A armadilha da geopolítica (I)

Já aqui chamei a atenção, repetidamente, para uma contradição no pensamento de esquerda que, não sendo nova, assume hoje uma grande importância: as diferenças de perspetivas, até opostas, entre: 1. a análise dialética, com respeito pela totalidade, dando prioridade às estruturas mais fundas do modo social, à dinâmica do processo histórico, à dimensão popular ou, diria Gramsci, olhando articuladamente para a sociedade política e a sociedade civil; e 2. a perspetiva geopolítica, que olha principalmente para a superestrutura de poder, para as sociedades políticas, privilegiando a esfera política como a determinante para o devir histórico.

Parece que hoje, para parte da esquerda, o conflito principal já não é entre o capitalismo e o que virá a seguir, como esperança, projeto e bandeira de luta (para simplificar, chamemos-lhe socialismo). No campeonato mundial da política, com que muita gente vibra da primeira à última jornada, impera o fervor clubista. Tudo é binário, preto ou branco, sem cinzentos. Ocidente e o resto do mundo, força e fraqueza, decadência e mudança. E homens, mais do que estruturas e dinâmicas: Biden, Putin, Xi, Ursula. A vida, a História, é só um pequeno tabuleiro de jogo em que se movem esses peões (e quem os move?). Faz-me lembrar, na minha vocação científica, que ninguém se pode aperceber de fenómenos a uma escala que nos ultrapassa no senso comum: neste momento, como se estão a mover as placas tectónicas (uma alegoria frequente no discurso de um meu bom amigo)? E o que são as placas tectónicas da História?

É claro que um marxista bem estruturado procura atender a ambos os domínios de análise, o estrutural e o geopolítico. A sua relação até é um dos problemas centrais do marxismo e da dialética, a relação entre a estrutura sócio-económica e a superestrutura cultural, ideológica e política. Até me arrisco a pensar, como escrevi no meu livro “Utopia Hoje”, que esta foi sempre a questão mais “fraturante” no campo marxista, afinal a que mais separou a evolução do marxismo oficial soviético, determinista e economicista, e o marxismo desenvolvido por escolas ocidentais, com destaque para o labor teórico de Gramsci, ainda em tempos próximos da Revolução de Outubro.

Estou certo de que o caminho mais proveitoso não faz uma fronteira rígida entre aquelas duas perspetivas de análise. Interliga-os dialeticamente, sem maniqueísmos e esquematismos mentais simplistas. De facto, o maniqueísmo é, a meu ver, o maior risco de pensamento dos geopolíticos. Como extremam o confronto bipolarizado, tudo tende para a simples opção por um deles, com redução ao absurdo de todos os possíveis pontos de discussão. Há um inimigo principal (o que é inteiramente correto) mas, “portanto”, todo o inimigo desse meu inimigo é meu amigo e tenho de lhe desculpar tudo o que de negativo ele possa ter. Tudo o que venha do meu inimigo é, por princípio diabólico e mentiroso e, pelo contrário, nada de inaceitável vem dos meus amigos inimigos do meu inimigo. E acresce a tendência para a personalização, como sempre foi hábito da historiografia tradicional, que não fala de povos, de culturas, de movimentos, registando apenas nomes, Ramsés, Ciro, Alexandre, César, Carlos Magno, Gengis, Napoleão. Todos grandes homens. Não será que, daqui a alguns poucos séculos, Hitler também estará nessa galeria de “cabos de guerra” (ou não, porque a História não fala de perdedores, mas só por isso). Afinal, não se está muito longe da psicologia de uma claque de futebol.

Marx dá-nos um exemplo, nos seus escritos sobre a guerra da Crimeia. Foi um ataque do lado então mais forte do imperialismo e podia ser razoável que Marx visse na Rússia tzarista a vítima da agressão do inimigo principal de então para os revolucionários anticapitalistas, o imperialismo britânico, segundado pelo francês, pelo, otomano e pelo austríaco. Só faltou o prussiano/alemão, na altura ainda em formação. No entanto, mesmo convergindo objetivamente com o inimigo principal, Marx denunciava vigorosamente o império russo, a sua tirania, a sua natureza retrógrada, a opressão do povo ainda mais feroz do que no capitalismo ocidental. 

Quando hoje alguns omitem conscientemente tudo o que de negativo possam ter os inimigos do nosso inimigo principal, quando alguns respondem com uma quase canonização à diabolização feita por esse inimigo em relação a Putin, ou Maduro, ou Daniel Ortega, ou ao regime chinês ou à teocracia iraniana, esses alguns, até se considerando marxistas, não estão a seguir a lição de Marx. Em, alienando a simpatia de muitas pessoas com valores em princípio corretos (na prática muitas vezes valores pervertidos, mas esta é outra discussão), prestam também, objetivamente, um serviço às forças reacionárias, até mesmo à ultradireita.

Esta divagação aparentemente genérica tem a ver com a situação na Venezuela. Mas hoje fico por aqui, esperando ter aberto o apetite para o próximo “post”, então passando ao concreto. Quem é e o que é Nicolás Maduro?