico do nazismo e do fascismo italiano. Na organização social, o corporativismo dos fascismos latinos não foi importante na Alemanha. E também a “ópera fascista”, com as encenações de massa, as grandes manifestações, os uniformes e o estilo militar, tiveram menos expressão em Portugal ou ficaram limitados a um certo período, até ao fim da guerra.
Os fascismos do século XX também variaram nas suas influências ideológicas e míticas. Maurras e o seu nacionalismo integral, ou integralismo, estiveram nas raizes comuns, mas há influências específicas. O fascismo italiano e o seu corporativismo – neste aspeto também o salazarismo – vão beber ao sindicalismo nacionalista de Sorel (anteriormente um socialista revolucionário) e ao seu continuador Corradini. Na Alemanha, tem mais impacto uma leitura perversa de Nietzsche e a mitologia épica de glorificação germânica de Wagner, enquanto que a estética monumentalista e austera do nazismo, particularmente na arquitetura, difere da influência estética dos futuristas italianos, com realce para Marinetti.
Tendo havido diversas manifestações do fascismo, é necessário olhar para o seu núcleo central definidor, aquilo que todos os fascismos tiveram em comum, mesmo depois de alguma alteração cosmética dos regimes ibéricos após a derrota dos restantes.
Ideologicamente, a exaltação nacionalista e rácica; a intolerância; o totalitarismo; o anticomunismo; o primado da ordem social como valor máximo; o belicismo; o supremacismo branco e colonialista; o antissemitismo (em graus variáveis).
Politicamente, a ditadura; a ideia da obsolescência da democracia liberal; a repressão policial violenta e com recurso à tortura, aos julgamentos fantoche e à prisão indefinida ou em “campos de morte lenta”; a censura à informação e à criação artística; o regime de partido único; a demagogia do interesse pelas classes baixas; a “paz social”; o controlo férreo dos principais aparelhos de Estado, como as forças armadas e de segurança, a magistratura e o ensino superior.
Economicamente, a combinação de autarcia e exploração colonial; a defesa dos princípios e formas mais reacionárias de exploração capitalista; mas, simultaneamente, a intervenção do Estado no sistema capitalista, jogando a favor da concentração monopolista e dos grandes interesses económicos.
Uma boa síntese é também a que foi apresentada por Stanley Payne, historiador do fascismo em Espanha e Portugal:
- as negações fascistas: antiliberalismo, anticomunismo, anticonservadorismo;
- os objetivos fascistas: ditadura nacionalista para regular a economia, transformar as relações sociais e criar uma cultura nacional autónoma assente nos mitos do passado;
- o estilo fascista: simbolismo romântico na estética, grandes celebrações de massas, liderança carismática.
O contexto histórico também é importante para uma caracterização geral do fascismo. Todas as variantes do fascismo do século XX foram resultado de um quadro político, social e económico comum. Emergiram de crises económicas graves, precedendo de pouco ou seguindo-se logo à grande depressão, com as suas devastadoras consequências de desemprego e empobrecimento. Apareceram em situações de descrédito na democracia representativa tradicional e num quadro social e político em que o capitalismo tinha dificuldade em dominar um movimento operário pujante, como na Alemanha ou na Itália, ou mesmo em que tinha conseguido o poder político, na Espanha. Em Portugal, o movimento operário era mais frágil, mas o suficiente para amedrontar um capitalismo por sua vez ainda incipiente. Não admira, portanto, que todas as variantes do fascismo tenham diabolizado o comunismo e, de forma geral, perseguido toda a esquerda e as organizações livres dos trabalhadores.
O populismo moderno de ultradireita
A ultradireita de hoje é herdeira do fascismo; manifesta muitos dos seus traços ideológicos transportados até hoje por contínuos movimentos e organizações neofascistas, mas é necessário analisá-la e combatê-la tendo presente a sua especificidade. Por enquanto, a ultradireita atual é uma versão suave do fascismo. Ainda não cruzou abertamente algumas linhas vermelhas que os fascismos anteriores pisaram com botas cardadas, de exércitos ou milícias e é provável que, nas atuais condições de hegemonia ideológica do neoliberalismo, não cheguem a cruzá-las, conseguindo mesmo assim os seus objetivos.
A ultradireita age no quadro institucional democrático, não nega a validade dos partidos, não advoga abertamente uma visão totalitária da sociedade e do Estado. Mas muito mais do velho fascismo está já nela, pelo menos em latência:
- politicamente, o autoritarismo, centrado em líderes tidos como salvadores externos ao sistema e não corrompidos por ele (ainda que em muitos casos sejam políticos com carreiras partidárias típicas) face ao sistema corrupto e incluindo os grandes meios de comunicação. Este sistema é considerado como o responsável pela decadência da nação e do seu Estado, no quadro da globalização, para o que se apela principalmente às grandes perdedoras da globalização, as classes intermédias baixas e trabalhadoras.
- ideologicamente, a intolerância; o racismo e a hostilidade às minorias (não só étnicas, também de orientação sexual) vistas também como a ameaça de destruição de um mítico “modo de ser europeu”; a falta do sentido da democracia e das suas regras não escritas; o oportunismo; o nacionalismo retrógrado; o securitarismo sobreposto às liberdades; a convivência – ou mesmo assimilação – com milícias neonazis e racistas; a demagogia. Acessoriamente, também o negacionismo das alterações climáticas, o culto das teorias de conspiração – especialmente contra as instituições democráticas –, a fabricação das “pós-verdades” e a aposta nas guerras culturais, com a criação de um clima de ódio e a difusão de mentiras através das redes sociais
Também o enquadramento histórico tem muito de comum, como discutiremos adiante : à mesma, uma época de crise económica e financeira, com elevado grau de desemprego, com grande insegurança em relação ao futuro, com enfraquecimento crescente da prestação pública de cuidados de saúde e da garantia de segurança social, em particular na reforma. Esta movimentação política, ideológica e social reflete, como no século passado, a tentativa – ou uma das tentativas possíveis – de a parte mais enfraquecida do capitalismo, nomeadamente o capitalismo industrial, manter o sistema perante a crise económica e social. Crise, por se defrontar com as grandes mudanças no mercado de trabalho e nas alterações demográficas e com as contradições dentro do próprio capitalismo, tendo em conta a supremacia do capital financeiro. Há, todavia, uma diferença substancial: na época dos fascismos originais (com exceção do português), o movimento operário e os seus partidos eram muito fortes, estando mesmo no poder na Espanha, pelo contrário, hoje, a ascensão da ultradireita neofascista ocorre perante uma esquerda debilitada, quase mera espetadora do que se está a passar.
No plano subjetivo, intervém a permissividade do sentido comum atual a ideias de aceitação das desigualdades, de individualismo, de competição. Neste sentido, a atual ultradireita é filha do neoliberalismo, embora não oficialmente perfilhada pelo pai. Pai natural que, em todo o caso, não hesita em estender-lhe a mão quando é necessário, em levá-la para o governo como von Papen levou Hitler. Paradoxalmente, o ultradireitismo é muitas vezes, por outro lado, uma resposta ideológica de descontentamento com o domínio do neoliberalismo e contra a sociedade de desigualdade que ele exprime.
Com todas as diferenças e semelhanças entre o fascismo e a atual ultradireita, é comum acentuar-se um principal polo de aproximação, o populismo, com algumas das características que discutimos no último capítulo, mas com especificidades que importa ter em conta, para não se cair na enorme confusão que há em torno do termo populismo.
No capítulo anterior, preocupei-me com a análise do populismo à Laclau, por ser uma construção teórica importante e influente, com reflexos, a meu ver, nos objetivos e caminhos da luta transformadora. Acentuei também que esse populismo, de esquerda, era mais uma lógica política, discursiva, do que uma ideologia, como diz o próprio Laclau.
Em relação à ultradireita, que, na prática, é o principal objeto da denominação de populista, tenho muito mais reservas sobre a utilidade e rigor da utilização do termo. Um dos principais estudiosos do fenómeno populista, Cas Mudde, tendo-o analisado principalmente em relação à ultradireita europeia, hesita no entendimento da natureza desse populismo: é uma ideologia, um sindroma, um movimento político ou um estilo político?
