A universidade portuguesa, Bolonha 1999 e Praga 2001

João Vasconcelos Costa

O mercado único europeu é o mercado das pessoas, dos bens e dos capitais. O mercado único das pessoas é o dos cidadãos, dos viajantes, mas muito principalmente o mercado único dos trabalhadores, incluindo o dos trabalhadores de alta qualificação formados pelas universidades, o que exige um alto grau de convergência e reconhecimento mútuo nas qualificações universitárias, naquilo a que já se chama o “espaço europeu do ensino superior”. Um passo importante no aprofundamento da harmonização e da cooperação académicas europeias foi dado em Bolonha, em 1999, numa reunião dos ministros da educação e representantes das universidades de vinte e nove países europeus, incluindo muitos não pertencentes à União Europeia, com a participação de parceiros sociais representativos do mundo do trabalho e de estudantes. Portugal foi um dos participantes e signatários da declaração resultante dessa reunião. Apesar disto, a declaração de Bolonha, que hoje está a ser discutida por toda a Europa, com enormes repercussões, é praticamente desconhecida no nosso meio académico.

A declaração de Bolonha é da maior importância. Ela exprime a vontade dos governos signatários em edificar o “espaço europeu do ensino superior”, para o que se caminhará no sentido de:

  • adopção de um sistema de graus de fácil leitura e comparação dos diplomas obtidos nos diversos estados, com a generalização do Suplemento de Diploma (um documento descritivo da formação conferida);
  • adopção de um sistema em dois ciclos, em que o primeiro ciclo, de pré-graduação, durando não menos de três anos, conduz a um grau que deve ser relevante para o mercado de trabalho europeu e o segundo ciclo, de pós-graduação, corresponde ao mestrado e ao doutoramento;
  • estabelecimento de um sistema de créditos reconhecidos em toda a Europa, para promoção da mobilidade dos estudantes, e que podem ser reunidos não só na formação inicial mas também na educação ao longo da vida;
  • promoção da mobilidade de estudantes e professores, com manutenção das regalias da origem durante estadias no estrangeiro;
  • cooperação para a garantia da qualidade do ensino superior, com estabelecimento de critérios de qualidade e de métodos de avaliação comparáveis à escala europeia.

Outro aspecto importante da reunião de Bolonha é que ela não se ficou pela declaração. Ficou logo instituído um processo de seguimento, que terá como realização mais importante uma nova reunião decisória de ministros e parceiros universitários, a efectuar em Praga no ano 2001. Ela tem também uma meta definida, a de construir o sistema europeu de ensino superior até 2010.

Esta harmonização de sistemas universitários vai exigir um grande esforço, porque a situação ainda é muito heterogénea. A diversidade dos sistemas de graus é enorme, quase caótica. Até certo ponto, ela é desejável e enriquecedora, mas não deve dificultar a mobilidade de estudantes ou a visão de uma imagem forte e coerente da universidade europeia, um factor da sua competitividade internacional. 

Enquanto que a declaração de Bolonha aponta para um sistema em dois níveis (“two tier”), como o nosso, com pré (“bachelor”, mas no sentido da nossa licenciatura) e pós-graduação (“master” e “doctor”), há países com um sistema em um só nível (“one tier”), com cursos iniciais longos que dão acesso directo ao doutoramento sem um nível intermédio do tipo do nosso mestrado. Também há divergências em relação à duração do primeiro ciclo. Nos países com sistema de dois níveis, há cursos de primeiro ciclo de três anos na Inglaterra, Irlanda e Dinamarca, mas de quatro na França e nos restantes países escandinavos. 

Quanto ao mestrado, também a situação é variável, com mestrados de um ou dois anos na Inglaterra e na Irlanda, um ano na França e na Finlândia e dois anos na Dinamarca e na Suécia. Isto significa que, em regra, o mestrado é obtido cinco anos depois da entrada para a universidade. Esta foi uma ideia consensual em Bolonha, podendo os sistemas variar entre 3+2 e 4+1 (licenciatura+mestrado) e podendo haver mestrados contínuos de cinco anos, como no caso das engenharias, que poderiam não ter a saída a nível da licenciatura. A convergência em torno de um mestrado com duração total de cinco anos, desde a entrada para a universidade, vai provavelmente ditar as reformas dos sistemas educativos na Europa, como eixo definidor dos sistemas, com liberdade de maior variabilidade nos graus abaixo e acima do mestrado. Por exemplo, alguns dos países ainda com sistema de um nível estão a converter os seus cursos em mestrado, criando cursos mais curtos de primeiro ciclo.

Em Portugal, a maioria das licenciaturas tem duração de cinco anos e o mestrado de dois. Na totalidade, ultrapassa-se em dois anos os cinco anos tidos como duração adequada para a duração dos estudos até ao fim do mestrado. Temos de facto um sistema híbrido, com os dois graus de licenciado e mestre como no sistema em dois níveis, mas com a duração longa dos sistemas em um nível. Mesmo com redução para quatro anos da duração das licenciaturas, ainda teria também que se reduzir em um ano o mestrado para se seguir a tendência europeia pós-Bolonha. Trata-se de uma alteração profunda do nosso sistema de graus que, tanto quanto sei, ainda não teve qualquer discussão em Portugal.

