O ultraidentitarismo (também chamado wokismo) galopa como cavalo doido montado por cavaleiro sem cabeça, sem fim à vista, cada vez mais para terrenos inimaginados. Parece haver medo de esgotamento de causas, de material para fortalecimento das fraturas que rendem votos e atenções mediáticas.
Ultraidentitarismo não quer dizer negação de um identitarismo legítimo, dos direitos de entidades sociais com identidade própria. Quando é que qualquer coisa legítima passa a merecer prefixo ultra? Quando ultrapassa barreiras de racionalidade, razoabilidade, proporcionalidade. Mas estes termos são muito difíceis de definir com objetividade. O que vale é que o bom senso e o critério da prática ainda vão valendo. Quando, por exemplo, as reivindicações da minoria racial passam do concreto (pobreza, desemprego, violência policial e prisional, exclusão, etc.) para mero simbolismo de representação, de quotas dos oprimidos nas instituições dos opressores (!), parece claro que se ultrapassou a tal barreira. Quando a luta contra a repressão das orientações sexuais tidas como “aberrantes” se estende para áreas mais complexas como a da transexualidade (e nesta mais uma vez dominando apenas o simbólico, de registo civil) ou biologicamente muito complicadas, como a intersexualidade, parece claro que se ultrapassou a tal barreira. Para já não falar das mais dezenas de caracterizações de diferença sexual (que, por enquanto, ainda não incluem a pedofilia ou a necrofilia)…
A última vaga do delírio identitarista acrescenta mais um elemento à lista caracterizadora do opressor típico, afinal aquilo que tão lamentavelmente sou e de que não me consigo libertar, mesmo que me tenha libertado de outros grilhões, mas que agora parecem secundários: o tradicionalismo, o irracionalismo, a religião, o pensamento burguês, a posição de classe. Mas não me liberto da tal outra lista, do que me dizem ser o essencial: homem cis, heterossexual, branco (não interessa se burguês ou proletário).
Hoje acrescenta-se coisa nova a esta definição: validista. Isto é, pessoa física e mentalmente válida ou “normal” (escrevo entre aspas para não me massacrarem), sem qualquer coisa do género a que normalmente chamamos deficiência, sem nada de pejorativo. Não é de todo novidade. Desde já algum tempo que aparece nos meios intelectuais diletantes a discussão sobre a neurodiversidade. Curiosamente, é principalmente uma conversa entre filósofos ou “pensadores sobre tudo”, não de neurobiólogos. Entende-se na neurodiversidade, nesta onda de relativismo em que tudo é normal e só variação estatística, que as perturbações do espetro autista, por exemplo, não são mais do que variações da normalidade, sem significado médico. No limite, não há doenças mentais, apenas variações dentro da normalidade. Vão lá dizer isto a um mutilado de guerra com síndroma dele stress pós-traumático, que ele é mera variante psíquica e de capacidade física, porventura sem necessidade de todo o apoio psiquiátrico que a sociedade deve ser obrigada a dar-lhe. Ou a aceitação da normalidade de tudo não tem o risco do apagamento do direito ao tratamento?
Novamente, neste novo determinante do ultraidentitarismo, da deficiência, o destaque é dado ao simbólico, à representação, embora eu não consiga perceber como é que um oligofrénico pode estar como representante num órgão político ou como um invisual pode ter acesso ao generalato nas forças armadas. Outras questões, de ordem prática, de apoio às condições da melhor vida possível, são coisas que só interessam aos defensores do Estado social de bem-estar., uns velhos caretas que não compreendem como mudaram as prioridades políticas.
Não sou de todo funcionalista. Quero dizer com isto que não aceito a ideia de que os sistemas, os modos de sociedade, têm capacidade para orientarem no seu interesse as dinâmicas históricas a cada momento. Pelo contrário, procuro ver a aleatoriedade que permite a seleção natural dos processos mais vantajosos, numa perspetiva darwiniana adaptada ao mundo social. Mas às vezes confesso que sou tentado por uma quase “evidente” capacidade do capitalismo, nesta fase atual de neocapitalismo, para mexer os cordelinhos, de forma integral e coordenada. Quem é que, vendo o desvario de certa esquerda, não se deixa tentar pela ideia de que, por detrás, há “uma mãozinha de reaça” a fazer coisa elementar, a divisão do inimigo potencialmente poderoso que ameaça o sistema?