Teses a concluir o “Utopia Hoje”

I

Todos têm o direito de participar por inteiro da herança social da humanidade, do uso e benefícios dos produtos da inteligência coletiva e da mão social, para poder desenvolver o seu potencial pleno. Todos têm o direito de se poder desenvolver inteiramente, por meio da democracia, da participação e do protagonismo no ambiente de trabalho e na sociedade, para o que é condição necessária a saúde e a educação. Todos têm o direito de viver numa sociedade em que os homens e a natureza possam ser mutuamente sustentados e na qual todos possam viver harmoniosamente em comunidades baseadas na cooperação e solidariedade.

II

Estes dois séculos de capitalismo como modo de produção dominante foram acompanhados por um progresso material, científico e tecnológico com uma aceleração sem precedentes na história. Isto não pode fazer esquecer o saldo negativo do capitalismo. Aumentou a riqueza mas extremaram-se as desigualdades. O planeta sofre ameaças consideráveis. A globalização empobreceu parte significativa das camadas sociais dos países centrais e aumentou a exploração na periferia. Um décimo da população mundial vive com subnutrição. O agronegócio monopolista expulsou das suas terras muitos agricultores de sistema familiar. O Estado social de bem-estar degrada-se constantemente e fica sujeito aos interesses exclusivos das grandes empresas que o privatizaram. A vida privada, a cultura e o lazer, a ciência são crescentemente mercantilizados e sujeitos à lógica exclusiva do lucro. Mantém-se em grande parte a violência contra as mulheres, a apropriação do seu trabalho doméstico não pago e a desigualdade no emprego. As minorias étnicas são marginalizadas para guetos, desprotegidas, sem direitos reais. Os campos desertificaram-se e a cultura das comunidades rurais está em perigo. As cidades cresceram desmesuradamente, com gentrificação e expulsão dos seus centros dos habitantes tradicionais, substituídos pelos serviços e pelo turismo. A democracia representativa entrou em crise e a comunicação social transformou-se num gigantesco aparelho de hegemonia e num sistema de propaganda.

III

É correto dizer que o capitalismo é um sistema falido, mas isto não significa que o seu colapso esteja iminente. Neste começo de século, depois de um século XX de apogeu, o capitalismo é historicamente desnecessário e destrutivo, mas estamos a assistir ao que Gramsci designou como interregno: o velho está a morrer [JVC: em morte muito lenta] mas o novo ainda não nasceu. Hoje, mais do que nunca, defrontamo-nos com a escolha inevitável entre “a reconstituição revolucionária da sociedade em geral e a ruína comum das classes em conflito.” (“Manifesto do Partido Comunista”). É em tempos destes, também com muita perplexidade, que se impõe um enorme esforço de unificação de reflexão teórica e de ação prática, numa síntese de filosofia da práxis.

IV

O imperialismo é a outra faceta do capitalismo. À guerra fria sucedeu um sistema internacional unipolar, dominado pelo imperialismo e manteve-se (até com expansão) a NATO, para além do fim do bloco soviético e do Pacto de Varsóvia. A guerra tornou-se perpétua em regiões estratégicas, principalmente petrolíferas e criaram-se focos de tensão perigosos, que, como se viu na Ucrânia, podem ser sentidos como provocação para ações militares sempre condenáveis, sem subterfúgios, à luz dos princípios internacionais. A defesa da paz, a luta por uma nova ordem mundial de segurança (que, no fundo, se liga a uma nova ordem económica), a recusa da lógica de “real politik” das superpotências, a exigência de dissolução da NATO (ou, ao menos, a saída de Portugal) têm de ser elementos essenciais da estratégia e ação da esquerda, neste caso com boas condições de captação da simpatia de boa parte dos setores progressistas da sociedade.

V

Para a nova esquerda, um programa realista, uma estratégia consequente e uma ação política eficaz exigem a compreensão do inimigo, da sua natureza e das suas características essenciais em cada momento. Nesta fase, o capitalismo caracteriza-se essencialmente pela financeirização, pela globalização e, no domínio ideológico, pelo pensamento dominante neoliberal. Acrescentam-se ao capitalismo novas contradições: a parasitação da economia real, pelo capitalismo financeiro, a exploração dos recursos e a mudança de modos de vida tradicionais dos países periféricos, a mercantilização de toda a vida humana. A resposta ao capitalismo neoliberal não se limita ao retorno ao Estado social de bem-estar ou à regulação do mercado. Esta perspetiva fica longe de ir à raiz dos problemas económicos e sociais da atualidade.

VI

A exploração continua a ser essencialmente matéria de relação de classes, mas o capitalismo moderno acrescentou-lhe uma dimensão social mais vasta. A apreciável capacidade de adaptação que o sistema económico dominante tem demonstrado liga-se à tendência para as “sociedades de dois terços”, em que a maioria – já não só a burguesia tradicional – recolhe benefícios consideráveis do sistema à custa do estrato inferior, que lhe é indiferente ou mesmo desprezível. Este estrato inferior não se define apenas pela menor capacidade económica, mas principalmente pela exclusão da mobilidade social e do trânsito de aspirações, nos sentidos da auscultação e da resposta. A exclusão da camada inferior é condição obrigatória para a estabilidade do sistema e é facilitada pela hegemonia ideológica a que a maioria está sujeita. Esta estabilidade é frágil. À medida que esta parte excluída foi crescendo, tornou-se incómoda; significa um custo social incomportável, é uma amputação que diminui a eficácia do corpo social como um todo e trata-se de um campo favorável ao medrar de uma contestação marginal, sem enquadramento, constituindo, pois, um factor de desestabilização institucional. Em crise económica ou alteração brusca do sistema o estrato inferior amplia-se de forma a pôr em perigo os “dois terços”, que se enquistam e mais marginalizam os excluídos, com extremar das tensões sociais. 

VII

Não podemos prever a capacidade de adaptação futura do capitalismo, quando se acumulam hoje fatores de crise que quase configuram um novo “momento Polanyi”. Já não se trata apenas dos fatores classicamente enunciados como causadores das crises económicas, de sobreprodução e, mais recentemente, de especulação financeira. São problemas estruturais com alguma lateralidade mas também com grande transversalidade. Saliento: as alterações climáticas e a agressão à biodiversidade, a globalização, a mudança demográfica, com envelhecimento dos países desenvolvidos e as migrações, e a digitalização e as suas consequências na produção e no trabalho. Contra os efeitos destes problemas surgem protestos sociais e os governos dizem-se preocupados, propondo medidas paliativas, mas esquecendo-se de que os problemas não se resolvem dentro dos problemas, no quadro do capitalismo desenvolvido que está na sua base.