Confessando-se pouco conhecedor da obra de Laclau, Mudde parece subvalorizar o seu carácter discursivo a apontar para um estilo político e acaba, na sua definição de populismo por valorizar mais a sua natureza ideológica: “o populismo é uma ideologia que considera que a sociedade está dividida em dois grupos homogéneos e antagónicos, o ‘povo puro’ versus a ‘elite corrupta’, e que defende que a política deve ser a expressão da ‘volonté générale’ do povo”. Por outro lado, sendo uma ideologia, “é centrada finamente (“thin-centered”), o que quer dizer que se preocupa só com parte da agenda política – por exemplo, não tem opinião sobre o que deve ser o sistema económico ou político.”
Se a primeira parte da definição aproxima teoricamente o populismo à Laclau de parte importante da natureza da ultradireita, já a segunda parte afasta-os significativamente. A utilização comum de dois de populismo para realidades bem diferentes acaba por não ser produtiva nem instrumentalmente útil, obrigando a ter de estar a esclarecer a confusão, adjetivando como de esquerda ou de direita.
Aliás, esta confusão é muitas vezes propositada, como no caso do discurso europeu “mainstream”. Tudo o que se afasta do consenso de Bruxelas cabe no grande cesto do populismo, que nunca se define com um mínimo de rigor. Pode ser o Brexit, o referendo grego de 2015, a posição antieuro de alguns setores da esquerda; e também podem ser Farage, Le Pen ou outros ultradireitistas, opostos, por nacionalismo retrógrado, ao cosmopolitismo da União Europeia.
Para além do que acabámos de discutir, fica o aspeto mais diferenciador dos dois chamados populismos: a natureza “triádica” do populismo de direita, como discutido por um dos conhecidos estudiosos do populismo, John Judis. Que significa este termo?
Como vimos no capítulo anterior, o populismo de esquerda divide a sociedade em dois grupos antagónicos, os de cima, a casta, os privilegiados social e economicamente; e o povo, a gente comum, a amálgama multitudinária e multitária dos potenciais revoltados contra os privilégios da casta. É o populismo diádico.
Já a ultradireita fascizante mantém a clivagem entre a casta e o povo, mas considera que a casta privilegia, contra a generalidade do povo, certos grupos marginais, por isto também alvo da hostilidade popular. É pela existência destes três grupos sociais que Judis fala em populismo triádico. O terceiro grupo, o bode expiatório de todos os problemas sociais e que por isto desvia o ódio popular da casta, é, em regra, o das minorias étnicas, de imigrantes. São os responsáveis pela violência, perturbam a harmonia social, desviam recursos financeiros do Estado para os seus apoios sociais, são os maiores responsáveis pelo tráfico de droga ou pela prostituição, ofendem os valores religiosos dos nativos, e até, pasme-se, procriam abundantemente com o fim de dominarem demograficamente os países que os acolhem.
Por rigor e para clareza de discurso, reservo o termo populismo para o que discuti no capítulo anterior, que mais não seja por ter sido extensamente caracterizado e teorizado numa perspetiva de lógica política de esquerda. Ao chamado populismo de direita, chamo simplesmente ultradireita. Parece-me importante considerar o risco de que, neste caso, um termo tão ambíguo e relativamente vago como é “populismo” ou mesmo “populismo de direita” se torne uma forma de suavizar, e logo normalizar, o impacto e a ideologia da ultradireita. Sei, todavia, que vou contra a corrente geral, que ou não distingue os dois populismos ou usa o termo principalmente para se referir à ultradireita, nomeadamente europeia.
As raízes da ultradireita
“Quem não quer falar acerca do capitalismo deveria calar-se acerca do fascismo”
(Max Horkheimer)
Mesmo nos países em que a ultradireita parece ainda respeitar algum arremedo de democracia formal, o autoritarismo já os arrasta para estados pós-democráticos, em oposição, pelo menos no plano dos valores e princípios, ao estado democrático de Direito, com desvalorização crescente dos direitos e garantias e do controlo dos governos e separação de poderes. Simultaneamente, esse processo é acompanhado por uma maior aproximação entre o poder político e o poder económico. Como vimos em capítulo anterior, tudo isto se pode vislumbrar no que essencialmente caracteriza o neoliberalismo. O crescimento da ultradireita acompanha no tempo a implantação do neoliberalismo e não é desrazoável pensar-se que não é mera coincidência.
Não é que o neoliberalismo não possa ter sucesso dentro do quadro político democrático tradicional, mas em certos casos extremos, e por razões opostas – impunidade por fraqueza de oposição popular ou receio da força do movimento popular – os direitos fundamentais e as garantias obtidas pelas lutas dos trabalhadores e do povo em geral nem sequer são tolerados pelas forças neoliberais, por constituirem entraves à eficiência e “inteligência” do mercado e à mercantiliização de toda a vida, bem como à contestação ou mero questionamento do sentido comum instilado pela hegemonia ideológica. “Em momentos de crise, por detrás de cada liberal moderado, encontramos um fascista”.
Não se pode dizer que seja já a situação generalizada, mas pode-se claramente antever o fim da ligação matrimonial entre capitalismo e democracia liberal. O capitalismo pode ser brutalmente eficaz sem necessidade da democracia, como aconteceu no passado com o fascismo. E, sob a forma de capitalismo de Estado, assistimos ao crescimento explosivo da economia chinesa conjugada com um regime político antiliberal e autoritário.
Muito eloquentemente, não há nunca uma nota de divergência económica no discurso ultradireitista, inteiramente convergente, neste domínio, com os ditames neoliberais. A ultradireita atual não representa qualquer rotura com o estádio atual do capitalismo. De facto, é uma filha perversa mas natural da ideologia neoliberal, levada ao limite. Daí também que seja legítimo postular que a ultradireita não é uma aberração transitória, podendo bem tender a ser progressivamente um substituto das velhas democracias liberais, representando um antagonismo crescente entre democracia e neoliberalismo. Pode não vir a haver uma rotura vincada e universal com a democracia formal representativa, mas uma deriva autoritária ou burocrática-administrativa, com desequilíbrio dos poderes, à semelhança do que já se vê em países que, não sendo ainda governados pela ultradireita, já têm regimes duvidosamente democráticos, como a Rússia, a Turquia ou a Índia.
E se ainda não se assiste a formas mais extremas de violência política antidemocrática é porque o neoliberalismo, sem forte contestação, tem conseguido, com sucesso assinalável, enquadrar na ordem estabelecida a repressão dos direitos dos trabalhadores e anular as suas reivindicações, evitando a revivescência de um fascismo que ainda está na memória coletiva dos filhos da geração que o sofreu.
A ascensão da ultradireita é uma manifestação das contradições do capitalismo; da sua crise estrutural, do ataque do neoliberalismo às classes trabalhadoras, da globalização, do enfraquecimento da democracia efetiva no Estado liberal. No entanto, não se deduza daqui, simplificadamente, que estes fatores se relacionam diretamente, de forma linear, com o fortalecimento da ultradireita. Não é nos países que mais sofreram com a última grande crise económica que apareceu mais cedo e se desenvolveu mais a ultradireita. Veja-se, pelo contrário, a Alemanha, a França, aHolanda, a Dinamarca, a Áustria. É nos países mais ricos, até agora descansados na tranquilidade fornecida pela União Europeia, que a ultradireita mais colhe nos medos de maior imigração, mais gastos em ajudas aos países menos riscos e maiores ameaças aos seus benefícios sociais.
