A armadilha da geopolítica (III)

ou A heterodoxia tem limites

Michael Hudson (MH) é um conhecido economista americano, de esquerda. Além da sua obra académica, escreve regularmente artigos de opinião ou de divulgação no seu sítio pessoal da Internet, bastante visitado. É frequentemente considerado como marxista, embora, para mim, a sua heterodoxia já passe a linha que se pode considerar como aceitável (e até positiva) no questionamento “interno” do marxismo (ver nota final).

Nestes tempos agitados, com destaque para a situação internacional, vou-me habituando sem surpresa a desvarios político-intelectuais que não julgaria, pelo seu primarismo, que pudessem vir de pessoas inteligentes, com mente aberta, crítica e racional. Quando se concentra toda a atenção num único ponto de mira, arrisca-se, como escrevi nos últimos “posts”, a perder o sentido da totalidade, da complexidade, das relações dialéticas. Somado isto à emotividade e ao clubismo fanático, pode-se chegar a extremos que, apesar da habituação que vou tendo, me fazem lembrar um soneto (XXXI) do esquecido  Sá de Miranda: “Pasmado e duvidoso do que vi, / M’espanto às vezes, outras m’avergonho”.

Imagine-se esta triangulação hoje vulgar e tida como lógica: o meu inimigo essencial é o imperialismo americano; quem diz americano, diz Biden, que é falcão, contra Trump que é “pacifista” (!); o inimigo principal de Biden, neste momento, é Putin (fala-se mais de indivíduos do que de países ou sistemas); apoiar Putin é também apoiar os amigos de Putin e os que ele protege, sendo menos importante que eles possam ser ou não companhia pouco recomendável. Apesar de tão esquemático, é este exercício que MH faz num dos últimos textos no seu sítio pessoal.

O título atraíu-me: “The Need for a New Political Vocabulary” (“A Necessidade de um Novo Vocabulário Político”). Desde há muito, é questão sobre a qual tenho pensado muito. Entre muitos outros aspetos da manipulação ideológica, a reforçar a hegemonia da ideologia neoliberal, não é menor a adulteração ou confusão suscitada por termos clássicos que hoje deixaram de ter o significado mítico que tiveram, ou têm mesmo conotação negativa. Esquerda, socialismo, espírito coletivo, cidadania, até, se calhar, democracia, são termos por vezes ambíguos, a necessitar de revisão ou clarificação, a par da reelaboração dos respetivos conceitos.

Afinal, o título de MH referia-se ao que ele parece considerar uma ofensa imerecida, uma qualificação forjada pelo imperialismo ocidental e seus vassalos: chamar neofascistas ou ultradireitistas a Le Pen, Meloni, Salvini, Farage, Abascal e quejandos, que, no desenrolar do texto, ele parece admirar relativamente (também já vi escrito, cá no burgo, elogios a Meloni). Para MH, esses termos ou até o termo mais brando de populistas de direita não se devem aplicar a todo esse campo político europeu (e também de Trump, Bolsonaro ou Milei) que, para ele, se caracteriza por nacionalismo anti-imperialista (?!), por apoio à Rússia e por oposição à Ucrânia e ao apoio militar. Parece irrelevante, por exemplo, a posição em relação a Israel, de que Orbán é um caso patente, simultaneamente de “putinofilia” e de amizade expressa por Netanyahu…

Aqui fica a transcrição de parágrafos bem significativos do texto de MH (original em em inglês, tradução minha). É mesmo caso para “espanto e avergonha”. Mas, provavelmente teremos por cá alguma gente a aplaudir. “Não é só o tempo, as pessoas também andam avariadas, compadre”, como ouvi há dias no Alentejo.

“Esta passividade [em relação aos EUA] está a colocar as suas economias [da Europa]  em pé de guerra, com inflação, dependência comercial dos Estados Unidos e défices europeus resultantes das sanções comerciais e financeiras patrocinadas pelos Estados Unidos contra a Rússia e a China. Este novo status quo desviou o comércio e o investimento europeus da Eurásia para os Estados Unidos”.

Até aqui, muito bem, é a crítica certa ao servilismo europeu, aos dogmas políticos e económicos que dominam a UE, à falta de independência e à irrelevância da Europa na política internacional. Mas, logo depois, vem esta pérola:

“Os eleitores na França, na Alemanha e na Itália estão a afastar-se deste beco sem saída. (…) A AfD, na Alemanha, a Reunião Nacional de Marine le Pen, na França, e os Irmãos de Itália de Georgia Meloni são apresentados como destruindo e quebrando a economia – por serem nacionalistas em vez de se conformarem com a Comissão da NATO/UE e, especificamente, por se oporem à guerra na Ucrânia e ao isolamento europeu da Rússia. É por isso que os eleitores os estão a apoiar. Estamos a assistir a uma rejeição popular do status quo. Os partidos centristas chamam neofascista a toda a oposição nacionalista, tal como em Inglaterra os meios de comunicação social descrevem os Conservadores e os Trabalhistas como centristas e Nigel Farage como um populista de extrema-direita.”