VIII

O capitalismo é predador da natureza, pela sua própria lógica, e os efeitos no clima, na poluição e na perda da biodiversidade atingem hoje proporções alarmantes. A grande aceleração da economia mundial imediatamente após a II Guerra Mundial gerou enormes brechas nos equilíbrios planetários, afetando desde a mudança climática à acidificação dos oceanos, à ameaça real de uma “sexta extinção”, à rotura dos ciclos de azoto e fósforo, à perda de água doce, à poluição dos oceanos e das bacias fluviais, ao desaparecimento de florestas, à poluição generalizada. Esta situação é tão estrutural em relação ao capitalismo que não é necessário adjectivar o socialismo como ecológico ou ecossocialismo. Na situação atual, o socialismo – e a luta da nova esquerda com esse objetivo – ou é ecologista ou não é socialismo.

IX

No plano técnico, a globalização é um avanço, com aspetos positivos e é inevitável na atual fase da vida económica, decorrendo naturalmente da tecnologia, da interconetividade, das comunicações e da mundialização das viagens. Lutar contra a globalização, em si mesma, é uma atitude retrógrada com muito de ludismo. Mas, no plano político e económico-social, há globalização e globalização. A nova esquerda deve lutar por uma outra globalização, liberta dos ditames da financeirização capitalista e do imperialismo; deve lutar contra os efeitos nefastos da atual globalização: a degradação do Estado social de bem-estar, a precarização do trabalho e a desregulação do mercado laboral, a crise dos refugiados e, com o descontentamento de largas camadas de descontentes, a emergência da ultradireita. Os lesados pela globalização não são só os agora mais explorados trabalhadores do terceiro mundo. São também muitos trabalhadores, principalmente operários, dos países ricos. Sujeitos à deslocalização de empresas e à competição de uma reserva quase inesgotável de trabalhadores mal pagos do terceiro mundo, esses trabalhadores do mundo rico sofrem a redução dos seus rendimentos e mesmo o desemprego, que conjuntamente conduzem à depressão de grandes regiões industriais tradicionais. São, nos EUA, a base do trumpismo.

X

Vivemos hoje na quarta revolução industrial, a da indústria 4.0, caracterizada essencialmente pela utilização intensiva de sistemas cibernéticos, pela digitalização em todas as esferas da vida económica e social, pela integração e controlo remoto da produção, pela conetividade, pela inteligência artificial, tudo isto transformando todos os processos produtivos e mesmo a vida em geral. Uma grande mudança tecnológica não pode deixar de se refletir no trabalho, na abundância do emprego e nas suas condições. No entanto, devemos começar por estar atentos à necessidade de não se cair num determinismo tecnológico. O desenvolvimento tecnológico não é um fator isolado e deve ser visto no contexto da alteração global da forma como se organiza e se concretiza o modo de produção capitalista. Afinal, a política tecnológica está estreitamente ligada às escolhas políticas gerais, económicas, laborais e mesmo ambientais.

Não há consenso sobre o impacto global da nova tecnologia no mundo do trabalho. Defende-se, por um lado, a compensação, segundo a qual a extinção de postos de trabalho manual devida à automação é compensada pela criação de emprego qualificado, a par do aumento geral do nível de educação, mormente da educação superior. No outro lado, abundam perspectivas pessimistas em relação à capacidade da economia 4.0 de compensar com novos empregos os que são perdidos pela automação e pela digitalização, principalmente tendo em conta que ainda se fazem sentir os efeitos da última grande crise financeira e que a criação de novos empregos não é sempre adequada, qualitativamente, aos trabalhadores despedidos por razões técnicas. No que não há dúvidas é no que respeita a outra manifestação da digitalização no mundo do trabalho, a uberização: pseudo-empresários mas dependentes das empresas de intermediação digital, de facto trabalhadores explorados, ainda em piores condições do que a maioria dos trabalhadores.

XI 

Fora da ordem, esta tinha de ser a tese XI. Marx escreveu na sua célebre XI tese sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; o importante, porém, é transformá-lo.” No século XX, afadigámo-nos em transformar o mundo. Talvez seja agora tempo de voltar atrás e compreendê-lo melhor. Pura dialética: negação da negação; voltar atrás, mas a novo nível, superior.

XII

A luta dos trabalhadores e o pensamento e ação da esquerda já não se podem limitar ao terreno económico-corporativo, porque a sociedade atual apresenta hoje problemas qualitativos da maior importância e que serão determinantes como portadores de novas contradições no processo histórico. Mesmo nos estratos sociais que hoje beneficiam da riqueza das sociedades industriais desenvolvidas emerge um novo tipo de aspirações que ainda não tiveram reflexo claro no pensamento de esquerda e que não são satisfeitas mesmo nas formas mais avançadas da sociedade de riqueza. O indivíduo na sociedade industrial desenvolvida, resolvidas em grande parte as carências básicas, vai sentindo carências mais qualitativas: maior flexibilidade e variabilidade na vida individual, com maior capacidade de movimentação entre o trabalho, o estudo e o lazer; desejo de efectivo controlo e participação nas tomadas de decisão, desde o campo profissional ao comunitário, ao da política de Estado; maior “sentido da vida”, com reintegração harmónica das suas parcelas atomizadas (o estudo, o trabalho, a família, o lazer, a actividade cívica e política).

No centro desta nova atitude social está a revisão da noção de progresso e de desenvolvimento. A concepção economicista do desenvolvimento, centrada no crescimento económico, na industrialização e na urbanização intensiva, é cada vez mais contestada e objectivamente posta em causa pela limitação dos recursos naturais e pelos danos ao ambiente. O verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento sustentado, integrado nas suas dimensões sócio-económica e cultural, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que aproxima a cidade e o campo, que valoriza os recursos endógenos e as capacidades e espírito comunitários. Esta noção renovada de “desenvolvimento humano” é cada vez mais um polo de convergência de sectores diferenciados de esquerda com pontos de partida diferentes. 

XIII

Na acumulação de fatores de crise, reemerge como ameaça real o monstro da ultradireita, mesmo que com novas características que a distinguem do velho fascismo e que têm de ser compreendidas na sua essência para um combate eficaz. Os perigos para a democracia, para a paz e para os direitos humanos que a ultradireita representa são sentidos por largos setores políticos que, mesmo numa perspetiva liberal conservadora, defendem os valores democráticos essenciais. A nova esquerda deve ser capaz de conduzir a luta contra a ultradireita chamando a si as boas vontades de outros setores políticos e sociais, mas só ela é que pode ir à raiz do problema por o compreender nos seus fundamentos essenciais. 