Estas são causas materiais, de natureza social e económica. Isto não explica, porém, porque é que a revolta toma formas opostas às das lutas tradicionais dos trabalhadores. Tem de se fazer intervir fatores subjetivos. Em primeiro lugar, a falta de consciência sobre as causas da crise, que é sentida mas não compreendida. Há nisto boa responsabilidade para a fraqueza da luta ideológica da esquerda contemporânea, principalmente no combate específico ao neoliberalismo. Junta-se também o sentimento de perda de “status”, de prestígio social por parte de muita gente das chamadas classes intermédias que reagem contra alguma “osmose social”. Isto é relevante no caso brasileiro, em que há um “racismo” contra o pobre por parte dos membros dessas classes, exacerbado quando os governos do PT retiraram milhões d pessoas da situação de pobreza acentuada. Do individualismo e do novo sentido comum instilado pela ideologia neoliberal, já falámos. Finalmente, o descrédito da democracia e da política tradicional, acompanhado de falta de alternativas de protesto progressista facultadas pelos movimentos da sociedade civil. Também o enfraquecimento da identidade nacional, sobretudo na Europa, que discutiremos adiante.
Uma diferença a assinalar em relação a situações anteriores é que o ultradireitismo atual não aparece na sequência de um período de relativo equilíbrio entre as classes fundamentais, como aconteceu antes com o fascismo e ainda antes com o bonapartismo. Foram situações em que “a burguesia reconhece que o seu próprio interesse lhe impõe que se subtraia aos perigos do ‘self-government’, (…) que, para manter intacto o seu poder social, deve quebrar o seu poder político” (…) e “que, a fim de salvar a bolsa deve abrir mão da coroa” (Marx,“O 18 de brumário de Luís Napoleão”), entregando o poder político direto a serventuários mais eficazes na demagogia e no arrastamento das massas. Em situação prolongada de equilíbrio, a que mais tarde Gramsci chamaria de “interregno”, o bonapartismo e depois o fascismo resolvem a contradição de “uma época em que a burguesia já tinha perdido — e a classe operária ainda não tinha adquirido – a capacidade de governar a nação” (Marx, “A Guerra Civil em França”). No caso atual, a afirmação da ultradireita não vem ao encontro da ameaça do movimento popular, antes acentua a fraqueza deste nas últimas décadas. Não vivemos uma época de “interregno”, antes de refluxo do movimento popular, a que é mais adequado a designação cheia de perplexidade e incerteza de Manuel Sacristán, “mientras tanto”.
A par do neoliberalismo, a globalização tem um papel importante no recrudescimento da ultradireita. Quem mais ganhou ou perdeu com a globalização? Em termos absolutos, a relação é linear em termos de ganho em rendimento global per capita em função do percentil na distribuição mundial do rendimento. Todavia, a situação é muito diferente se considerarmos os ganhos em termos percentuais em relação ao início do processo de globalização.
A já clássica imagem da curva do elefante mostra uma distribuição complexa dos ganhos ou perdas com a globalização. O dorso do elefante, abrangendo uma gama considerável dos escalões de rendimento, começa com os países de menor rendimento, culminando nos países asiáticos de rendimento médio – China, Índia, Tailândia, Vietname e Indonésia. Mais para a direita na linha do rendimento global, é completamente diferente a situação das classes populares dos países desenvolvidos, que apresentam um saldo nulo ou negativo da globalização, enquanto que a tromba do elefante se ergue para o ponto máximo no extremo direito da curva, correspondendo aos 5% mais ricos do mundo, principalmente nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, aqueles a quem o autor, Milanovic, chama os “plutocratas globais”.
Sendo grandes perdedoras na Europa, não admira que boa parte das classes populares sejam atraídas, mesmo que com muita inconsciência e incoerência, por um discurso fascizante que lhes promete proteção contra a negação do seu conforto económico e segurança, ameaçados não pelos “plutocratas reais” mas sim pelos não-nativos que, ainda por cima, querem destruir o “modo de vida superior” e a santa religião dos europeus… E o mesmo para a quase metade dos americanos que votam em Trump.
A União Europeia tem graves responsabilidades no crescimento da ultradireita na Europa. Tem sido impiedosa para com os governos que se atrevem ma desafiar minimamente o seu consenso neoliberal, e de que foi exemplo máximo o esmagamento do governo grego em 2015, mas tem sido complacente com os discursos racistas, xenófobos e autoritários da ultradireita, aceita a sua entrada em governos dos países membros e mesmo o seu domínio na Hungria e na Polónia. Só tomou posição na menos adequada das situações, a das ajudas na pandemia, hipocritamente, quando antes nada fez para exercer os poderes que os tratados lhe conferem. A União europeia tolera na prática a ultradireita porque não o fazer seria, de facto, coisa impossível, pôr em dúvida o neoliberalismo. Para o consenso de Bruxelas, a economia é, coisa demasiadamente importante para ser confiada aos povos e ser controlada pela democracia.
As políticas da União Europeia depois da crise de 2011 têm muito a ver com o aparecimento e desenvolvimento da ultradireita no nosso continente. Degradaram o Estado social, limitaram o investimento público, enfraqueceram os mecanismos de controlo político dos mercados, especialmente dos mercados financeiros e enfraqueceram o poder negocial das classes trabalhadoras, ao mesmo tempo que as eufemisticamente chamadas “reformas estruturais” reduziram os direitos laborais protegidos legalmente. A capacidade de decisão dos Estados membros tem sido cada vez mais limitada e todos se sujeitam aos ditames de política orçamental derivados, fundamentalmente, do ordoliberalismo alemão e agravados pela hegemonia do pensamento único neoliberal, desvirtuando a democracia e violando a soberania dos povos europeus. Nesta situação económica e política, não é de admirar que as reações de protesto tenham um tom nacionalista, aproveitado para uma conotação retrógrada pela ultradireita.
A análise de classe
As análises da reemergência da ultradireita claudicam frequentemente por falta de uma adequada perspetiva de classe. Os autores marxistas contemporâneos do fascismo viram com clareza que o substrato das diversas modalidades do fascismo, sustentando as suas aparências ideológicas, era a mobilização de estratos voláteis da pequena burguesia, ou classe média baixa, que tendem a ser pró-capital, embora anunciando-se contra aspetos particulares e superficiais do capitalismo, como a corrupção, o nepotismo ou clientelismo, ao mesmo tempo que se sentem superiores ao operário vulgar ou ao trabalhador imigrante. Respeitam, em essência, o capitalismo e a sua ordem, mas, ao mesmo tempo, desconfiam das classes altas ou médias-altas, educadas e frequentemente mais alinhadas com a democracia liberal, adotando mesmo posições progressistas, por exemplo em termos de moral.
A porosidade das classes e a relativa osmose social são bem conhecidas, e já notadas por Marx. Por um lado, a classe média baixa, muita da pequena burguesia não possidente, é objetivamente parte integrante de uma classe trabalhadora sensu lato, assalariada e sem propriedade de meios de produção. No entanto, isto entra em contradição com a cultura e mentalidade desse estrato da pequena burguesia, como é exemplo paradigmático o jacksonismo americano de que já falámos.
Dialeticamente, esta contradição está longe de resolvida e está na base do sucesso do fascismo e, hoje, da ultradireita – condições objetivas favoráveis a uma atitude de protesto de esquerda; condições subjetivas que favorecem uma resposta ideológica de direita.
Que classes ou camadas sociais alimentam hoje a ultradireita? Os dados empíricos provêm da geografia eleitoral e de sondagens. Devem ser analisados com cautela. Em geral, na Europa, apontam para setores das classes trabalhadoras, nomeadamente operariado, em situação de acentuada degradação das suas condições de vida e também da pequena burguesia (hoje mais frequentemente apelidada de classe média baixa). No entanto, algumas análises mais finas lançam dúvidas sobre a transferência direta de eleitores de esquerda, em particular comunistas, para o eleitorado da ultradireita. Um dos melhores exemplos é o da Frente Nacional francesa, de que mais se fala como atraindo antigos eleitores comunistas. De facto, os seus bastiões eleitorais são as cidades de média e pequena dimensão, não industrializadas e com menor poder económico.
É preciso ter-se também em conta que as circunscrições eleitorais em que a ultradireita mostra ganhos são frequentemente zonas de habitação mista, com comunidades imigrantes e em que a população nativa de mais baixo nível é mais reativa aos alegados riscos de insegurança e desordem alimentados pelos seus preconceitos. Em Portugal, os concelhos em que o Chega obteve melhores resultados são, de facto, concelhos com maioria de habitantes de classes baixas, mas em que o voto comunista não era forte. São, como disse, concelhos com presença significativa de comunidades imigrantes ou ciganas – mas que, logicamente, não foram elas que votaram no Chega.
