No centenário do nascimento de Natália Correia falou-se muito da sua teorização da açorianidade. Vou comentar isso com uma falha confessada honestamente: nunca li o que ela escreveu sobre isso. No entanto, sei o suficiente, depois de uma longa discussão ao vivo, há muitos anos, em casa de uma amiga comum, e que me impressionou pela superficialidade com que a poetisa (ou poeta, como ela preferia dizer) discorria sobre o tema. Aliás, interessa menos o que ela dizia do que a ideia geral que se faz sobre o tema.
Não compreendi bem com que raizes de autorreflexão ou de sentimento verdadeiramente sentido é que Natália falava de açorianidade, uma micaelense que saiu da ilha ainda na primeira década de vida e com a qual deixou de ter ligação durante toda a vida. Eu desilhei-me com 16 anos, já em idade de alguma formação intelectual e foi em ligação entre as minhas duas localizações de estudante, tempo de aulas e de férias, que me desenvolvi, também com atividade política e cívica nos dois lados.
Esse tipo de identificação, com a terra em que se nasceu e se fez gente, tem duas facetas. Uma é a cultural, de referências históricas, de vivência de problemas particulares. É um regionalismo prático, que os açorianos partilham com todas as outras regiões portuguesas e que os situam, como todas essas, num lugar próprio do todo nacional. De uma nação com séculos de consolidação e para a qual todos contribuíram. Não há dúvidas de que a geografia e a história, compartimentando as comunidades, criaram especificidades mas, ao mesmo tempo, talvez pelo fantasma sempre presente do perigo castelhano/espanhol, unificaram num interesse comum povos regionais muito vincados.
Não se pense que os açorianos viveram longe das peripécias políticas portuguesas. As ilhas (principalmente a Terceira) foram essenciais na época da Índia, quando eram entreposto obrigatório na viagem de regresso, na volta do largo (e de cuja memória ainda é testemunho o grande uso de especiarias na cozinha açoriana). Houve também um tempo em que “Portugal era só os Açores” quando foram o último reduto de resistência ao reinado de Filipe II, o que até envolveu duas batalhas, a da Salga e a da Vila Franca. Claro que esta é uma ideia romântica, porque a questão dinástica não pode ser vista à luz do patriotismo moderno. Depois, foram também os Açores que representaram um novo Portugal, quando acolheram D. Pedro IV e os liberais. Foram também palco, com a Madeira, de uma revolta contra o salazar-fascismo que só teve termo de comparação com a da Marinha Grande, três anos depois.
No entanto, toda esta história, que contribui para o orgulho açoriano, se insere na ideia da portugalidade. Costumo dizer que sou muito português porque sou açoriano e que sou muito açoriano porque sou português.
Claro que o isolamento, o desenvolvimento de uma cultura que, diferenciando-se, também manteve aspetos antigos que se foram perdendo no continente (no falar, na arte popular, no cancioneiro, nos instrumentos, no culto do Espírito Santo e que, até certo ponto, também se mantiveram no Brasil) forjaram um forte sentimento gregário individualizante mas que, na luta pela autonomia e respeito pelos interesses regionais, nunca negou a nacionalidade. O único exemplo em contrário foi o dos independentistas da FLA, no verão quente de 1975, instrumentalizado pela CIA (não estou a fazer teoria da conspiração, podendo comprovar com um caso que se passou comigo).
E não se pode esquecer, como bem sabe qualquer açoriano do meu tempo – a facilidade de transportes mudou tudo – que afinal mais do que açoriano, era-se micaelense ou terceirense ou faialense, até com grande rivalidade, mesmo animosidade, entre as ilhas. E muito por ouvir dizer, por tradição preconceituosa, porque a maioria dos meus patrícios micaelenses, no meu tempo, nunca tinha visitado outra ilha. A mítica América dizia-lhes mais do que qualquer das “ilhas de baixo”. Rio-me quando me dizem que não percebem a “pronúncia açoriana”. Não sei o que é isso. Ouçam um micaelense a falar com um terceirense e logo percebem o que quero dizer. Ser filho de pai micaelense e mãe terceirense, como eu, é um hibridismo muito mais vincado do que ser-se filho de um minhoto e de uma algarvia.
Passo agora para a outra acção possível de açorianidade, a que romanticamente tem a ver com a “impressão na alma” do nascimento e vivência nas ilhas, que moldaria uma maneira de ser, uma identificação entre o homem e a sua terra-mar. Esta noção, que vai buscar muito a Unamuno e à influência que ele teve em Nemésio, é por um lado real e por outro idealista.
Não é impunemente que se vive num pedaço de terra face à imensidade do mar. E num clima que condiciona toda a paleta de cores, a luminosidade, a temperatura e a humidade. Hoje, as neurociências começam a estudar isto, os seus efeitos na psicologia. O horizonte é muito diferente para um açoriano e para um ribatejano e há traços distintivos de um perfil mediano psicológico do açoriano que podemos relacionar com tudo isso. No entanto, com traços também distintos no “modo de ser” (ou de estar) de ilha para ilha.
O erro essencial dos defensores da açorianidade, a meu ver, é identificar esses aspetos marcantes com o caso particular dos açorianos. É certo que há aspetos específicos, como a experiência dos grandes cataclismos vulcânicos pelos antigos povoadores, o que só aconteceu nos Açores), mas essa visão exclusivista até é bastante paroquial, de quem não conhece o mundo.
A minha “açorianidade” esbate-se quando falo com um madeirense, um canarino ou um cabo-verdiano. Temos mais em comum do que se pode julgar. Somos todos macaronésicos e a influência psicológica, transmitida depois culturalmente de geração em geração, tem muito em comum, com esse fator primordial que é tão pouca terra e tanto mar. Tão pouca terra para o sofrimento, a pobreza, a adversidade da natureza; e tanto mar para nele caber o sonho da evasão, a ilusão e uma vida melhor pela emigração, mas também limitada pela ligação à terra, bem funda na alma do ilhéu, numa tensão constante entre o sonho da aventura e o atavismo telúrico. A pretensa açorianidade é só um caso particular de coisa essa sim mais marcante, que é a insularidade.