Tal como no tempo dos fascismos do século XX, a ultradireita tenta ocupar o espaço de revolta desorganizada de largas camadas atingidas pela crise económica, pelo desemprego, pela deslocalização de empresas, pela precariedade, pela competição para o trabalho por parte dos imigrantes explorados pelo patronato e vítimas de “dumping” social, pela insegurança e instabilidade social, pela falta de perspetivas e, agora, pela quase destruição do Estado social de bem-estar. Ao mesmo tempo, este avanço da ultradireita é facilitado pelo abandono dessas camadas sociais pela esquerda: colapso do mundo do socialismo real, traição da social-democracia, e desvio das atenções de boa parte da nova esquerda radical para outro tipo de causas, identitárias ou pós-modernistas.

XIV

A ideologia neoliberal e toda uma série de correntes de pensamento que se apresentam como a alternativa à esquerda convencional, com destaque para o pós-modernismo e o populismo “de esquerda” convergem na negação do papel da luta de classes como motor da História. A nova esquerda só pode combater eficazmente esta visão se atualizar a sua análise da estrutura de classes. Na perspetiva dialética da História, as grandes mudanças, com novos modos de produção, têm como motor a luta de classes e os partidos de classe têm de saber quais são, neste momento, as forças e os interesses da(s) classe(s) que representam, qual o grau do seu papel na determinação do processo histórico e quais as outras classes com que devem convergir para a construção de um bloco histórico, no sentido gramsciano. É certo que a metamorfose atual do capitalismo – financeirização extrema, globalização, efeitos do desenvolvimento tecnológico ·– trouxe consigo alterações consideráveis da estrutura de classes. Para tradução prática posterior, é urgente que sejam devidamente analisadas essas alterações.

XV

As classes fundamentais, isto é, burguesia e rentistas (a que se juntam atualmente os administradores e executivos de topo), proletariado e pequena burguesia continuam a definir-se facilmente pelos dois critérios clássicos, a propriedade ou não dos meios de produção e a apropriação ou não de mais-valia. Entretanto, cresceu imenso o conjunto de setores sociais que não s enquadram nas classes fundamentais e que frequentemente são designados, com maior ou menor indistinção, como classe out classes médias. É redutor considerá-las apenas em termos de escalão de rendimento e é necessário definir critérios que as caracterizem nas suas intersecções com as classes fundamentais: a natureza do trabalho (assalariado ou não, criativo ou de rotina), o grau de ontrolo da aplicação do capital-dinheiro e do capital fixo, o controlo social (não técnico) do trabalho de outros, a participação na reprodução social (garantia da apropriação e do funcionamento do poder político), a convergência de interesses com a burguesia ou com os trabalhadores, a caracterização ideológica, em termos de contribuição significativa para a construção da hegemonia ideológica e cultural da burguesia

Assim, podem-se identificar com significado teórico e prático, classes de intersecção como: 1. pequenos empresários (ou médio-pequenos), de indústria, comércio e serviços, que empregam um pequeno número de trabalhadores assalariados; 2. profissionais independentes (profissionais liberais, técnicos superiores trabalhando por sua conta, artistas e outros criadores, etc.); 3. dirigentes e supervisores (quadros de alto nível, empresariais ou do estado, que asseguram o enquadramento económico-social, político e jurídico do sistema de produção e da sua reprodução, com controlo do trabalho de outros; 4. técnicos e intelectuais assalariados, com grau considerável de autonomia e que podem desempenhar funções de controlo do trabalho em grau variável mas menos preponderantes do que as funções de mera supervisão técnica; 5. técnicos de base (especialistas diretamente participantes na produção ou noutras atividades económicas e sociais, com semiautonomia (dependência funcional mas com capacidade de iniciativa criativa) e sem controlo social do trabalho de outros.

XVI

É preciso rever-se perceção que se tem do que é hoje a classe trabalhadora — o proletariado, para usar a terminologia clássica – e como ele se relaciona com outras classes, em conflitos e em alianças. A classe operária diluiu-se numa grande massa proletarizada, muito diversa mas com forte afinidade no que respeita aos elementos definidores de classe: o seu papel na divisão social do trabalho, a não propriedade dos meios de produção, o seu trabalho assalariado, a sua exploração por apropriação da mais-valia ou de mais-trabalho (não produtivo). Esta atual classe trabalhadora inclui não só os operários da indústria, transportes, construção e conservação/reparação mas também os assalariados do setor primário (agricultura e pescas), os assalariados da administração das indústrias e os assalariados da função pública, do comércio e dos serviços, com trabalho de natureza essencialmente não criativa e de rotina; e os trabalhadores indiferenciados.

XVII

Há um componente ideológico e de consciência de classe que é importante para a própria definição de classes, não obstante esta ter como base essencial o seu lugar e o seu papel no processo produtivo e na atividade social em geral. O processo de classes, como qualquer processo social, não tem existência a não ser como lugar de convergência das influências exercidas por todos os demais processos sociais. Uma classe começa por ser uma “classe em si” pelo mero processo de desenvolvimento do modo de produção. Mas é no conflito, inter-relacionado com a consciência de classe, que ela se transforma em “classe para si”. A classe operária clássica já tinha conquistado este patamar mas, com um “emburguesamento geral” da sociedade e com a sua diluição em massas trabalhadoras com menor consistência ideológica, perdeu em grande parte a sua consciência de classe. Por mais que isto contradiga os nossos desejos, uma nova fase de luta pelo socialismo só será possível quando a nova classe trabalhadora adquirir consciência de classe, passar a ser uma “classe para si”, o que ainda está longe de ser.

XVIII

Vivemos numa fase de avanço e forte hegemonia do capitalismo, acantonando a capacidade de luta das classes trabalhadoras e tornando nublada e longínqua a perspetiva de uma rotura social transformadora; vivemos um refluxo defensivo da luta anticapitalista. A esquerda, em particular na Europa, definha, dilui a sua identidade e não dá resposta à imensidade de novos problemas essenciais que acompanham as profundas mudanças económicas, sociais e tecnológicas a que estamos a assistir. Os partidos de esquerda tendem cada vez mais a concentrar os seus esforços na luta eleitoral e na ação política institucional, no parlamento e nas autarquias, esvaziando o espaço da mobilização popular, dos movimentos de massas e da construção da hegemonia nos variados campos da cultura, da informação e da ideologia. A limitação a uma visão reformista para um prazo de que não se vê o termo, mais, por outro lado, a noção fatalista de que não há alternativa ao sistema, conjugam-se para um resultado geral de alheamento e de abstencionismo na ação política em geral. Propostas que eram tipicamente sociais-democratas no século passado são hoje o que de mais avançado pode conceber a esquerda radical, nas presentes condições muito difíceis, há que reconhecê-lo. Colocar novamente o socialismo na agenda social será uma tarefa longa e difícil, mas imperiosa porque esta sociedade está a caminhar para nova forma de barbárie.

