Volto ao irracionalismo reinante, desde a contaminação da filosofia progressista, mesmo marxista, pelo pós-modernismo irracionalista nascido na França país de grandes tradições intelectuais, a partir da década de 60 do século passado. Marxismo e irracionalismo? Há quem pretenda a conciliação absurda, como se fosse possível adorar ao mesmo tempo a deus e ao diabo.
É verdade que muitos desses ecléticos se diferenciam, intitulando-se, por exemplo, de pós-marxistas, mas é de desconfiar quando se pretende “atualizar” um pensamento bem consagrado juntando-lhe prefixos, numa manobra que tem muitas vezes por detrás a desonestidade intelectual. Vou dar dois exemplos bem conhecidos, o do pós-marxista Ernesto Laclau (com a sua companheira Chantal Mouffe), ditos pós-marxistas, e Slavoj Žižek, um filósofo na moda e com grande mediatismo.
Deixando Žižek para próxima nota, hoje vou falar de Laclau, que foi o criador da teorização do populismo (dito de esquerda). O seu populismo influenciou muito o Podemos (agora menos, com a saída do seu principal adepto, Errejón) e, mais difusamente, todos os partidos da chamada “nova esquerda”: Bloco de Esquerda, France Insoumise, Syriza, etc.
Podemos considerar como características essenciais do populismo: 1. Tendência para a ligação direta entre um líder carismático e as massas, com subalternização da democracia interna dos partidos e organizações sociais. 2. Divisão não classista das pessoas em dois grupos inorgânicos antagónicos e mal caracterizados, a casta e o povo, os de cima e os de baixo. 3. Recurso frequente à demagogia. 4. Negação da validade da dicotomia esquerda-direita. 5. Privilégio de questões que sensibilizam primária e imediatamente a opinião de grandes grupos de pessoas.
O grupo de“os de cima”, a casta, inclui todo um conjunto heterogéneo de minoritários sociais que parasitam a sociedade e que dominam a vasta maioria das pessoas. São os ricos, os poderosos por qualquer força que possuam, a elite, os bem instalados, os influentes. Para o populismo, não há contradições entre eles, não há diferenças no papel que desempenham no sistema social e económico. São aqueles que o povo odeia, sem que haja preocupação em analisar as causas e circunstâncias específicas desse ódio. É indiferente que sejam capitalistas ou assalariados de alto rendimento.
Debaixo, também outro grupo amorfo, mas este o da grande maioria das pessoas: a “gente comum”. Novamente, não há qualquer caracterização sociológica, muito menos de classe, dessa maioria amorfa. O conflito social é de natureza moral ou emotiva, entre uma casta corrupta e o povo “puro”. Daqui decorre, evidentemente, a tão vulgar tese de que a dicotomia esquerda-direita perdeu sentido, devendo ser substituída por esta de comuns-casta.
O grande equívoco que muito frequentemente se vê associado a Laclau (afinal, o criador do termo), a de que a sua teoria é uma continuação do marxismo, um pós-marxismo, quando, de facto, é total negação do marxismo, não a sua atualização. Teses como a de que o social é constituído discursivamente, a da recusa da ideia de totalidade social e dialética, a da negação da supremacia do conflito de classe sobre as lutas identitárias, de forma alguma se podem considerar como marxistas, com ou sem o disfarce do sufixo pós e da pretensa atualização. Negar e atualizar são coisas bem diferentes.
Em parte, esta confusão é gerada pelos próprios Laclau e Mouffe, quando repetidamente invocam posições de Gramsci, mas fora do contexto e cortando as profundas ligações da obra de Gramsci ao mais genuíno marxismo. A noção de hegemonia, tão elaborada por Gramsci, é já de tal forma aceite pelas mais variadas escolas de esquerda que, só por si, não permite a alguém afirmar-se como gramsciano, esquecendo tudo o mais que constitui, globalmente, o grande contributo de Gramsci para a evolução do marxismo.
O gramsciismo de Laclau é um logro e um abuso de termos. A sua “lógica hegemónica” afasta-se completamente de Gramsci, ao rejeitar qualquer intenção de transformar as estruturas de relações sócio-económicas e, principalmente, ao eludir a questão de a luta contra a hegemonia ser um componente da luta global pela conquista do poder de Estado, num contexto em que dialeticamente interagem os fatores sócio-económicos e os superestruturais – cultura, ideologia. Para Laclau, a luta de classes é somente mais um aspecto entre outros e a luta de contra-hegemonia desvia-se, assim, para os novos movimentos identitários, reunindo lutas raciais, étnicas, de género, de orientação sexual. A contra-hegemonia de Laclau também é antigramsciana por ser essencialmente discursiva, colocando-se sempre o discurso no centro da atividade política, atribuindo-lhe o papel de construtor ou redefinidor da universalidade.
Muito menos se pode considerar como atualização do marxismo – e não, de facto, a sua negação – a posição populista essencial de que não há um projeto inicial da luta global emancipatória, resultando o movimento popular, numa total indeterminação, de caminhos caóticos, de variadas dinâmicas que vão surgindo mais ou menos casuisticamente.
Neste sentido, o populismo nem sequer chega a ser uma verdadeira teoria do projeto transformador, sendo mais uma “lógica política” (expressão de Laclau) de ação, sem uma orientação ideológica elaborada. Nunca se precisam os seus objetivos ou as características essenciais do tipo de sociedade a que se pretende chegar, o seu modelo económico, a configuração do Estado. O que se valoriza é mais o “como ganhar o poder” – “assaltar o céu”, uma expressão já famosa de Pablo Iglesias. Ganhar o poder para quê? No caso do Podemos, hoje no governo, nada se vê para além de propostas classicamente sociais-democratas.