Portugal, no caso do Chega, mostra alguma disparidade com o resto da Europa, onde o eleitor típico de ultradireita é homem, jovem, com baixa instrução, operário, desempregado, pequeno empresário ou comerciante. Segundo uma sondagem de fevereiro de 2020, o retrato-robô do eleitor português do Chega é mulher, entre os 25 e os 44 anos, com percentagem considerável de ensino superior (20%), urbano, politizado. Este perfil aproxima-se mais do do eleitorado de Bolsonaro, no Brasil. Também não confirma a hipótese posta por alguns de transferência direta de eleitorado do PCP, sugerida pelo impacto do Chega em bastiões comunistas. Muito mais provável é que, nessas zonas, o eleitorado ultraconservador, saudosista da sociedade latifundiária, mesmo que já de segunda geração, se tenha transferido para o Chega dos partidos de direita tradicionais onde se acolhia até por falta de alternativa mais aliciante.
Já nos Estados Unidos, a base eleitoral trumpista é mais complexa, com motivações tanto económicas e sociais – sensivelmente as mesmas que temos vindo a discutir, em particular em relação aos trabalhadores de regiões industriais em crise – a que se juntam fatores culturais secularmente enraizados nos “americanos médios” da América do interior, com a sua mentalidade “jacksoniana” – uma filosofia política de espírito democrático e popular, mas que acabou por se sedimentar num populismo reacionário, individualista e propenso à violência. Corresponde a uma população branca nacionalista, autoconsiderada como a legítima representante da classe média, apologista da supremacia branca radicada no esclavagismo e no espírito dos pioneiros colonizadores. Começou por abranger principalmente pessoas gozando de um estatuto social e económico superior, mas hoje é decadente, incluindo principalmente elementos de classes médias baixas e até trabalhadores, ressentidos com a perda do seu estatuto.
São portadores de uma mentalidade tradicionalista extrema, centrada na exaltação da família, da honra, do trabalho árduo e do esforço individual, da religião. da virilidade, da justiça direta e da posse de armas. Desconfiam do governo e não defendem benefícios sociais, acreditando em que a riqueza, no sonho americano, é sempre legitimada pelo esforço pessoal. Por isto, desprezam os perdedores (“loosers”) e olham com sobranceria para os intelectuais, nomeadamente as camadas educadas das costas leste e oeste, estranhas ao seu mundo rural ou de pequenas cidades do centro dos Estados Unidos.
Paradoxalmente, o discurso quase obreirista de Trump, conjugado com o ataque a um dos inimigos principais do “jacksonianismo” – o governo central, federal, “os de Washington” — resulta em maior prejuízo para as camadas sociais que o apoiam, mau grado algumas medidas protecionistas visando o emprego em zonas deprimidas. A redução dos impostos dos mais ricos, a subsidiação maciça de empresas privadas para obras públicas, a destruição do já muito fraco sistema se proteção social e de saúde, vão contra os interesses das camadas pobres que constituem parte significativa do eleitorado de Trump. O que se passa no Brasil de Bolsonaro também não se afasta muito desta realidade.
É por tudo isto que o problema não é Trump; o problema são os muitos milhões, quase meia América, que o elegeram, segundo os mecanismos normais da democracia representativa e que lhe deram legitimidade indiscutível. Quase que da mesma forma, podemos dizer que o problema não é Bolsonaro mas sim a grande percentagem de brasileiros que ainda representam a mentalidade elitista, racista e supremacista herdada dos antigos colonizadores e dos seus serventuários mais próximos. E como ao menos anular estas mentalidades tão marcadas, para fazer vingar futuramente uma nova hegemonia ideológica e cultural num novo projeto transformador e emancipatório?
Os cativados pelo fascismo e agora pela ultradireita neofascista não o são apenas por serem lesados pela crise económica e social. Deve-se acrescentar um fator importante, subjetivo: a noção de que desceram de nível económico-social de que perderam “status”, mesmo privilégios. É um sentimento que não desperta revolta ou vontade de luta com consciência de classe, antes a sensação de derrota pessoal e de humilhação, de ressentimento e rancor, facilmente canalizados para a culpabilização e hostilidade ao “outro”, por mais ilógica que seja essa ligação, e sem a compreensão de que ela desvia a responsabilidade do principal culpado pela crise.
De facto, na complexa situação social me psicológica em que medram o velho e o novo fascismo, não é necessário um discurso racional, articulado, que nem sequer é possível perante a heterogeneidade de causalidades e de “outros” invocados pelo discurso de tipo fascista. Os apelos irracionais podem bem ser toscos, primários, confusos e irracionais. Afinal, os perdedores do neoliberalismo e da globalização não estão à procura de um fundamento ideológico, apenas de um conforto para a sua frustração e de uma justificação irracional, autorizada pelo líder fascista, para o que sentem como descrença com a política institucional, como desconfiança dos partidos e com o desinteresse pela democracia. Assim, na ação política contra a ultradireita, é preciso ter-se sempre presente que a grande maioria dos milhões dos seus eleitores são sensíveis à mensagem fascista mas não são política e ideologicamente fascistas. No entanto, que este dado objetivo não sirva para a banalização ou a normalização da ultradireita. Uma coisa é não estigmatizar o eleitor pouco consciente da ultradireita, outra é não a combater como organização e ideologia.
O combate
Sendo tão diversas as caracterizações do complexo fascismo-ultradireita, é inevitável que sejam também diversas as propostas de combate a esse perigo. É evidente que há enorme convergência na ideia de que a ultradireita não é um fenómeno passageiro e conjuntural. Não se pode colocar com segurança a hipótese tranquilizadora de ela não continuar a crescer e, portanto, há a mesma convergência na ideia de que é necessário combater firmemente a ultradireita. No entanto, a convergência termina aí e é prejudicada por diferenças consideráveis de interpretações e atitudes, que levam aos problemas que discutiremos já a seguir.
Anote-se também que, até por as diferenças se relacionarem com a ideologia e a ação de forças políticas, as discussões podem ser apaixonadamente irracionais e mesmo recorrendo ao insulto ou à etiquetagem maniqueísta e dogmaticamente reducionista.
Por exemplo, três antifascistas históricos espanhóis, Héctor Illueca, Manolo Monereo y Julio Anguita, foram massacrados como “rojipardos”, branqueadores de Salvini, por terem elogiado o “decreto Dignidade” do governo italiano 5 Estrelas – Liga (mas da iniciativa do 5 Estrelas). O elogio teve a ver com o conteúdo do decreto em termos de medidas antineoliberais e inseridas no protesto (aliás efémero) desse governo contra as regras europeias. As críticas baseavam-se em alegada simpatia por Salvini, sem que, em geral, os seus críticos discutissem a análise do decreto Dignidade feita pelos três espanhóis (e com a qual eu até nem concordo inteiramente).
Diego Fusaro, marxista italiano, é repetidamente apelidado de fascista ou simpatizante por defender a tese – que discutiremos adiante – de que o fascismo está a ser trivializado e que a atual ultradireita é um inimigo secundário em relação ao inimigo principal que é o neoliberalismo e a mercantilização global e, na Europa, a sua tradução institucional, a União Europeia. Jean-Luc Mélenchon, por defender maior regulação da imigração na Europa, é acusado de aliança com Le Pen e até acusado por esquerdistas convictos de ter deixado de cantar nos seus comícios a Internacional, substituindo-a pela Marselhesa – e isto numa campanha eleitoral para presidente da República… Jeremy Corbyn e o grupo alemão Aufstehen, de que falaremos adiante, levam pela mesma medida, como fascistas encapotados. O epíteto insultuoso de “vermelho-castanhos” já está a ser um novo “social-fascistas”, um século depois.