XIX

A postura anticapitalista é o critério essencial da definição de uma esquerda consequente.

XX

Há que dirigir ao povo um discurso simples, “comovente” (no sentido de “fazer mover com”), um discurso profético. Ele combina, na função pedagógica da atividade política, o fornecimento de dados objetivos e de reflexões sustentadas nos factos com uma proposta que resulta dessa análise e que seja entendida como razoável e desejável pelas maiorias. Desperta um povo disperso e atomizado para a organização da sua vontade coletiva. É um discurso que reflete um projeto para jovens e adultos, para urbanos e rurais, para trabalhadores manuais e intelectuais, estudantes e profissionais. Levando mais longe, até se deve pensar em mensagens que vão para além daqueles que se julga ser, logicamente, os mais atraídos, os que mais sofrem e são potencialmente mais sensíveis à mensagem apelativa. Deve-se falar também com os estabelecidos no sistema, os acomodados no egoísmo, as vítimas inconscientes da hegemonia ideológica; que não pensem que estão defendidos neste estado de coisas. Um objetivo central descrito em poucas palavras é uma chave de sucesso do discurso. “Liberdade, igualdade, fraternidade” ou “Paz, terra e pão” são exemplos clássicos de sínteses geniais. É essencial apontar um número restrito de inimigos e de objetivos essenciais quando se pretende construir um discurso mobilizador, um discurso que ele próprio “faça o povo”. Nesta fase atual, decorrendo de tudo o que temos discutido, os alvos certos não se afastam muito da luta contra o neoliberalismo, contra a desigualdade e pela soberania nacional-popular.

XXI

Os marxistas não detêm o exclusivo do projeto emancipador e transformador, da passagem para o socialismo. Muitas outras pessoas e correntes de pensamento partilham esse objetivo. Mas o marxismo ainda é, inegavelmente, a única teoria global de explicação da história, da sociedade capitalista e das vias que se abrem para a sua superação. Este potencial é prejudicado pela versão escolástica dogmática que se desenvolveu no marxismo do mundo do socialismo real e que se tornou, como marxismo-leninismo, a versão oficial do marxismo para os partidos comunistas. A falência do modelo soviético foi tida pela opinião dominante como significando obrigatoriamente a falência do marxismo, afirmação que só se pode dever a desonestidade intelectual ou a ignorância do marxismo genuíno. É preciso “remarxizar o marxismo”, destruir definitivamente a sua deturpação como catecismo ou como verdade definitiva. O marxismo é uma teoria aberta, não porque esteja incompleta ou tenha lacunas – que até tem – mas porque deve ser sempre aperfeiçoada com uma leitura crítica da realidade a cada momento. É preciso superar os vícios mecanicistas que a escola oficial introduziu, clarificar o que no marxismo é ciência e o que é filosofia, muito mais contingente, e, essencialmente, aferir todos os desenvolvimentos atuais e futuros do marxismo pelo que ele tem de mais essencial – o seu método dialético. É preciso reapreciar à luz de hoje e também de uma leitura dialética da obra de Marx, no conjunto e na sua complexidade, alguns aspetos fundamentais da teoria, como, por exemplo, o determinismo, o humanismo (o elogio da vontade, a análise da alienação, a emancipação), as relações entre filosofia e economia, a epistemologia do marxismo e a sua relação com a ciência, o lugar da utopia, a natureza do trabalho na atual revolução tecnológica, etc..

XXII

A democracia, em abstrato, é uma conquista civilizacional da humanidade. Por isto, a democracia não só não é posta em causa pelo socialismo (nomeadamente pela visão marxista do socialismo) como é o socialismo que permitirá aprofundar e depois tornar plena a democracia. Mas democracia, “tout court”, é uma abstração. Na sua forma concreta no mundo de tradição liberal, a democracia representativa, ela vem sofrendo um nítido desgaste. Ela está muito distante de um ideal de democracia real, totalmente inclusiva e abrangendo toda a complexidade inscrita na igualdade e na liberdade. As pessoas sentem-se cada vez mais longe da responsabilidade efetiva pela vida política, vendo que os grandes interesses e as elites influenciam determinantemente as decisões políticas e a legislação; que, paralelamente, o poder executivo é mais distante e incontrolado; e que o poder legislativo, com os representantes eleitos, não é obrigado à prestação de contas. A revolta que cresce contra isto não deve ser contra a democracia em si mas sim contra as promessas democráticas não cumpridas, e a favor de uma forma de democracia efetiva que ultrapasse as limitações crescentes da democracia representativa.

A alternativa é a democracia participativa, que não exclui a representativa, antes a completa e corrige os seus defeitos. Entende-se por democracia participativa o modelo de democracia em que os cidadãos, para além do exercício do voto para eleição dos seus representantes, também participam concretamente na própria ação política, com representação mais direta do que na democracia representativa tradicional e dispondo de poder político nos processos de deliberação e de controlo do exercício do poder. A regeneração da democracia terá de ser a construção de uma democracia real, em que as pessoas sejam cidadãos com efectivo exercício de poder, em condições realísticas mas que não impeçam a afirmação de fatores de participação democrática dos cidadãos, sem a exclusividade da representação do sistema partidário. Uma democracia plena que garanta a separação dos sectores privado e público da vida pessoal. Que promova o diálogo eficaz entre o Estado e a sociedade civil. Que reconcilie as pessoas com a política, contra a corrupção e a promiscuidade política com os negócios. Que promova a libertação da ditadura das verdades feitas.

A construção da democracia participativa faz-se pela articulação de duas vias interrelacionadas e complementares. Por um lado, é necessário intervir a nível do Estado para a consagração legal e suporte prático (financeiro, logístico, técnico) da participação. Por outro lado, a democracia participativa vai-se afirmando e marcando lugar na agenda política geral pela emergência e atividade das organizações da sociedade civil, pela manifestação crescente de uma cultura de cidadania, pela exigência de participação, desde logo a nível local. Esta exigência, novamente articulando as duas vias, passa pela luta conjunta de partidos, a nível do Estado, e da sociedade civil, a nível da ação das massas. Em todo o caso, a democracia participativa aprende-se na prática das organizações da sociedade civil e quem a aprende na vida não pode ficar à espera de uma outorga pelo Estado. A democracia participativa só é sólida, só tem raizes fortes, se conquistada pela base.

