A tristeza de não ter certezas

Em relação às eleições venezuelanas de há dias, tenho tantas certezas quanto Lula, Petro ou López-Obrador (ver abaixo). Mas, vendo a feliz tranquilidade de quem, num campo e noutro, manifesta total certeza, como seria bom eu ter certezas…

Tenho algum ressentimento com quem me permitiu que, em jovem mentalmente suscetível e a merecer proteção da Liga 1984 de Correção Mental, eu tivesse lido Espinosa e Descartes, ficando a conhecer o verdadeiro veneno da serpente do Éden, o livre pensamento, o rigor mental, a dúvida metódica (e os velhos bíblicos a pensarem que a tentação da serpente era o sexo.)… Depois, já foi culpa minha, de jovem cientista, ter estudado a aleatoriedade, os mecanismos probabilísticos, a incerteza, por via da física moderna.

Que bom que é ter certezas! Mesmo em termos de ação, ter sempre um rumo bem traçado na carta, não haver margem para dúvidas, não admitir a ideia parva de que pode haver mais do que um trajeto para se chegar ao mesmo objetivo. Que há uma coisa chamada dialética, que nos ensina que o norte pode ser alcançado rumando primeiro para sul e que 2 mais 2 pode não ser obrigatoriamente 4. Mas tudo isto pode ser custoso, fazer sofrer as meninges, desafiar o conforto.

Que bom que é ter certezas! Quem andar pela net, não terá dúvidas de que o que mais há é certezas. O problema é que muitas vezes são certezas opostas e por isso a rede é um ringue todo sujo de sangue dos contendores em fúria pouco desportiva. E eu, vendo tantas certezas, sinto-me muito mal. Fico com complexo de estupidez ou de ignorância, porque tenho sempre muitas dúvidas. O que me dá depois muito trabalho, de estudo, de análise crítica, de “fact checking”. Porque raio é que não tenho tantas certezas’

Por exemplo, neste momento de atualidade política, eu, que sou admirador do legado de Chávez e do seu bolivarianismo, que protesto contra toda a campanha e ações práticas contra a Venezuela, não posso honestamente dizer que tenho alguma certeza. E, já agora, afirmar a minha simpatia pelo caminho revolucionário encetado por Chávez não significa ter a mesma estima por Maduro. Infelizmente, não é caso único na América Latina que processos progressistas e libertadores degenerem mais ou menos rapidamente. Nicarágua, Equador, Argentina, são casos bem ilustrativos. E nem quero ser mais papista do que o papa, preferindo Maduro ao PCV ou ao movimento sindical, que muitos se têm a queixar de Maduro. As considerações geopolíticas não têm de se sobrepor inteiramente à solidariedade política e ideológica. Neste caso, confio mais no PCV do que em Maduro (e nem sou comunista).

Não estou certo de que Nicolas Maduro tenha vencido limpidamente as eleições, nem, por outro lado, de que a oposição tenha sido indiscutivelmente vítima de fraude eleitoral (oposição, isto é, essencialmente, todo o conjunto social herdeiro dos colonos hispânicos, “terratenientes”, os “libertadores democratas” da elite branca nos levantamentos dos generais sul-americanos)? Aparentemente, quase toda a gente está certa de uma coisa ou outra. É claro que é impossível que todos tenham razão, pelo que isto das certezas…

É certo que, na incerteza, de uma coisa estava eu certo. Ganhasse oficialmente quem ganhasse, ia haver sempre acusações de fraude eleitoral, acusações domésticas reverberadas por todas as caixas de ressonância internacionais. No entanto, é óbvio que isto não é simétrico, por ser muito mais difícil à oposição manipular eleições feitas pela máquina do poder.

Havia todo um coro de concordância em que Edmundo González ganharia as eleições mas, à cautela, foi-se criando uma grande campanha (também internacional) de descrédito de Maduro, até com deturpação de declarações como a que se referia a “banho de sangue”, referindo-se à direita mas virado ao contrário pelos media.

As sondagens eram concordantes, mas também é velho truque empolar as sondagens, criar uma tal expetativa de vitória que, depois, torna mais verosímil proclamar uma fraude. Pelo outro lado, também é suspeito o anúncio de uma “vitória irreversível” quando ainda só estavam apurados 80% dos votos e a diferença entre os dois candidatos era de pouco mais mais de 6%. Ou a matemática é uma treta?

As reações externas também não facilitam – nem se esperava – um juízo que se deseja objetivo. A OEA e a UE foram prontas a subscrever a alegação da líder da oposição de que González tinha ganho com 70% dos votos (como se chegou a este valor, não foi dito). Mas que credibilidade tem uma UE que sempre foi tão hostil ao regime chavista que até reconheceu como legítimo presidente da Venezuela o fantoche Guaidó?

Em Portugal, a estridente Ana Gomes vociferou contra a manobra de Maduro e até o mais circunspecto Daniel Oliveira escreveu, com certeza certa, que “está em causa a vontade de mudança manifestada pelo povo soberano”, vontade essa devida ao descalabro económico causado pelo governo bolivariano. O meu problema é também ler noutros jornais dados económicos a dizerem o oposto; que a inflação tem diminuído, que a Bolsa está muito ativa e eufórica, que nos últimos anos o crescimento foi em média de 4% ao ano, graças ao incremento do comércio externo, principalmente com a China e – oh ironia! – com os EUA,

Se calhar por isso, até os EUA mantêm uma atitude prudente, reclamando apenas a publicitação das atas comprovativas dos resultados em cada lugar de voto. Mais surpreendentemente, a mesma posição foi manifestada por países amigos do regime venezuelano, como o Brasil, a Colômbia e o México, os três com presidentes progressistas e insuspeitos de simpatias para com o “império democrático”.

Em que ficamos? Pela minha parte, como disse, sem certezas e aguardando por mais dados. É a atitude que gostava de ver em toda a gente de esquerda, sem prejuízo do apoio de princípio aos movimentos e regimes progressistas, antineoliberais, anti-imperialistas. Uma atitude de otimismo na ação que não impede o pessimismo na razão, o rigor mental, o espírito crítico, num caminho que se faz caminhando, iluminado por lanternas que apontam em todas as direções, não só para uma via preconcebida.