1º problema – a trivialização
Um dos erros de análise que prejudica a clareza da definição de uma estratégia de combate à ultradireita é a trivialização do fascismo. Já o discutimos atrás. Há o risco de que “quando tudo é fascismo, nada o é, e perde-se a substância do que foi e significa a ditadura terrorista do capital monopolista”. Porém, é claro que não trivializar o fascismo também não pode significar branquear a ultradireita atual, como se ela não fosse um perigo, apesar de (ainda?) longe da monstruosidade do nazi-fascismo.
Com muitos pontos de contacto e alguma semelhança dos contextos em que emergiram o fascismo e a atual ultradireita, e nunca se repetindo a História exatamente da mesma forma, há diferenças substanciais que proíbem a repetição da luta antifascista, bem conhecida – e bem sucedida, se bem que com uma guerra devastadora.
Note-se, por exemplo, como é diferente, num caso e noutro, a questão do racismo. Ela é hoje mais complexa do que o que foi essencial no fascismo, o antissemitismo. Agora, o racismo propriamente dito, mais boçal ou mais envergonhado e dissimulado, vem embrulhado com outros problemas menores no tempo do fascismo: a imigração, os refugiados, o medo da competição pelo trabalho e pelos benefícios sociais, o receio de perda de “identidade nacional” pelo choque de culturas, a instilação do sentimento de insegurança. Por outro lado, como se vê na Europa, a rejeição do imigrante pode não ter um componente racista, antes nativista, sendo igualmente branco e de cultura europeia o “canalizador polaco” mal recebido pelos nativos dos países europeus ricos. A resposta ao novo racismo deve articular todos estes aspetos.
Chamar generalizadamente de fascismo a tudo o que hoje, de forma muito variada, configura a ultradireita pode significar não ver os alvos específicos para o combate atual. E digo, de forma variada: coisas com particularidades são combatidas diferenciadamente. A luta será diferente contra o trumpismo, contra o bolsonarismo, contra a ultradireita europeia.
2º problema – a unificação do mal
A ultradireita não tem uma ideologia global, articulada. As suas bandeiras são uma coleção pilha-apanha de questões nem sempre indissociáveis, reunidas por duas coisas simples: serem vistas numa perspetiva comum de reacionarismo antidemocrático, antiprogressista e antipopular; e corresponderem a problemas sentidos por muita gente e passíveis de as agregar, por demagogia, numa movimentação política só aparentemente congruente.
É um erro, portanto, globalizar obrigatoriamente a luta antifascista de hoje. Sem prejuízo do combate ao reacionarismo geral da ultradireita, é necessário individualizar os seus “leitmotive” e dar-lhes luta específica. Indo mesmo mais longe, é necessário analisar bem o sucesso das posições ultradireitistas, reconhecer onde e quando é que elas medraram por culpa também da omissão da esquerda e retomar a influência nas camadas populares desviadas pela demagogia ultradireitista. É preciso ter a coragem de admitir que algumas posições da ultradireita podem ter fundamentos razoáveis, embora servindo para propostas inaceitáveis. Isto significa ter de apresentar contrapropostas corretas e não enfiar a cabeça na areia, como faz alguma esquerda que se deixa ficar por retóricas antifascistas sem impacto real.
Os dois exemplos mais significativos são o problema dos imigrantes e a questão europeia. Esclareço, como nota prévia essencial, que não incluo no problema dos emigrantes a questão do asilo humanitário aos refugiados de guerras, calamidades, perseguições políticas, até genocídios – sim, que ainda há genocídios de vez em quando. É coisa distinta do que vamos discutir – a migração económica – e não é passível de qualquer dúvida a obrigação humana de apoio total aos refugiados, obrigação civilizacional que nem é de esquerda nem de direita.
No entanto, pode não ser tão clara a distinção entre os dois tipos de migração. As guerras civis ou intervenções militares e a miséria ou a destruição das economias tradicionais têm vítimas comuns. E onde há crises humanitárias, estão geralmente por detrás as grandes potências, e também os seus mandaretes de segunda linha, como a Turquia e os países árabes ricos. A responsabilidade dos EUA e da Europa nas migrações, seja por via geoestratégica ou por via económica, implica que a sua resposta não possa ser disfarçada de simples razões humanitárias.
a) a imigração económica
O problema existe e não é uma invenção da ultradireita. O que é preciso é discuti-lo em termos próprios da esquerda, buscar-lhe as raízes e dar-lhe solução adequada, não a reduzindo a retórica ou fórmulas idealistas. É claro que todos os socialistas, no mundo que ambicionam, miram um dia em que os homens, livres, se podem mover por toda a parte e residir e trabalhar onde desejarem. Ainda não vivemos esse dia e, no mundo real de hoje, é impossível o planeamento económico internacional e a propriedade pública exigidas pela livre circulação dos trabalhadores.
Atualmente, a livre circulação de trabalhadores em busca de emprego não é um direito consagrado. Não consta, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e sempre foi objeto de regulamentação por quase todos os países, em função das necessidades dos seus mercados de trabalho.
É indubitavelmente uma ideia justa, em abstrato, e que exprime bem o “internacionalismo proletário”, mas não pode ser vista fora do contexto histórico. Hoje, na realidade do capitalismo atual e da globalização, até pode ter efeitos perversos, de divisão entre trabalhadores, quebra da sua organização e “dumping” social e do mercado de trabalho. A abertura total de fronteiras do mundo do trabalho não deve deixar de ser vista no quadro dos interesses do neoliberalismo globalizante, a quem ela muito interessa.
O mesmo Marx do “proletários de todos os países, uni-vos” é também o que reconheceu os perigos da divisão entre trabalhadores imigrantes e nativos e a utilização abusiva da mão de obra imigrante contra os trabalhadores do país.
“Todos os centros industriais e comerciais na Inglaterra possuem agora uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis, os proletários ingleses e os proletários irlandeses. O trabalhador inglês comum odeia o trabalhador irlandês como um competidor que rebaixa o seu padrão de vida. (…) Ele acalenta preconceitos religiosos, sociais e nacionais contra o trabalhador irlandês. A sua atitude em relação a ele é muito semelhante à dos “brancos pobres” com os negros nos ex-estados escravistas dos EUA. O irlandês retribui com juros do seu próprio dinheiro. Ele vê no trabalhador inglês tanto o cúmplice quanto a ferramenta estúpida dos governantes ingleses na Irlanda. Esse antagonismo é artificialmente mantido vivo e intensificado pela imprensa, pelo púlpito, pelas revistas humorísticas, enfim, por todos os meios à disposição das classes dirigentes. Este antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de sua organização. É o segredo pelo qual a classe capitalista mantém o seu poder. E ela está bem ciente disso” (“Carta a Max Sigfrid Meyer e August Vogt em Nova Iorque”.).
E também que “o estudo da luta travada pela classe trabalhadora britânica revela que, para se opor aos seus trabalhadores, os empregadores trazem trabalhadores do exterior ou então transferem a manufatura para países onde há uma força de trabalho barata”. Todavia, Marx não fica impotente perante esta situação e vê nela perspetivas revolucionárias: “Depois de estudar a questão irlandesa durante muitos anos, cheguei à conclusão de que o golpe decisivo contra as classes dominantes inglesas (e será decisivo para o movimento operário de todo o mundo) não pode ser desferido na Inglaterra, mas apenas na Irlanda. (…) A Irlanda é o baluarte da aristocracia fundiária inglesa. A exploração daquele país não é apenas uma das principais fontes de sua riqueza material; é sua maior força moral. Eles, na verdade, representam o domínio sobre a Irlanda. A Irlanda é, portanto, o meio cardeal pelo qual a aristocracia inglesa mantém o seu domínio na própria Inglaterra” (Marx, ““Sobre o Congresso de Lausanne”, 1867).
Nos últimos anos, algumas correntes de esquerda têm considerado que deixar à ultradireita a defesa de um maior controlo da imigração económica é uma ingenuidade com consequências na transferência de parte considerável do eleitorado de esquerda para o campo neofascista. Os casos mais notórios desta opinião são a “France Insoumise”, de Jean-Luc Mélenchon e o movimento Levanta-te (“Aufstehen”) lançado, com grande apoio, pela dirigente do “Die Linke” Sarah Wagenknecht. Também, de forma mais mitigada, o movimento “Momentum” das bases mais à esquerda do Partido Trabalhista britânico, apoiantes de Jeremy Corbyn. Consideram que a esquerda cedeu demasiado perante as posições cosmopolitas e pró-globalização da classe média urbana, hoje decisivamente influente na nova esquerda, esquecendo-se dos perdedores da globalização; e que há que os recuperar mesmo que com algum “chauvinismo de bem estar”.