XXIII

Os partidos continuam a ser a base da democracia representativa. Por isto, também o descrédito crescente desta forma de democracia se deve em boa parte à perceção pública dos vícios do sistema partidário: défice de cultura democrática, personalização do poder e proeminência do líder, apatia dos militantes, falta de democracia interna, eleitoralismo no pior sentido, carreirismo, clientelismo. O sistema partidário apresenta deficiências notórias como suporte preferencial (na prática, único) do quadro político-institucional tradicional e dificilmente será capaz, por si só, de dar resposta adequada aos novos desafios. Essa resposta exige um esforço de debate e reflexão estratégica e de assimilação de experiências e contributos teóricos muito diversificados, que se choca com características praticamente inamovíveis dos actuais partidos. A prática tem demonstrado que, nestas condições, o seu contributo para a elaboração de novas ideias mobilizadoras é diminuto.

XXIV

Juntamente com as novas condições do mundo do trabalho na economia digital, as constrições do neoliberalismo também afetaram o movimento sindical, que passa por um mau momento. O sindicalismo tem de se adaptar à economia 4.0, ajustando as suas lutas a esta nova realidade incontornável e ganhando forças para uma intervenção ativa na transição digital. Isto exige a consciencialização dos trabalhadores sobre as novas formas e condições de trabalho e propostas eficazes sobre os novos empregos, a formação profissional e as condições de trabalho, no que toca a salários, segurança, atualização profissional e participação dos trabalhadores. A nova economia deixa subrepresentados setores importantes do mundo do trabalho: reformados, jovens à procura do primeiro emprego, falsos trabalhadores independentes, imigrantes. É necessário que os sindicatos, muito orientados para a defesa dos trabalhadores convencionais, se esforcem para defender esses novos grupos.

XXV

Perante o vazio político à esquerda, por parte dos partidos, alguns setores, principalmente influenciados pelo pós-modernismo e pelo populismo, tendem a sobrevalorizar o papel dos movimentos sociais como agentes da transformação, ocupando o lugar tradicional dos partidos. Entre esses movimentos podemos contar os identitários (com base no sexo, na etnia ou na orientação sexual), os movimentos por causas particulares (paz, ambiente, proteção dos animais, etc.) e os movimentos espontâneos de protestos político, como Seattle, as primaveras árabes, o 15 de Maio em Espanha, o “Occupy Wall Street”, os coletes amarelos e o “Nuit Debout” em França e outros, a que, de certa forma, se pode aproximar também o Fórum Social Mundial.

Estes movimentos estão longe de demonstrar na prática a sua capacidade para serem agentes políticos equivalentes ao que foram os partidos de trabalhadores. No caso dos movimentos identitários, que misturam casos de grande dimensão social e lutas antigas – mulheres e minorias étnicas – com grupos minoritários mais recentes, como os de ativismo LGBT+, o risco principal é o da contaminação da sua dimensão histórica social com perspetivas estreitas de identitarismo, com efeitos divisionistas e de isolamento político e social. Enfatizam-se os aspetos culturais e subvalorizado a compreensão das causas económicas e sociais da sujeição, para se inserir o combate na luta global contra o sistema que gera essas causas. Esquece-se que o conflito que lhes diz respeito é parte de um todo social mais complexo e vasto e, no fundo, dependente da resolução do conflito essencial, o de classes. Isto não significa a subestimação dos problemas das minorias e a força do desejo de reconhecimento da identidade, muito pelo contrário, mas sim a necessidade da sua integração na luta social em geral. Há hoje um identitarismo burguês, individualista, que nada tem a ver com a raiz popular do feminismo e do movimento antirracista.

As características menos positivas dos movimentos de protesto político são diferentes. Assentam na sua falta de organização, na ausência de liderança, na debilidade programática, e, novamente, na ausência de uma perspetiva de classe. A sua horizontalidade, sem hierarquias, foi positiva e permitiu grande abertura e dinâmica nos debates e participação nas decisões, mas é necessário algum compromisso com um mínimo de verticalização representativa, para não ficar limitada a eficácia da transmissão da mensagem à comunicação social e, principalmente, o estabelecimento de negociações, seja com o poder seja com eventuais aliados. Os resultados práticos concretos deste tipo de movimentos foram sempre muito reduzidos, por razões particulares, em cada caso, mas também algumas razões gerais: a autolimitação da sua base, com grande peso de estudantes e jovens intelectuais, sem alargamento a outros grupos sociais, nomeadamente de trabalhadores menos qualificados e residentes em bairros operários; e a dissociação do movimento sindical, sem que tivesse havido uma convergência para a ação. Ficou-se também pela reivindicação e pela afirmação do que não se quer, faltando a afirmação do que se quer e, principalmente, o questionamento do quadro sistemático e a proposta de uma alternativa, passando à ofensiva política e ideológica.

Partidos e movimentos, na perspetiva de uma esquerda reinventada, não são antagónicos. Complementam-se, para levar à prática da política a compreensão de um processo vinculado também à luta social e à luta cultural, estabelecendo pontes entre estas lutas e a política. Há que compreender a especificidade de cada luta social em articulação com a totalidade social, numa perspetiva estratégica e no entendimento do que é uma luta obrigatoriamente sistémica que dê resposta aos grandes desafios atuais.

XXVI

Mantendo-se a imprescindibilidade de um partido dos trabalhadores, é necessário guardar os ideais e os grandes objetivos políticos mas mudar radicalmente a conceção de partido, a organização, a estratégia e as táticas, as práticas e a linguagem. É necessário inovar a forma partido e adaptá-la às circunstâncias presentes – e ir sempre renovando essa adaptação, à medida em que se processa a mudança social, agora em aceleração. Os velhos vivem num mundo e o novo vive noutro. O partido alternativo é um partido de novo tipo, não comparável, um “metapartido” que faz a ponte entre a sociedade política e a sociedade civil.

Um novo partido alternativo dos trabalhadores deve caracterizar-se, essencialmente, por: a) a adoção de um projecto global e coerente de transformação social e de rotura com o modelo social e económico dominante, donde uma atitude anticapitalista firme e persistente, com aspiração a uma sociedade sem classes e sem exploração do homem pelo homem, bem como o reconhecimento de um papel motor principal da nova classe trabalhadora na luta emancipatória, b) ênfase na democracia participativa, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; c) a compatibilização das aspirações individuais e do progresso social, a consideração das relações entre riqueza material e qualidade de vida, o conceito de igualdade individual na actual complexidade social, a própria noção de progresso; d) a recusa de uma ideologia oficial, o que não significa que não haja tendência natural para que uma ideologia se torne dominante mas porque, no debate ideológico interno, ela vence intelectualmente e pelo melhor resultado da sua inspiração em relação à elaboração de estratégias e táticas políticas; e) empenhamento nos movimentos sociais; f) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas”, tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-belicista, ou formas populares de lutas feministas; g) a identificação, na fase atual, do neoliberalismo e da globalização como o inimigo principal a combater, quer na atividade institucional, quer na luta popular quer ainda – e com importância decisiva – no combate ideológico; h) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; i) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização; j) a ideia de que um partido reflete no seu funcionamento e no grau de democracia interna o projeto de democracia que pretende para a sociedade.

