O caso venezuelano, agora em foco, é paradigmático da dificuldade que discuti, da contradição que muitas vezes há entre a perspetiva geopolítica e a perspetiva revolucionária de classe. A geopolítica, no caso, foca-se no governo bolivariano, personificado em Nicolás Maduro. A solidariedade ideológica, internacionalista de classe, que diz muito em particular aos comunistas, está naturalmente mais relacionada com o Partido Comunista da Venezuela e outras forças populares. Mas o que fazer quando há um conflito aberto entre os dois polos?
É para mim indiscutível que o processo semi-revolucionário venezuelano, protagonizado inicialmente por Hugo Chávez é, em princípio, positivo. Que se desenrolou, no tempo de Chávez, com grande respeito pela legalidade, pelos direitos políticos, pela democracia formal. Que, como outros processos semelhantes em outros países latino-americanos, melhorou significativamente a vida de largas camadas da população. Que introduziu novas formas de democracia real, participativa, principalmente entre os mais desfavorecidos, com as comunas rurais. Que retirou do controlo estrangeiro a principal riqueza nacional, o petróleo.
Também é indiscutível que, por tudo isso, desde o início da revolução bolivariana, os EUA, secundados pelos seus aliados, particularmente os europeus, tudo têm feito para sabotar e fazer reverter o processo, recorrendo a todos os meios – sanções, pressões diplomáticas, conspirações, tentativas de golpe, promoção de títeres políticos do maior grau de reacionarismo, como Guaidó e agora Maria Corina Machado, representantes de uma elite social e económica herdeira dos benefícios coloniais e racistas, uma classe que, como em toda a América latina, provavelmente não tem paralelo em conservadorismo reacionário.
Já não se trata para os EUA, como nos tempos da guerra fria, da “ameaça comunista”, cubana ou chilena. Agora, trata-se de cortar pela raiz qualquer veleidade de coisa muito mais recuada, a recusa do neoliberalismo.
Entretanto, desapareceu a figura carismática e genuinamente revolucionária, generosa e abnegada de Chávez, substituído por uma personagem banal, sem essas qualidades, Nicolás Maduro. Não é a primeira vez que, num processo muito personalizado, um sucessor causa dano considerável à obra do fundador. Bem próximo, no tempo e no espaço, houve o caso equatoriano, em que se chegou ao extremo de o sucessor, Lenín Moreno, um traidor, perseguir ferozmente o seu antecessor e mentor, Rafael Correa.
A estratégia política-económica bolivariana tem sido controversa, pela sua base de extrativismo, sem diversificação, sem investimento e, portanto, muito vulnerável a ataques externos. Nos últimos anos, as dificuldades acentuaram-se muito, em termos de inflação, falta de abastecimentos, baixa do poder de compra. As muitas manifestações populares traduzem real descontentamento, embora o governo as atribua só a manobras reacionárias da oposição, sempre orquestradas pela CIA ou outras agências imperialistas. Paralelamente, a criminalidade e a sensação de insegurança, que afetam sempre muito as “classes médias”, proletariados pela crise, o que, conjugado com a insatisfação popular, permite pensar-se que a Venezuela, como outros países latino-americanos, está socialmente hoje dividida ao meio, perigosamente refém de um impasse na relação de forças.
E não é ilegítimo aceitar-se a ideia, mesmo faltando dados objetivos para análise isenta, de que dificilmente Maduro terá o grau de apoio que proclama. Assim, à partida, é difícil descartar logicamente uma ou outra das hipóteses, a vitória ou a derrota eleitoral de Maduro. O que mais ficam são convicções ideológicas, numa lógica absoluta de deus e do diabo.