Como seria de esperar, estas posições têm sido muito criticadas por setores radicais que as consideram uma traição ao internacionalismo e cumplicidade com a ultradireita. De facto, pode haver este risco, mas só se as posições coincidirem em conteúdo e contexto, o que não se verifica. Por parte de ambos os referidos movimentos, a defesa da prevenção dos riscos de uma imigração ilimitada e descontrolada inserem-se numa proposta global socialista, de defesa radicalista dos direitos e interesses dos trabalhadores e até com muitos laivos de populismo de esquerda.
A esquerda não pode ser como os lendários três macacos mas também não pode deixar de se desmarcar claramente. Coincidir na perceção do problema não é, obviamente, coincidir obrigatoriamente na sua solução. De forma alguma pode parecer que se trata de disputar à ultradireita as suas propostas, mimetizando-se com o adversário para lhe roubar os êxitos e os apoiantes. Há que os ganhar, mas pela oferta das soluções corretas.
Face a essas posições de esquerda favoráveis ao controlo das fronteiras e à limitação da imigração, há que perguntar se, de facto, isto contribui para melhorar a vida das classes trabalhadoras e, com isto, tirar o tapete à ultradireita.
Há competição para o emprego por parte dos imigrantes? É duvidoso, com estudos a concluir o contrário, mas há muito de subjetivo e demagogicamente manipulável no receio da imigração como forma de competição pelo emprego. É certo que ela representa agora, com as migrações clandestinas e no tráfego de pessoas, um fator de maior incerteza e de dificuldade de regulação, mas, no essencial, mantém-se a situação que, como os nossos emigrantes dos anos 60 conheciam bem, era a de os emigrantes irem ocupar os postos de trabalho que os nativos já não queriam, dispondo estes de melhores oportunidades, por melhoria das suas qualificações e criação constante de novos empregos especializados para os quais os emigrantes não dispunham de condições. O problema até é o contrário; são os imigrantes que muitas vezes têm dificuldade em obter trabalho, uma vez que o sistema desregulado já não lhes garante, como antes, que, à chegada ao país de receção, venham com um contrato de trabalho garantido. É vê-los, por todas as grandes cidades, em situações semimiseráveis, a vender bugigangas ou de mendicidade encapotada.
Se parece que a imigração não afeta significativamente o emprego dos trabalhadores nacionais, é provável que possa afetar o nível médio de salários dos trabalhadores pouco qualificados. Como escreve Len McCluskey, secretário geral do sindicato inglês UNITE, “quem quer que tenha tido de negociar em nome dos trabalhadores, principalmente das manufaturas, conhece as enormes dificuldades que têm derivado da capacidade do capital para deslocar a produção à volta do mundo – frequentemente para a China, o Extremo Oriente e a Europa de leste – em busca de custos de trabalho muito inferiores e maiores lucros. Da mesma forma, o uso da imigração pela elite deste país não é motivado pelo amor à diversidade ou pela devoção ao multiculturalismo. Pelo contrário, diz respeito ao modelo de mercado de trabalho flexível, assegurando uma plena oferta de trabalho barato para aqueles postos que não podem ser deslocalizados”.
Clama-se também contra a subsídio-dependência dos imigrantes. Novamente, é preciso distinguir refugiados e imigrantes económicos. É falso que estes últimos sejam um peso para os orçamentos estatais. Se muitos têm de ser socorridos com ajudas, os imigrantes são, no total, contribuintes líquidos para o Estado e, particularmente para a segurança social, atenuando o problema demográfico do défice da segurança social. Em Portugal, “a relação entre as contribuições dos estrangeiros para a segurança social (…) e os gastos do sistema com prestações sociais de que os contribuintes estrangeiros beneficiam (…) é bastante positiva e favorável, tendo-se atingido um saldo de +884M€ em 2019, o valor mais elevado dos últimos anos”.
As queixas de que os imigrantes são uma minoria protegida e beneficiada comparada com os trabalhadores nativos são absurdas. Um relatório norte-americano, certamente extensível à Europa, mostra uma situação bem diferente. Como a maioria dos trabalhadores pobres, de que são uma grande parcela, os imigrantes são as maiores vítimas de violações dos seus direitos: salários inferiores ao mínimo legal, horários excessivos, contratos precários com facilidade de despedimento, deduções e multas ilegais, retaliações, não pagamento de compensações por acidentes, obstáculos à sindicalização. Estas violações afetam mais as mulheres e são duas vezes mais frequentes em relação aos imigrantes do que aos trabalhadores nativos.
Se a regulação da imigração tem muito de aceitável, ela não basta para combater a hostilidade em relação aos trabalhadores estrangeiros e exige, desde logo, uma ação eficaz para impedir a desunião entre trabalhadores, nativos e estrangeiros, irmanados na sua situação de classe. A esquerda, as suas organizações e em particular os sindicatos têm a obrigação de trabalhar neste sentido, começando logo por combater as ideias que estão na base da hostilidade aos trabalhadores estrangeiros.
É necessário ir às raizes. Quanto aos refugiados, lutar contra as ingerências estrangeiras em outros países, com guerra e destruição, impedir a degradação de países á situação de “estados falhados”, pressionar os nossos governos para não venderem armamento nem protegerem regimes corruptos e ditatoriais, para não explorarem os recursos dos países pobres. E também lutar por uma nova ordem mundial, contra a unipolaridade imperialista.
Jeremy Corbyn afirmou nas Nações Unidas, no dia Internacional dos Direitos Humanos de 2017: “uma visão de um novo sistema global baseado na cooperação, na solidariedade e na ação coletiva. A atual crise de migração foi alimentada por uma mistura de desigualdade económica, guerra e destruição do clima, e a sua solução está em abordar essas causas subjacentes. Os países europeus podem e devem fazer mais, à medida que a taxa de mortalidade de migrantes e refugiados que cruzam o Mediterrâneo continua a aumentar. Mas sejamos claros: a resposta de longo prazo é a cooperação internacional genuína baseada nos direitos humanos, que enfrenta as raízes dos conflitos, perseguições e desigualdades.”
No caso das migrações económicas propriamente ditas, pode-se ajudar o desenvolvimento dos países de origem – de boas intenções está o inferno cheio–, pode-se combater o tráfego de seres humanos, pode-se controlar sem xenofobia o acolhimento de imigrantes de forma a não haver disrupções do tecido social e económico, pode-se exigir aos empresários que só possam recrutar imigrantes ao abrigo de acordos de trabalho com os sindicatos, mas é praticamente impossível ir-se às raizes: a miséria de milhões de pessoas dos países subdesenvolvidos.
Ao menos, é imperioso que as organizações de trabalhadores, partidos e sindicatos, combatam em cada país a divisão entre trabalhadores nativos e imigrantes, mas que as combatam com ações efetivas e integração dos imigrantes, não apenas com discurso antifascista. irmanar os trabalhadores de todas as origens, integrá-los na mesma luta central e fazê-los compreender que a divisão interessa é ao inimigo comum contribui para uma mentalidade que resista à manipulação pela ultradireita.
E os sindicatos precisam de se unir aos sindicatos de outros países, numa frente sindical internacional renovada capaz de lutar contra o capital global na sua ação de disputa entre trabalhadores de todo o mundo, disputa esta inserida no quadro de outra globalização, a do mercado de trabalho. O problema não é a mão-de-obra barata num país – é a mão-de-obra barata em qualquer parte do mundo.
b) a União Europeia
A União Europeia é uma questão central quando se estuda a ascensão da ultradireita. Nela estão integrados dois países, Hungria e Polónia, que hoje estão governados por partidos de ultradireita, e é em relação a ela que se dirigem boa parte das mensagens políticas da ultradireita. Deixarei para capítulo próprio a discussão do atual quadro político e económico europeu, mas é indispensável agora lembrar oi que um pouco atrás ficou dito, resumidamente, quanto à natureza da União Europeia e às suas políticas. A atitude em relação à União Europeia é um bom exemplo de uma questão que não pode ser tabu para a esquerda só porque é uma bandeira da ultradireita.
