Negação da negação

Na minha vida profissional, ao estudar a biologia molecular dos vírus, procedia como já o velho Descartes recomendava no Discurso do Método: decompor o problema em partes, tão elementares quanto possível, para mais facilmente imaginar hipóteses de explicação de um fenómeno, inventar experiências comprovativas e encontrar causas e mecanismos. Isto vale para as ciências naturais mas não para o pensamento humano, para a História, para as relações sociais. Neste caso, reina a complexidade e o império da totalidade: nada pode ser explicado se não olharmos para o quadro global, com a sua complexidade e sobredeterminação. Este palavrão erudito quer dizer que, ao contrário de “uma causa, um efeito” na natureza, todos os processos sociais são determinados por uma constelação de causas e fatores determinantes, alguns em processo caótico, não determinista, mas em que, ao contrário do mundo físico, todas as causas atuam em conjunto embora cada uma delas, individualmente, pudesse causar o efeito final.

Isto chama-se dialética. É coisa muita antiga, desde os velhos filósofos gregos. Dizia Heráclito que nunca ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio. Nem a pessoa é a mesma, porque as suas circunstâncias estão sempre a mudar e a afetá-la, nem a água do rio permaneceu a mesma do primeiro banho. Claro que isto é uma metáfora, mas expressiva.

Uma das leis da dialética formuladas inicialmente por Hegel é a da negação da negação. Imaginemos que se considera verdadeira uma afirmação A, mas que ela vem a ser refutada por uma posterior afirmação B. Mas, afinal, uma nova afirmação C vem mostrar que B não estava correta. Quer isto dizer que, na negação da negação, tudo volta atrás, que C = A? Não, porque a cada negação nunca se volta ao início, dá-se sempre um passo de diferença. Pensemos numa analogia geométrica. Num espaço bidimensional, seria isso que se passaria, em ciclo a fechar sempre uma circunferência. Parto de 0o, vou para o polo oposto, a 180o e continuo noutro processo de negação, até 360/0o. Mas, afinal, isso seria voltar ao princípio, nunca haveria progresso. Diferente é se pensarmos tridimensionalmente, não numa circunferência mas sim numa hélice. Só aparentemente é que voltei a 0o, porque, na realidade, andei um passo da hélice, para cima e não só à volta da circunferência. Quando me parece que voltei ao início, estou de facto a olhar para esse ponto, mas de cima, de um nível superior.

A que propósito vem, neste livro, esta elucubração filosofante? Da necessidade de desmontar o que há de falso mas também de verdadeiro naquele típico dito de velho resmungão, “no meu tempo é que era bom”. Confesso que é uma das tentações contra que tenho de lutar. E, como já sou velho, é altura de pensar um pouco na minha vida e também na dos jovens que me rodeiam e interrogar-me: era bom o meu tempo?

Na minha ilha de “gente feliz com lágrimas”, ainda nos anos cinquenta andavam os camponeses a trabalhar de pé descalço e boa parte deles não tinha eletricidade, água corrente e casa de banho. Vi operários com trabalho duro a almoçarem um pão barrado com malagueta picante, a puxar as calorias do vinho (e depois o acidente de trabalho). Conheci crianças diminuídas mentalmente pela meningite tuberculosa. Sequelas de poliomielite, por falta da vacina, era o que mais havia. As vendedeiras de lapas sentavam-se na soleira da porta das tabernas e pediam um pouco de pão molhado em vinho para matar a fome da criança de colo. Fazer a escolaridade, então só até à terceira classe, era um sacrifício para as famílias necessitadas do trabalho infantil. Não se podia falar disso, mas sabia-se das mortes de mulheres forçadas ao aborto clandestino. E mesmo em camadas sociais mais favorecidas, muito pouco da vida material ainda pode ser testemunhado hoje. Quem é o jovem que pode imaginar hoje um mundo, como o meu de criança, em que se tinha um par de sapatos por ano, em que um carrinho de lata era um bom presente de Natal, em que nem se sonhava com os mais variados alimentos e produtos que hoje enchem as prateleiras do hipermercado, em que a informação se limitava ao jornal e à rádio (a televisão só lá chegou nos anos 70), em que os ausentes só comunicavam por carta ou, em caso de urgência, por telegrama, em que ter automóvel já exigia um elevado nível de vida? 