Lê-se com frequência que a incompetência económica do governo de Maduro está também relacionada com a sua focagem política na preservação do poder. Mais uma vez, num mundo hoje dominado pela pós-verdade propagandística e pela deturpação da informação, é difícil avaliar a justeza das acusações de ditador feitas a Maduro. E há sempre uma grande gradação possível, de autoritário até facínora e, se bem que tudo isso seja inaceitável em termos democráticos, há alguma distância entre um neoliberal autoritário (digamos que à Macron) e um fascista (digamos que à Le Pen).
As dúvidas são tão mais legítimas quanto mais têm em conta que frequentemente as acusações provêm de fontes com alguma credibilidade (ONU, por exemplo) ou do próprio campo progressista e de esquerda. É o caso do Partido Comunista da Venezuela, que, desde o início do processo bolivariano, apoiou Chávez mas que passou a ser cada vez mais crítico de Maduro, apontando-lhe o autoritarismo, a degradação da democracia, os atentados às liberdades políticas e sindicais, a corrupção da elite estatal e partidária, as concessões ao grande capital internacional, a degradação dos salários reais, o controlo dos órgãos de comunicação estatal (a pretexto da desinformação pelos privados) – tudo isto constante de documentos públicos do PCV.
A rotura definitiva consumou-se em 2022, quando Maduro adotou uma política económica de resposta à crise que o PCV considerou como caracteristicamente neoliberal. No ano seguinte, por intermédio do Supremo Tribunal (tido como controlado por Maduro), agudizou-se o conflito, quando a direção legítima do PCV foi demitida, após queixa de “traição aos princípios do partido” interposta por um grupo de autodeclarados membros do partido e substituída por uma comissão ad hoc nomeada pelo tribunal e presidida por um ignoto ex-membro do PCV mas entretanto visto como notoriamente ligado ao partido de Maduro, o PSUV.
O PCV está em posição delicada, nesta crise política pós-eleitoral. Não apoiou a candidatura de Maduro e apelou ao voto em Enrique Márquez, da esquerda independente, com um programa de unidade nacional democrática, com rejeição dos dois polos opostos principais, Maduro e a candidatura revanchista de Edmundo González, apoiado pela ultradireitista Corina Machado e com o respaldo dos EUA e seus aliados.
Depois do anúncio oficial dos resultados favoráveis a Maduro, o PCV declarou que “assim como o Governo de Nicolás Maduro privou o povo venezuelano dos seus direitos sociais e económicos, hoje pretende privá-lo dos seus direitos democráticos” e exigiu “que a CNE publique todos os registos de votação – conforme estabelecido pelo regulamento eleitoral – bem como a máxima transparência no escrutínio dos resultados.”
Apoia também “o grito de respeito pela vontade popular” lançado em diversas manifestações. Esta é uma posição potencialmente perigosa, quando parece difícil destrinçar, nessas manifestações, o que é genuína e legítima revolta popular e o que é, muito provavelmente, manipulação por forças reacionárias e/ou estrangeiras, à Maidan. Em todo o caso, não podemos saber ao certo se são ou não legalmente justificadas – por atos violentos e não por mero direito de manifestação – a repressão violenta de manifestações e a prisão de centenas ou milhares de manifestantes.
Por outro lado, também é quase estar-se no fio da navalha exigir-se o apuramento dos resultados reais, quando a alternativa a Maduro, na prática, é o pró-fascista boneco de Corina Machado.
Com estas dificuldades pela frente, não é só Maduro e o processo bolivariano que justificam a solidariedade que está a ser evocada em muita parte (mas também com reservas e prudência dignas de registo, como de Lula, Petro ou.López Obrador; ou do P. C. Chileno, contra a posição pró-Maduro do presidente Boric).
O campo político de esquerda revolucionária também merece solidariedade, mas a dificuldade está em conciliar uma perspetiva e a noutra, a geopolítica (que até o PCP, neste caso, parece estar a seguir) e a revolucionária de classe. Provavelmente só com um grande grau de estrabismo é que se consegue olhar para ambas, mas é bem sabido que, no estrabismo acentuado, um dos olhos acaba sempre por cegar.