Diferentemente de um partido burguês ou de um partido-clube de intelectuais, um partido dos trabalhadores não se cria por um ato voluntarioso. Exige um grau elevado de consciência de classe, de espírito de luta e, por outro lado, o sentimento de falta de representação e de necessidade de criação de uma alternativa. Isto não se verifica neste momento em Portugal — e, em geral, na Europa – e esta situação provavelmente não se alterará a curto prazo. Fica outra possibilidade, mas que ainda não se vê no horizonte: a formação de um forte movimento social de base, seja de protesto político, seja de tipo comunitário para a democracia participativa, seja ainda de outro tipo imprevisível, que venha a sentir a necessidade de reforçar a sua ação, com maior consistência política, por meio da criação de um novo partido.

XXVII

O cosmopolitismo – de que é bom exemplo a eurofilia dos sonhadores com o povo europeu único – critica a dimensão nacional e acaba, objetivamente, por aceitar todas as livres circulações desreguladas. O verdadeiro internacionalismo, aquele que sempre esteve ligado à tradição socialista, articula e valoriza a dimensão nacional, potenciando as lutas comuns e sabendo que não se pode chegar ao internacionalismo sem uma base nacional. O patriotismo é um valor cívico fundamental e um esteio da democracia, dando coesão ao povo soberano. Como elemento fundador da comunidade democrática, opõe-se à degenerescência ideológica do nacionalismo supremacista e “patrioteiro”, não patriótico.

O Estado-nação tem mostrado grande resistência e continua a ser o centro da vida política e da construção da identidade. No que se refere à Europa, a experiência tem demonstrado que são as lutas sindicais ou de movimentos populares à escala nacional que mais eficazmente defrontam os governos, que a este nível perdem o escudo do anonimato da política europeia.

XXVIII

A União Europeia e a zona euro não são uma construção institucional neutra, fundada no respeito democrático pelos estados membros e portanto apta a servir qualquer agenda política, em função dos governos, forças sociais ou partidos que integram a União. Pelo contrário, foram desenhadas para defender estritamente os interesses do capital de toda a Europa e dominar o mundo do trabalho. Os constrangimentos postos pela pertença à União Europeia são a maior limitação à soberania nacional e fazem-se sentir tanto a nível institucional e dos tratados como a nível político, pela hegemonia do pensamento único neoliberal na Europa, por aquilo a que se pode chamar “consenso de Bruxelas”. O argumento da partilha e não perda de soberania é falacioso. Partilha pressupõe igualdade, o que obviamente não acontece na União Europeia. Além disto, a transferência de soberania para a União Europeia fez-se de países democráticos para instituições não democráticas.

De todas as perdas de soberania que os países europeus experimentam, a perda da soberania monetária – e, por consequência, da soberania orçamental — é a mais gravosa. Amputado do poder de emitir moeda por intermédio do seu banco central, um Estado vê-se desprovido de meios essenciais para desenvolver as suas políticas básicas, inclusive as de Estado social de bem-estar. Não pode atuar anticiclicamente na crises, não pode financiar-se a não ser por contração de dívida, não pode ganhar competitividade por desvalorização da moeda e fica muito limitado na capacidade redistributiva interna para compensação de assimetrias regionais. Na atual União Europeia não pode haver um verdadeiro estado-estratego.

É difícil reconquistar a soberania em relação ao euro, não só por razões externas, mas também por ser largamente dominante nas pessoas a ideia sempre martelada pelo poder, pela comunicação social e por todos os círculos pensantes de que os países do euro estão definitivamente condenados à moeda única. Em todo o caso, seja ou não difícil, qualquer perspetiva de uma via para o socialismo e, portanto, um partido dos trabalhadores não pode abdicar da exigência de libertação da “ditadura do euro”. É preciso re-estabelecer o vínculo entre soberania e socialismo, sem o qual mesmo as fases de transição para uma economia socializada ficam cortadas.

Uma nova esquerda deve lutar desde já por um novo projeto europeu. Não se trata da tarefa inglória de reformar esta União Europeia, mas sim da reinvenção de raiz de um projeto não federalizante mas sim confederal, no respeito integral pela soberania dos países membros, que tenha como eixos centrais a cooperação económica no sentido da potencialização das livres escolhas de cada povo, a valorização da cultura comum europeia, a solidariedade entre os trabalhadores europeus e a defesa dos seus direitos, um modelo de sociedade inclusiva, igualitária e ecologicamente sustentada. Em suma, um projeto europeu que faça a síntese entre democracia, soberania e socialismo.

XXIX

Uma ideologia, isto é, uma visão global mas não erudita do mundo e da vida ao nível do homem comum, é produto de um grupo cultural mas alastra e pode ser assimilada como integrante da consciência de uma classe social. Mesmo sendo particular, ou por isto mesmo, uma ideologia reflete sempre um posicionamento no complexo das relações sociais. A ideologia pode ter tal força que ultrapassa essa determinação social e entra no domínio do indiscutido, do senso comum, mesmo de pessoas, grupos ou classes cujos interesses são opostos ao que é defendido por essa ideologia. Diz-se então que ela ganhou hegemonia, um conceito devido a Gramsci. É isto que hoje se passa com a ideologia neoliberal. A sua essência já faz parte da ideologia de largas camadas de assalariados, das classes subalternas e em boa parte já foi integrado no senso comum. E enquanto uma classe dominante dispõe de hegemonia ideológica ela não é derrubada, mesmo que se cumpram as condições objetivas, económicas, para uma crise sistémica.

A hegemonia exerce-se na sociedade civil pela influência ideológica de variados instrumentos culturais, com destaque para as igrejas, as universidades, a comunicação social e, hoje, uma nebulosa de agentes de influência, desde as redes sociais e os seus “influenciadores” até aos “think tanks” intelectualmente mais sofisticados. É importante compreender-se a hegemonia como uma categoria dinâmica, sujeita a contradições dialéticas. A hegemonia não se atinge de uma vez e permanece, antes vai sempre resultando da práxis e do desenvolvimento das contradições sociais. A hegemonia não elimina as contradições; dá-lhes é forma em determinadas condições. A noção de hegemonia não apela para a estabilidade de uma certa ordem, antes para a determinação do desenvolvimento das contradições e para o processo de dirigir a sua resolução dialética.