“(…) Aquilo a que se chama “extrema-direita” apoia (pelo menos na retórica da campanha) políticas que costumavam ser chamadas de “esquerda”, opondo-se à guerra e melhorando as condições económicas dos trabalhadores domésticos e dos agricultores – mas não as dos imigrantes.” De facto, só faltava dizer que as posições da ultradireita (desculpe, MH!) Também são de esquerda!

“A antiga divisão entre partidos de direita e de esquerda deixou de fazer sentido. O recente aumento dos partidos descritos como de “extrema-direita” reflecte a oposição popular generalizada ao apoio dos EUA/NATO à Ucrânia contra a Rússia. (…) Será que toda uma geração de europeus vai continuar isolada das economias de crescimento mais rápido do mundo, as da Eurásia? Esta fratura global da ordem mundial unipolar americana está a permitir que os partidos anti-euro se apresentem não como extremistas radicais, mas como procurando restaurar a prosperidade perdida da Europa e a sua auto-suficiência diplomática – de uma forma anti-imigrante de direita, é certo. Essa tornou-se a única alternativa aos partidos pró-EUA, agora que já não existe uma verdadeira esquerda.”

Leram bem? A política da atual ultradireita é a que antes era a da esquerda. As pessoas votam nessa ultradireita (que não deve ser designada assim, coisa que os partidos centristas inventaram…) principalmente porque não querem a separação entre a Europa e a Rússia (ou a Eurásia) e só esse campo político da ultradireita (desculpe-me o termo, MH) é que garante a restauração da prosperidade europeia. Como já não há esquerda, que remédio senão adotarmos a ultradireita…, porque refazer a esquerda – ou coisa equivalente com outro nome – parece não ser alternativa a considerar, assim como parece estar fora dos interesses e ação de alguns dos nossos geopolíticos na linha de MH.

Não é mesmo razão para dizer que “m’espanto às vezes, outras m’avergonho”? E que cada vez mais isto acontecerá se não for inventado um novo “lugar geométrico” de utopia prática, de programa transformador, de movimentação social que preencha o vazio do que nos habituámos a considerar esquerda, hoje fracionada em visões espúrias cada vez mais distantes do pensamento e interesses populares. Ver na ultradireita uma alternativa positiva para alguém de “esquerda” é uma aberração que ilustra bem o desvario a que boa parte desta chegou. O meu livro “utopia Hoje” tem como subtítulo “para a invenção do futuro”. No que diz respeito-a “esquerda” (redefinida), creio que é uma missão essencial e urgente. Que pena, pessoalmente, que me vão faltando para isso as forças físicas, porque, por enquanto, mentalmente ainda me têm aqui para a luta. Continuo o mesmo jovem empenhado dos vinte anos mas agora, felizmente, com bastante mais sabedoria e serenidade.

NOTA FINAL – no início deste texto, falei na frequente ambiguidade da arutodefinição mãe marxista. Como em qualquer teoria, o risco de deturpação só se pode evitar em absoluto pela dogmatizarão absoluta, o que é geralmente a mais eficaz forma de deturpar a teoria. Sou marxista, como adepto dessa teoria da História e dessa orientação filosófica, mas exatamente da mesma forma que sou “crente” da teoria darwiniana da seleção natural ou da teoria da relatividade. Mas estas, como qualquer teoria científica válida, são abertas, sempre confrontadas com os novos conhecimentos, sabendo bem os especialistas como avaliar se um novo dado refuta a teoria ou a modifica na epiderme, sem mudança essencial. É o mesmo que tem de se passar com o marxismo. Por mim — que até discuti no meu livro vários temas de discordância com o marxismo “escolástico” ou de inserção teórica de novos problemas que Marx não podia imaginar (como também Darwin, que nem sabia o que eram genes, mutações ou o “dogma central” da biologia molecular). Os pós-marxismos são muitas vezes (vide Foucault e Laclau, por exemplo) mais do que visões heterodoxas; são traições ao pensamento essencial que conforma a teoria. Mas quem é que hoje quer saber de teoria?… 🙁

E outra nota – em boa justiça, não posso acusar os meus opositores geopolíticos de “traição ao marxismo”, pela simples razão de que não sei se se reivindicam dessa orientação ideológica e filosófica. Mas há um ou outro caso de “para-filiação” partidária que, naturalmente, implicaria o respeito pelo marxismo.