Outra ideia principal emergente da reunião de Bolonha é que, sem que isso diminua a importância da convergência para um quadro geral definido por duração, o nível e valor social de cada grau é expresso melhor em créditos (isto é, a medida do conteúdo de cada módulo de ensino) do que em anos, traduzindo os créditos melhor a qualidade e intensidade do ensino do que a simples duração, porque a mesma duração pode corresponder a cursos de qualidade muito díspar. Neste sentido, a reunião de Bolonha deu grande importância à generalização nas universidades europeias da utilização do sistema europeu de transferência de créditos, o ECTS, que já é usado hoje em cerca de 1200 instituições. 

Também neste caso, há grande disparidade em relação à situação portuguesa, porque o sistema ECTS é radicalmente diferente do nosso actual sistema de créditos. O sistema português mede exclusivamente a carga de ensino, calculando os créditos apenas em função do número de horas de aulas. Os créditos ECTS têm uma lógica totalmente diferente. Eles não medem ensino, medem aprendizagem. Os créditos ECTS indicam, em relação a cada módulo de ensino, o volume de trabalho a efectuar pelo estudante para o completar com aproveitamento, incluindo todas as actividades de estudo ou procura e tratamento de informação. São dois sistemas com lógicas distintas e portanto não convertíveis facilmente um no outro por qualquer fórmula, como algumas universidades portuguesas estão a tentar fazer. A adopção dos ECTS em Portugal exigirá um trabalho de raiz. O Conselho de Reitores está alerta para este problema mas ainda não há qualquer trabalho prático de concretização do sistema ECTS em Portugal. Da mesma forma, ao que sei, ainda não se trabalhou no Suplemento de Diploma, um instrumento indispensável para o reconhecimento europeu das qualificações.

Outro aspecto da declaração de Bolonha é o da comparabilidade dos critérios e métodos da avaliação e garantia da qualidade, como forma de facilitar o reconhecimento de diplomas ou de formações temporárias obtidos noutros países, o que implica alguma homogeneidade dos sistemas de avaliação. Pouco antes da reunião de Bolonha, a recomendação do Conselho Europeu de 1998 (98/561/EC) sobre a qualidade do ensino superior pretendeu a introdução, à escala europeia, de métodos de garantia da qualidade e a promoção da cooperação europeia neste domínio, recomendando a todos os estados membros que estabeleçam sistemas de avaliação e de garantia de qualidade baseados em princípios comuns, já postos em prática na maioria dos processos de avaliação. Mas, sendo princípios muito genéricos, não impedem a variabilidade que ainda existe na Europa quanto aos sistemas de avaliação das universidades. 

Os trabalhos pós-Bolonha têm estado principalmente a cargo da rede europeia de garantia de qualidade (ENQA – “European Network for Quality Assurance in Higher Education”), a que Portugal pertence. Este processo de cooperação europeia está atrasado e ainda sem referenciais definidos e até há países que ainda nem sequer têm avaliação do seu ensino superior. Por isto, o domínio da garantia de qualidade e da avaliação é, das matérias de Bolonha, aquele em que, ao contrário do que vimos até agora, menos problemas se colocam a Portugal, que já cumpre, no essencial, as recomendações do Conselho Europeu.

O processo de Bolonha vai certamente dar novos passos na reunião do mesmo tipo, em Praga, no próximo mês. A preparação desta reunião, em muitos países europeus mas não em Portugal, tem originado um largo debate nas universidades, como por exemplo a realização dos “Bologna days” para discussão deste processo. Como passo importante da preparação da reunião de Praga, houve no último fim de semana de Março uma reunião em Salamanca em que estiveram representadas universidades de toda a Europa e cujas conclusões vão inteiramente ao encontro da declaração de Bolonha, revelando o empenhamento das universidades europeias num esforço conjunto para “renovar e rejuvenescer o ensino superior; redefini-lo à escala europeia; promover a empregabilidade e mobilidade dos estudantes e professores; avançar na compatibilidade entre instituições e currículos; assegurar a qualidade; e serem mais competitivas, sem exclusão da cooperação”. 

Entre os documentos disponíveis no “site” da Internet da reunião de Salamanca, e que presumo que possam ser documentos de trabalho para Praga, contam-se numerosos relatórios nacionais de origem governamental em que os países signatários da declaração de Bolonha apresentam os seus planos de reforma e, em muitos casos, mudanças já concretizadas. Portugal não apresentou nenhum relatório. Como podia fazê-lo? O que é que já foi feito, estudado, discutido ou decidido desde Bolonha para cá? Qual será a posição que o Governo vai adoptar em Praga, no próximo mês? Julgo que ninguém sabe ao certo qual é a posição do ministério sobre a declaração de Bolonha, qual é a sua linha de orientação sobre esta matéria. As universidades, que eu saiba, também não têm pressionado o governo ou tomado as suas próprias iniciativas para lançar o debate sobre o processo de Bolonha. Como universitário interessado, e estou certo de que como a imensa maioria dos meus colegas, para já não falar dos estudantes e dos parceiros sociais da universidade, sinto-me à margem de todo um riquíssimo debate sobre a universidade que atravessa a Europa mas que tarda a chegar a Portugal.

Diário de Notícias
9.4.2001