XXX

A comunicação social desempenha um grande papel na hegemonia ideológica. A informação é formatada e padronizada, uniforme e molda o quadro de referência em que se constroem as opiniões particulares e se define o senso comum. Consegue definir a realidade e dar-lhe a sua (sua, dela) objetividade. Organiza o espaço público e a sua ordem do dia, e define os limites da capacidade de compreensão crítica do público. Há muito que se deixou de poder falar do “quarto poder” como poder independente dos demais, do poder político e do poder económico. Pode haver nos donos da comunicação social diferenças correspondentes aos interesses grupais de setores diversos do “estabelecimento” político e económico, mas são frações da mesma elite, que usam os seus meios de comunicação ou as influências que neles têm para dar maior ou menor ênfase a certos temas, mas que, no conjunto, não divergem do pensamento e dos interesses dominantes. No campo político, o posicionamento dos média pode parecer muito diferente, tanto quanto existe variação no quadro partidário, mas isto não afeta a convergência geral em torno do “consenso” político e económico. Na imprensa oligopolizada e nas televisões que estão nas mãos das oligarquias financeiras (e mesmo na televisão pública), o “baixo contínuo” é sempre o mesmo, com as mesmas ideias, os mesmos motivos indiscutíveis, afinal o reflexo da ideologia neoliberal hegemónica, com a “informação” a encaixar-se perfeitamente no senso comum – e assim a reforçá-lo. A filosofia eticamente aberrante da “pós-verdade” é uma cultura política de subvalorização das dicotomias verdadeiro-falso ou honestidade-mentira que encontra meios propícios na nova comunicação tecnológica e nas redes sociais. As “circunstâncias” relativizam a objetividade dos factos e a mensagem informativa é muito condicionada por fatores afetivos, com apelo à emoção, ao fanatismo ideológico e às crenças irracionais. 

Tudo isto é potencializado pelas redes sociais, aliás em interação com a comunicação social convencional. A internet trouxe vantagens enormes e é hoje o principal instrumento cultural de muita gente. Apesar de todos os problemas, as redes sociais também são, certamente na maioria dos casos, ou inócuas e abordando coisas banais ou então, e é o mais importante, configurando a única via para muitas pessoas poderem participar em debates públicos, exprimirem a sua opinião e combaterem a uniformidade informativa da generalidade dos média convencionais. Com todos os seus perigos, a rede é um instrumento vital para o enriquecimento da vida democrática. Mas, como as moedas, a rede tem duas faces.

As redes apagaram os mecanismos tradicionais de moderação e de exercício corretor do pensamento crítico, a cargo das instituições culturais e dos meios intelectuais, que impunham alguma moderação aos excessos possíveis da opinião de quem tinha voz pública. Qualquer um pode ter hoje um público vasto para a sua produção intelectual valiosa, mas também qualquer um pode escrever o que quiser, mentir, caluniar, promover campanhas de intoxicação informativa e ódio, inventar conspirações absurdas, ganhando um público que, sem aquela intermediação, é incapaz de distinguir o trigo do joio. Acresce outro aspeto essencial das redes, o da anulação da privacidade. Os algoritmos nas mãos de grandes monopolistas da internet e a facilidade de colheita e tratamento de “big data” transformam-nos a todos em objetos de um mercado publicitário antes inimaginável e em objetos de toda a possível manipulação, inclusive política. 

É urgente e decisivo o combate ideológico, o esclarecimento, a luta contra a desinformação (que já chega às campanhas eleitorais, com as “fake news”), a manipulação e a alienação. A luta ideológica é central na luta política pela transformação social, que é sempre simultaneamente luta institucional, luta de massas e ação pedagógica junto dessas mesmas massas. No quadro político eleitoral europeu, as classes populares, representadas pela esquerda “real”, podem obter conquistas sociais importantes se conseguirem entendimentos com o centro partidário, nomeadamente a social-democracia, mas a experiência mostra que estas soluções de convergência são limitadas e precárias. O objetivo a colocar-se obrigatoriamente, no plano institucional, deve ser o da conquista eleitoral do poder pela própria esquerda. Isto não está à vista sem a conquista da hegemonia ideológica, muito mais necessária ainda para a preservação desse poder, mais do que a sua conquista.

XXXI

Nenhum sistema político e económico, ou modo de produção, se suicida ou se transforma substancialmente por benevolência própria. A mudança é radical, revolucionária, mas a revolução não significa obrigatoriamente violência. Na situação política e cultural do mundo desenvolvido, a revolução ocorre em democracia e mantém-se respeitando e aprofundando a democracia. É a acumulação de contradições na estrutura objetiva que cria as condições para uma transformação revolucionária em nova qualidade, mas não basta isto, deterministicamente, sem a conjugação dos fatores subjetivos, essencialmente a conquista pelas classes revolucionárias da hegemonia ideológica. Não basta que uma classe seja a principal explorada para que venha a ser a classe revolucionária. O que essa exploração preferencial origina, mas não automaticamente, é um conjunto de características essas sim determinantes para o papel revolucionário: consciência de classe, organização, capacidade de mobilização e de luta para além dos objetivos económicos-corporativos, uma ideologia tendencialmente hegemónica, um projeto de nova sociedade.

Há o erro, que já vem do eurocomunismo e que perdura em neocomunistas atuais, de se reduzir o social ao estritamente político, o de se reduzir a conquista do poder à mera constituição de um governo maioritário de “esquerda” (na prática, obrigatoriamente tendo de envolver a social-democracia), o que pode redundar em oportunismo e em traição à perspetiva de mudança real. A verdadeira convergência tem de ser feita na base e é por esta via, não pelos acordos de topo, que se consegue a maioria eleitoral sólida. Mas, se o sucesso da revolução, no mundo capitalista ocidental, tem de ocorrer em democracia e por vitória eleitoral, dependendo da conquista da hegemonia ideológica e cultural, a classe primariamente revolucionária só o conseguirá se promover alianças e chamar outras classes à luta comum, com objetivos amplos, formando com elas um “bloco histórico”. É um processo político com base social, não apenas institucional.

XXXII

A eficácia da ação política de um partido revolucionário exige a perceção exata de qual a classe hoje potencialmente revolucionária, do quadro de alianças que deve construir e, representando realmente o partido essa classe, saber caracterizá-la hoje para a poder educar, criar-lhe consciência de classe, mobilizá-la e desenvolver lutas que vão para lá dos meros interesses económico-corporativos. Nas primeiras fases do capitalismo, a classe revolucionária era a classe operária. Hoje a classe operária insere-se numa mais vasta classe trabalhadora, que ainda não adquiriu as condições necessárias, de consciência e vontade, para desempenhar esse papel. Se virmos a dinâmica social de hoje, os interesses objetivos de classe, o papel nas relações sociais, a potencialidade de aquisição de consciência de classe, concluímos que, assim como a antiga classe operária se integrou na nova classe trabalhadora, também o seu papel revolucionário se transferiu para essa nova classe, embora isto ainda esteja a um nível de simples potencialidade. É a classe que nada tem a perder e só tem a ganhar com o fim do capitalismo. No entanto, a atual classe trabalhadora, heterogénea, pulverizada, desconcentrada, ainda está numa fase primitiva em termos de consciência de classe. As suas formas organizativas não são convergentes e muitas das suas camadas, em condições de grande vulnerabilidade, são dificilmente mobilizáveis; e outras camadas, mais altas, são muito permeáveis à ideologia dominante e à manipulação.

