Na segunda metade do século passado, o movimento mundial pela paz (MPP) representou uma grande mobilização em torno de um problema candente, na guerra fria e quando todos vivíamos face ao espetro possível de um cataclismo nuclear. A minha geração viveu, em jovem, momentos angustiantes na incerteza do desfecho da crise dos mísseis de Cuba em 1962 e nunca esquecerei esse dias, que terminaram quando dois políticos responsáveis – o que é hoje difícil de encontrar –, Kennedy e Khrushtchov, conseguiram um entendimento. Depois disso, a dissuasão teve um papel importante numa política internacional de entendimentos diplomáticos que conduziram a avanços significativos para o alívio da tensão e dos riscos. Hoje, a política militar impera sobre a diplomática.
Dir-se-ia que a situação que estamos a viver, com a guerra na Ucrânia, a escalada armamentista e os tambores de guerra a ecoarem para o Pacífico, pareceriam favorecer o despertar do movimento pela paz.
Posso estar enganado, por falta de informação, mas parece-me que o discurso belicista que se instalou por via da maior parte da comunicação social, tem obliterado as atitudes a favor da paz. Isto prolonga-se com a extrema polarização e com o maniqueismo dos bons e maus absolutos, com a absolutização da moral na política (o que não significa que a “real politik” anule as considerações morais e a condenação das agressões, mesmo que se considere o seu enquadramento num processo muito mais complexo). É uma situação que faz lembrar a polarização nacionalista na I Guerra Mundial, tão combatida pelos que viam como as grandes massas populares eram transformadas em carne para canhão, contra os seus interesses de classe e ao serviço dos interesses imperialistas. Então e novamente hoje, os imperialismos. E, novamente, a solidariedade deve ser fundamentalmente para com os povos, a carne para canhão, não para com estados, regimes ou dirigentes políticos.
O movimento pela paz, nestes dias terríveis, está fraco e alvo de desacreditação, com a ideia muito martelada de que está ao serviço de uma das partes, que se insere na propaganda russa. Estão a ser raras e pouco eficazes as mobilizações pela paz. A que se deve esta fraqueza?
Claro que não estou a esquecer, no quadro geral, o esforço de quem ainda se empenha. Por exemplo, entre nós, o Conselho Português para a Paz e a Cooperação (CPPC) tem tido iniciativas firmes, mas julgo que com impacto reduzido, quando comparadas com a pujança desse movimento nos anos 70 a 90, quando ele estava em alta, na época dos grandes protestos contra a “guerra das estrelas” de Reagan ou com a movimentação que conduziu ao processo de Helsínquia, à Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), em 1975. Em Espanha, até foi especificamente a ação pela paz e contra a NATO que esteve na origem da atual Esquerda Unida.
O que se passou depois tem a ver principalmente com o colapso da URSS e a vitória “ocidental”. Um primeiro fator foi de ordem prática. É verdade que muitos comunistas estavam no centro do MPP e contribuíam fortemente para as suas atividades, o que foi prejudicado pelo fim do apoio soviético. Mas é redutor pensar só nesses termos, porque o movimento tinha também grandes personalidades insuspeitas de serviço “campista”. Na sua origem estiveram grandes figuras históricas, como todos os cientistas das conferências Pugwash, movidas pela proclamação de Bertrand Russell e Einstein, movimento que ganhou um prémio Nobel da Paz. Em Portugal, recordemos o papel do insuspeito marechal Costa Gomes.
O principal factor do apagamento do MPP foi geopolítico. Enquanto que em Helsínquia se tinha proposto a dissolução simultânea da NATO e do Pacto de Varsóvia, a consequência do colapso do “socialismo real” foi o fim do Pacto de Varsóvia mas com a manutenção da NATO e até a sua expansão para o centro-leste europeu, reforçando o seu papel de instrumento político-militar da nova ordem unipolar. Desfeito o equilíbrio do terror e dissuasão mútua, o fim da guerra fria não abriu uma nova era de paz. Pelo contrário, toda a história seguinte foi de agressões militares para instauração da nova ordem imperialista.