Falaremos adiante da responsabilidade da esquerda europeísta, mas começamos por lembrar que há uma esquerda radicalmente crítica da atual construção europeia, não tendo receio de ser apanhada na velha falácia da ferradura, dos extremos que se aproximam. Dispensa-se, por evidente, a demonstração de que a recusa desta União Europeia por parte dos tais dois extremos não coincide nem nos princípios, nem nos fundamentos, nem nas propostas. No entanto, toda a propaganda europeísta usa essa aparente convergência para assimilar as rejeições opostas do projeto europeu atual, com a etiqueta comum de “populistas”.
Já vimos como os poderes económicos, para imporem o seu neoliberalismo, foram progressivamente construindo uma UE que é inimiga dos trabalhadores, que lhes retirou direitos laborais, que precarizou o emprego e desregulou o mercado de trabalho e que tem vindo a destruir o estado social de bem-estar e reduziu substancialmente a soberania dos estados membros. Colaborando com tudo isto, a social-democracia deixou as classes trabalhadoras sem referenciais, sem defesas, isoladas, cheias de medo e buscando segurança. É de admirar que esta União europeia esteja a ser uma fábrica de fascistas?
No conflito de noite escura – em que nem sequer percebemos a escuridão – entre as classes dominantes e as classes trabalhadoras e os povos da Europa, centrada na União Europeia, os últimos bastiões de resistência, aqui ou acolá, só podem ser os Estados soberanos, nível ao qual os trabalhadores menos dificilmente podem obter resultados das suas lutas. pelo contrário, a nível da União, é quase impossível hoje ultrapassar os escolhos da globalização, da despolitização da economia e dos ditames consensuais (entre governos e outros poderes) impostos pelos interesses do capital, num processo que não tem nada de internacionalismo mas sim de cosmopolitismo de elite. Os Estados nacionais podem ou não ser democráticos; o que nunca pode ser democrática é a economia globalizada, sobrepondo o mercado ao controlo político.
Parte da esquerda, europeísta, acaba por se aliar ao liberalismo cosmopolita da União Europeia e seus seguidores, considerando como reforço da ultradireita anti-União Europeia qualquer oposição firme a este modelo vigente de construção europeia. Querendo desmarcar-se da ultradireita, a esquerda europeísta é cúmplice.
Alinha assim essa esquerda no grande consenso liberal que nos oferece uma Europa idílica, próspera e solidária, que ultrapassou os conflitos de classe e de poder. E com o sonho idílico de uns Estados Unidos da Europa. Para a esquerda europeísta, em maior ou menor grau, defender a soberania popular, os interesses nacionais e as políticas económicas progressistas é considerado como nacionalismo, negação de um internacionalismo basilar da construção europeia, afinal não um verdadeiro internacionalismo mas sim uma visão homogénea, cosmopolita, convergente com a perspetiva dos interesses capitalistas.
O nacionalismo da ultradireita é um nacionalismo retrógrado, que na história recente serviu os interesses das classes dominantes e. dividiu os povos, com as consequências trágicas que se viram desde a I Guerra Mundial. No entanto, à falta de outra alternativa de defesa dos interesses nacionais e populares, muita gente se vira para esse nacionalismo retrógrado.
É imperioso que a esquerda eurófila perceba que está a deixar um enorme vazio a ser ocupado pela ultradireita. O verdadeiro internacionalismo não é esta atual unificação europeia homogenizadora, arrasadora das particularidades nacionais, com os estados nacionais – um anacronismo não cosmopolita, dirão… – cada vez mais diluídos num grande mercado único em que reina a lei da competição cruel, disfarçada nas liberdades de circulação de bens, serviços, pessoas e capitais.
Não é coerente exigir a defesa e mesmo o crescimento dos instrumentos e recursos do estado social de bem-estar e não lutar, dirigindo-de ao alvo europeu, pela ressocialização da economia europeia. Não é realista pensar que a atual construção europeia e os seus consensos político e económico permitirão a reconquista das perdas de democracia da realidade sócio-política e da capacidade nacional para aprovar autonomamente planos económicos para o bem-estar, o desenvolvimento e a criação de emprego. A única via eficaz é a recuperação da soberania nacional.
Concluindo, e como vimos em relação à emigração, a esquerda não pode pretender lutar contra a ultradireita se não puder dar uma resposta de esquerda aos problemas reais de quer a ultradireita se aproveita, demagogicamente e desfigurando-os numa perspetiva ideológica fascizante.
3º problema – a segmentação do combate
A ultradireita é racista, xenófoba, homofóbica, machista, tal como era o fascismo original. É importante combater estas manifestações de extremismo reacionário, no quadro do combate global à ultradireita. Mas corre-se o risco de fragmentação desse combate, podendo chegar-se a colocar grupos contra grupos, fazendo um grande favor à ultradireita.
Esta questão não se punha tanto no fascismo do século XX mas agora a situação é diferente porque há movimentos e organizações particularmente dedicados ao ativismo no domínio da defesa das minorias ou de grupos sociais específicos, naquilo que se designa como lutas identitárias. Também, como já vimos, os partidos ditos de novas esquerdas são particularmente abertos a estas questões.
Um caso paradigmático dos possíveis riscos que apontei é o dos EUA e da política do Partido Democrata nas últimas décadas, que lhe alienou o apoio de parte significativa do eleitorado de Trump, por se sentir abandonado.
Ao contrário do fascismo europeu e da sua atual ultradireita, que não põem problemas ao sistema económico, a atual ultradireita americana é vincadamente antissistema, anti-Estado, libertária e desafia o comodismo do sistema partidário. A defesa adotada pelo Partido Democrata foi ir procurar apoios em setores sociais diferentes, enfatizando as políticas identitárias e contra a discriminação, dando atenção, em círculo vicioso, à integração de elementos das minorias nos círculos dirigentes partidários e nos eleitos políticos. Isto a par de uma ênfase na importância dada à linguagem e ao “politicamente correto”, sentida por muitos como mera simbologia desprovida de sentido real e a não ser levada a sério, em termos de imagem do partido junto da gente comum.
Muita desta gente comum, como já discutimos, sentiu-se abandonada e alimentou o eleitorado trumpista. Por outro lado, nem sempre as intervenções identitárias beneficiaram sequer o partido democrata nos setores a que se dirigiam, como se viu na redução do voto negro e no fraco impacto no eleitorado de origem hispânica em estados que acabaram por ser bastiões de Trump. Isto ainda foi mais manifesto no que se refere ao voto feminino, em que, apesar do apelo do movimento feminista NOW, o voto da maioria das mulheres trabalhadoras não foi para a candidata feminista, Hillary Clinton.
Não se nega a importância da luta pelos direitos civis, pela representatividade, tanto no público como no privado. Mas é necessário que isto seja acompanhado, e integrado, pela luta pelos direitos económicos. Dar primazia aos políticos só atrai os que, nas minorias, já gozam de direitos económicos, não devendo esquecer-se que, até certo ponto e de forma. muito assimétrica, as minorias também abrangem várias classes. Passado o tempo dos grandes movimentos pelos direitos civis, principalmente dos negros, muitas das ações identitárias de hoje, #metoo e outras, são vincadamente elitistas e esquecem que a maioria nas minorias partilha com os trabalhadores pobres das maiorias os mesmos problemas de dignidade no trabalho, de salários, de falta de proteção social, de desemprego, de falta de habitação decente, de acesso a níveis mais elevados de educação. A discriminação étnica, de género ou sexual tem a base comum da discriminação social e económica. também há o racismo contra a “raça” dos pobres.