XXXIII

A sociedade em que vivemos está a avançar para uma crise civilizacional e temos de começar a construir uma nova alternativa politicamente viável. É necessária a conjugação dialética dos grandes fatores que são motores da história – nomeadamente a centralidade da luta avançada pelo socialismo – com um complexo de ações diversificadas, a vários níveis sociais, e com a consciência e mobilização de largas camadas sociais que podem convergir para uma dinâmica essencialmente movida pelo objetivo socialista. Esta é uma estratégia nacional-popular baseada na construção de novos poderes sociais, fortalecendo a unidade na base que promove a força de vontade e a auto-organização social. A esquerda a ser reinventada, juntamente com todas as forças sociais, políticas e culturais que ainda querem enfrentar a barbárie, deve organizar uma “resistência ofensiva” (compreenda-se a aparente contradição) com um componente ético e programático alternativo adequado às novas realidades. Para isto, é indispensável também um debate teórico de fundo para a mudança política, que consiga ir para além da pequena discussão política inquinada pelos interesses partidários e por uma visão imediatista da ação social e política quotidiana. É preciso confrontar opiniões, com rigor e respeito e tentar estabelecer bases comuns para um pensamento social e político crítico, atualizado e capaz de dar suporte a um projeto de mudança. Os intelectuais progressistas têm um papel fundamental nesta tarefa, para o que se lhes exige que se libertem de esquemas mentais rígidos do passado e de interesses imediatistas do presente. Tem de se refrescar constantemente a teoria social e política que é condição para a transformação sócio-cultural, económica e política.

XXXIV

O eixo central da estratégia de uma esquerda reinventada tem de ser o ataque àquilo que são hoje as maiores fragilidades do capitalismo, por exemplo, o agravamento das assimetrias; a exploração da natureza e a agressão ao clima; a globalização e as migrações; o comprometimento da situação económica e social das gerações futuras pelo descontrolo da dívida; a automação, com as suas consequências no desemprego e na volatilidade da segurança laboral; o estatismo autoritário e a ideologia neoliberal, com erosão da democracia e o enfraquecimento das condições políticas (direitos e garantias) que possibilitam a luta dos trabalhadores. Nesta fase, são estes processos aqueles em que o capitalismo vai acumulando mais contradições, cada vez mais ingovernáveis. Por conseguinte, é crucial que uma nova esquerda considere essas brechas na muralha capitalista como os alvos estratégicos principais da sua luta. 

No entanto, se por um lado o sistema abre essas brechas, por outro lado estão grandemente diminuídas as capacidades ofensivas do movimento dos trabalhadores e da esquerda política e social. É necessário conjugar, com sabedoria estratégica e tática, a defesa numa guerra de trincheiras e ações ofensivas de guerrilha. A ofensiva cabe a setores mais determinados e avançados da luta política, focados num projeto transformador eficaz, de objetivo socialista; mas a defesa exige a unidade ou pelo menos a convergência com setores político-sociais mais alargados. Sem esbater objetivos finais diferentes, deve-se ter em conta que, na presente situação, são postas em causa conquistas que qualquer pessoa de bem e moralmente bem formada consideraria já uma aquisição civilizacional. De forma mais flagrante, é necessário um programa e uma plataforma unitária para a reconstrução do Estado social de bem-estar. O projeto de esquerda, com o objetivo do socialismo, deve transcender-se a si próprio, envolvendo-se num projeto mais alargado de promoção da cidadania, de combate pelos interesses gerais da sociedade, em suma, um projeto de luta nacional-popular.

É imperioso ter-se sempre presente que, na defesa, se correm maiores riscos de falta de perspetiva do longo prazo, em suma, de oportunismo. É fase em que é necessário afirmar os grandes objetivos ideológicos e estratégicos, iluminando as necessárias cedências táticas. É um jogo difícil de firmeza e flexibilidade. Por outro lado, repito, a defesa não é incompatível com a articulação com momentos ofensivos. Ela não deve servir de pretexto para se ficar sempre por objetivos recuados. Pode-se e deve-se ir mais além, desde que sem voluntarismo, na luta pelo aprofundamento da democracia, contra as desigualdades e pela redistribuição, pela socialização do poder económico, pelo pleno emprego, pela integração efetiva das minorias excluídas. Para além de uma lista de reivindicações imediatistas, é necessário apresentar um verdadeiro programa alternativo, que identifique os nós de conexão da situação atual e a estratégia própria do adversário, designadamente no que se refere à sua ofensiva neoliberal. 

XXXV

A mensagem de Jesus da Nazaré não tem nada a ver com a Inquisição. O ideal comunista não tem nada a ver com os erros e mesmo crimes das realizações concretas do socialismo, tido como a transição para a efetivação desse ideal. Podemos por isto falar de um altercomunismo, um outro comunismo, mas, afinal, voltando aos clássicos, na sua formulação essencial: “Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.” (Marx, “Crítica do programa de Gotha”),

XXXVI

A filosofia da práxis alia a reflexão e a ação, mas elas têm lógicas diferentes. A reflexão deve ser fria, objetiva, racional, não influenciada por enviesamentos subjetivos. Deve apreciar com cautela a situação real e a relação de forças. Só assim pode contribuir para iluminar a ação. Esta, a ação, é quente, apaixonada, esperançosa, motivada ideologicamente. Ambas, juntas, são utopia prática, fantasia concreta. Como escreveu Gramsci, em 1920, no jornal Ordine Nuovo, repescando uma frase de Romain Rolland, “a concepção socialista do processo revolucionário caracteriza-se por duas notas fundamentais (…) — o ‘Pessimismo da Razão’ e o ‘Otimismo da Vontade’ ”.

XXXVII

A ética e a política não são opostas. Pelo contrário, uma é a “ciência” da moral, que se estende até à política se esta for, como deve ser, a ética do coletivo. Como segundo grande inspirador de tudo o que aqui deixo neste livro, a seguir a Marx, volto a referir Gramsci, que dizia que era preciso lutar pela realização de uma ideia que não se limita a uma construção especulativa, que é, pelo contrário, um “princípio ético-jurídico”, o princípio da sociedade emancipada. Esse projeto é também um projeto de filosofia moral.