No meu tempo é que era bom? Claro que não. No entanto, também nem tudo é bom nos tempos de hoje e, do meu passado, sinto falta – apesar do que acabei de dizer – de coisas boas que é preciso recuperar. Irei falando disso ao longo desta escrita. Julgo que agora percebem o título deste livro e porque me referi à negação da negação. Avançar para o futuro, melhorar as condições de vida, abolir desigualdades, fazer um mundo mais justo e mais solidário, é uma atitude de progresso mas que não deve prescindir de aquisições positivas do passado. O futuro para que avançamos também deve ser um regresso a aspetos da vida que se perderam, embora sem saudosismos, sem mitos retrógrados de paraísos perdidos.

A sociedade tem remetido os avós – afinal a minha geração – ao silêncio e a uma envergonhada irrelevância, até à ideia de serem um peso social, um custo a ser pago pelos mais novos. Mas também é verdade que, em geral, os mais velhos rotulam acriticamente os mais novos como exemplos do que “no meu tempo não era assim”, não representando isto, muitas vezes, mais do que a incapacidade de compreender a mudança e situá-la no devir humano, cultural e social.

A grande sabedoria do mais velho é a de saber adequar ao tempo dos mais novos, e ao seu tempo futuro, os testemunhos de antes, os seus valores, os mitos e ideais do seu tempo, da sua sociedade, da sua cultura. Também, muito importante, sem a arrogância de qualquer superioridade geracional, admitindo abertamente que, por erro ou omissão, deixamos heranças pesadas aos mais novos. Exemplos flagrantes são os danos ambientais, a despreocupação com a sustentabilidade ou os vícios do consumismo.

Só uma herança viva, não saudosista, virada para o futuro é que pode unir as gerações, na linha de tempo que dá sentido às diferenças, mas na continuidade do que de mais essencial têm os homens: o desejo de progresso, de justiça, de bem-estar individual e social. O sentido da vida é um caleidoscópio em que as mesmas peças vão tomando padrões diferentes.

Mudar é querer e é poder. Em linguagem política tradicional, conjugar fatores subjetivos e objetivos. E que mudança? Como dizia Tancredi, o sobrinho do príncipe Salinas em “O Leopardo”, mudar tudo para que tudo fique na mesma? Ou mudar de facto, em verdadeira rotura de sistema? Será isto uma utopia? Se é, é uma utopia prática, uma “fantasia concreta”, como dizia Gramsci.

Idealizar um futuro melhor é uma das mais essenciais características do Homem. Se não puder ser para cada um, o desejo é que seja para os filhos e netos. Está inscrito no nosso DNA. Mas a visão do futuro é alimentada com a memória do passado, de erros a corrigir, de coisas positivas a manter e a recuperar se entretanto perdidas. O presente é apenas uma curta ponte entre o passado e o futurio. Esta relação entre o progresso e o adquirido é a tal negação da negação e é por isto, por esta dialética entre passado e futuro, que intitulei este livro de “Regressar ao Futuro”. O avanço comporta também a recuperação do passado. De certa forma, mas sempre dinamicamente, avançar é também regressar. É ir novamente tomar banho no rio da nossa vida, um banho que já não é o de nós-antes nem no rio que já foi passado e que corre sempre no sentido da foz-futuro.

Se são de pessimismo os tempos em que vivemos, isto não justifica a lamúria derrotista. Ao pessimismo da análise deve-se opor o otimismo da vontade (uma fórmula de Romain Rolland, adotada por Gramsci). Simplesmente, já não são os da minha geração que podem levantar as bandeiras de uma utopia concreta, de uma luta transformadora. Compete-nos acompanhar os jovens, mesmo que só podendo já irmo-nos arrastando na retaguarda, mas com confiança em que eles perfilhem o essencial dos nossos valores de emancipação, liberdade, igualdade, solidariedade. Nossos mas também de todos, porque universais e intemporais. E também alguma coisa da nossa experiência e autocrítica, do positivo e do negativo. É isto o tal regresso ao futuro.