É nisto que Bernie Sanders marcou diferença substancial no Partido Democrata, com a sua mensagem predominantemente socialista. O problema é que, tendo de se socorrer da etiqueta partidária, em virtude das idiossincrasias do sistema político americano, entra em conflito insanável com o aparelho do partido, mesmo que esse aparelho tenha aprendido, com H. Clinton, que a aliança com Wall Street mais o identitarismo de elite são uma receita ineficaz.
A ênfase nos direitos individuais, mesmo que sob a aparência de coletivos – de facto “tribais” – vai ao encontro da mentalidade individualista e libertária que se desenvolveu mesmo em sectores da esquerda desde os anos 60 do século passado. Arriscamo-nos a voltar a uma situação clássica em que os direitos civis se convertam apenas em direitos burgueses, como já Marx tinha discutido em “A Questão Judaica”. Direitos tidos como conquista mas afinal frequentemente alinhados com o espírito individualista e libertário alimentado tanto pelo neoliberalismo como pelo pós-modernismo, que já discutimos sobejamente. Os direitos dos produtores, dos trabalhadores, descaracterizam-se como direitos dos indivíduos socialmente isolados como meros consumidores.
Esta mentalidade não gera só a fragmentação, a criação de microconflitualidades, a divisão artificial entre camadas populares. Contribui em boa parte para o enfraquecimento da capacidade de luta contra a ultradireita. Esta agita pseudo-soluções para problemas reais; apresenta-se como portadora de certezas claras; canta uma épica de rebeldia contra o sistema e os poderosos; afirma virtudes morais universais e tradicionalistas.
Por seu lado, com algum desnorte, parte da esquerda, moderna (ou, mais rigorosamente, pós-modernista) celebra direitos afinal disfarçadamente concedidos pelo neoliberalismo; cuida de se apresentar como moderada, sensata e respeitável; procura afanosamente causas que obscurecem o conflito social básico; e perde-se na discussão do relativismo ético e cultural, parecendo ter vergonha de assumir valores que dizem muito às pessoas: honra, verdade, decência, espírito de família, patriotismo (no bom sentido). Em alguns casos, dizem-se populistas mas a que povo julgam que vão chegar e fazerem-se ouvir?
Note-se bem que nada do que até aqui disse rejeita que, hoje, a luta social, cultural e ideológica não se esgota na defesa das classes trabalhadoras e que há conflitos importantes além do conflito capital-trabalho. Não há sentido numa política de defesa dos trabalhadores cúmplice com a exclusão de minorias de trabalhadores ou que não cuide da igualdade das mulheres trabalhadoras. No entanto, isto é muito diferente de subalternizar a luta social e económica de classe. Tudo se articula, mas é necessário hierarquizar. Se não há sentido no que acabei de dizer, muito menos há sentido no seu oposto. Por exemplo, confundir o feminismo elitista, retórico e superficial, com as lutas ainda tão necessárias pelos direitos da maioria das mulheres trabalhadoras. É lapalissada dizer-se que há brancos e pretos, hetero e homossexuais, homens e mulheres. A questão está na avaliação do grau em que essas dualidades significam conflitualidade; claro que significam, mas mais ou menos do que a dualidade capitalista-trabalhador?
4º problema – ir às raizes
A ultradireita é uma ameaça à democracia, tal como ela é habitualmente concebida – democracia liberal representativa. Isto justifica, tal como aconteceu com o fascismo, a constituição de uma ampla frente antiultradireita, de todos os partidos e outras organizações, assim como dos cidadãos em geral, que, mesmo com perspetivas ideológicas distintas quanto ao modelo de sociedade, consideram a democracia como uma conquista política, não negada pela perspetiva socialista. A esquerda deve estar aberta a todas as alianças para o combate à ultradireita, mesmo que essas alianças tenham limitações em relação à possibilidade de adoção das verdadeiras medidas eficazes.
Nessa aliança, nem todos partilharão a mesma visão das causas da ascensão da ultradireita e, consequentemente, das raizes que há que cortar. Cortar os ramos podres da árvore não a cura da doença. A esquerda consequente e a direita ou a atual social-democracia divergem na conciliação com o sistema económico ainda dominante e não é de contar com os sectores democráticos pró-capitalistas para a adoção de políticas radicais que vão ao encontro das causas profundas da adesão ao apelo da ultradireita.
Lamentavelmente, boa parte da esquerda – considerada em sentido amplo – coloca-se no primeiro grupo. Apesar de tradicionalmente enraizados nas classes trabalhadoras, muitos partidos de esquerda e os seus governos têm sido responsáveis pela aplicação de políticas neoliberais que tantos danos têm causado às classes trabalhadoras, incluindo largos setores das classes médias-baixas. Já o dissemos várias vezes neste livro mas não é demais repeti-lo. Alienaram os seus eleitores tradicionais, desgostaram-nos da política democrática e tornam-nos alvos fáceis da demagogia da ultradireita, das suas propostas reacionárias mas frequentemente disfarçadas com tintas de defesa dos interesses populares.
Como deve a esquerda combater eficazmente a ultradireita? Comecemos por lembrar as palavras bem conhecidas de Max Horkheimer: “quem não quer falar acerca do capitalismo devia calar-se também em relação ao fascismo”. Elas sintetizam tudo o que atrás se disse quanto à ligação genética da ultradireita ao neoliberalismo e à globalização, como resposta irracional e desesperada aos problemas sociais e económicos que o estado atual do capitalismo trouxe a largas camadas de trabalhadores e das classes médias empobrecidas.
Por isto, há uma falácia na defesa frentista da democracia, a da confusão entre causas e consequências. Combate-se a ultradireita como causa de potenciais riscos para a democracia quando, de facto, ela é a consequência da degradação da democracia pela economização tecnoburocrática da política, com o seu expoente no arrasamento das políticas nacionais e da possibilidade de políticas de bem-estar social pelo consenso e instituições europeias.
Mantendo este estado de coisas, afinal a causa do sucesso da ultradireita, é ilusório que as instituições, por si sós, possam combatê-la eficazmente, elas que, afinal, são responsáveis em boa parte por esta situação. É necessário um “élan” popular, um efeito de massas, cuja mobilização é impossível mantendo-se tudo o que está a fazer, pelo contrário, com que largas camadas populares se afastem da democracia amputada, a gosto neoliberal, que o sistema lhes está a oferecer.
A esquerda não se pode limitar a um novo frentismo situado principalmente no terreno da simples democracia liberal, sob pena de acentuar junto de largas camadas populares o seu sentimento de abandono. A verdadeira luta contra a ultradireita e, quem sabe, a sua possível evolução para um fascismo típico, é a luta contra o neoliberalismo e a globalização, na perspetiva condutora da superação do capitalismo.
Costuma dizer-se que Walter Benjamin considerava que “por detrás da ascensão de cada fascismo está uma revolução falhada”. Parafraseando, podemos substituir “revolução falhada” pior “esquerda falhada”. A luta contra a ultradireita já significa um pouco misto e fracassará definitivamente se a esquerda falhar na oferta alternativa de formas de protesto contra a degradação da democracia, contra a falta de democracia real, contra o empobrecimento e a mercantilização do que é humano e se a esquerda não conseguir mobilizar as massas populares para lutas consequentes que vão para lá de movimentações pontuais, desgarradas e geralmente inconsequentes.
Na luta antifascista, embora sem quebrar o esforço unitário, a esquerda tem de ir muito mais além dos democratas liberais que estão presos ao neoliberalismo, mesmo que atenuado como social-liberalismo. A esquerda tem de saber ouvir o povo, que julga que é a ultradireita que o ouve. A única luta verdadeira contra o fascismo é a luta pelo, presente e futuro das classes trabalhadoras e por largas camadas populares de não possidentes. E, no caso da Europa, também o reconhecimento de que tem de terminar o tempo do idealismo utópico de “mais Europa” e passar para um tempo de defesa da soberania popular e da independência nacional.
“Para os movimentos antissistémicos de esquerda na Europa, a lição dos últimos anos é clara. Para que não continuem a ser ultrapassados pelos movimentos da direita, não se podem dar ao luxo de ser menos radicais no ataque ao sistema e devem ser mais coerentes na sua oposição.”