Acresce outro fator importante, o da falta de informação e de educação para a paz, que anulou o “estados de alerta” (a língua inglesa tem um bom termo, “awareness”, que também se aplica à saúde e a múltiplos aspetos da vida). Ainda hoje me lembro de uma aula “estranha” (nos anos 50!) do meu professor entre os professores, Ilídio Sardoeira, com apresentação de filmes e fotografias sobre o bombardeamento de Hiroshima e as suas consequências. Pergunto-me se hoje as nossas crianças e jovens alguma vez viram documentos desses.
Outro fator é a banalização da guerra. Os nossos pais viviam no temor de receber a notícia da morte dos filhos na guerra colonial, mas hoje a guerra é sempre dos outros e vamo-nos anestesiando, no sofá frente à televisão, com doses homeopáticas de mortos, filhos de outros, quando não de cãezinhos de estimação. Não vemos efeitos em nós próprios, nem mesmo os efeitos económicos bem reais na vida de cada um. A guerra televisiva até quase parece um espetáculo, como se o fogo real fosse fogo de artifício da passagem do ano. Depois da deslocalização das empresas, temos a deslocalização da guerra. Quem pensa nas centenas de milhar de vítimas desta guerra, nas famílias desses soldados e civis, nos milhões de refugiados com a vida desfeita e as suas casas destruídas? O que não tem sido destruido é a indústria de armamento.
Onde estão hoje os militantes de causas, os ativistas como se diz agora, entre os quais os que combatiam pela paz? Deixou de haver uma perspetiva integradora das lutas e quem se desviou para as campanhas climáticas, identitárias ou sobre as migrações isola-as sem enquadramento na luta contra o sistema ou o Estado (e por isso nelas coexistem, “apoliticamente”, tendências ideológicas contraditórias). Nessas lutas, o inimigo é relativamente abstrato e as ações são toleráveis pelo sistema. Quando se trata de guerra, há que chamar os bois pelos nomes e os atuais movimentos de protesto não são capazes disto, mesmo quando animados por setores de esquerda.
Tudo parece jogar contra o MPP, contra o pacifismo, mas, de facto, há que contar com uma enorme mudança na ordem mundial de que talvez ainda não tenhamos visíveis todos os contornos. A aparente pujança do Império é ilusória, apesar da capacidade que parece estar a ter para conter o poder do adversário russo (adversário porquê, quando não diferem substancialmente em sistema económico-social?). Assiste-se a um realinhamento internacional muito rápido, de que é exemplo mais flagrante a entrada da Arábia Saudita nos BRICS, um país até agora tido como um dos maiores esteios dos EUA. A Rússia conseguiu anular os efeitos das sanções graças a uma grande mudança nas relações comerciais do Sul Global. Em África, novos regimes contestam o neocolonialismo. A China vê-se com um corrupio de visitas de políticos de todo o mundo, mesmo europeus. A construção de estradas e portos estrangeiros pelos chineses da nova rota da seda substitui o estabelecimento de bases americanas. Etc., etc..
É certo que a queda do Império, como a do império romano, pode ser levada a cabo por novos bárbaros que destruam o que de positivo tenha a civilização ocidental, como as trevas da era medieval baixa obnubilaram o esplendor greco-romano. Cabe aos ocidentais lúcidos e progressistas lutarem para que o bebé não seja despejado com a água suja do banho, mas isto é coisa para outro artigo.
Os riscos de uma subversão das nossas conquistas civilizacionais só pode ser minimizado se uma nova ordem mundial permitir o respeito pelas conquistas da humanidade, a par da multipolaridade, do fim dos imperialismos, do respeito pelas soberanias e pelo direito internacional, do comércio justo. Isto exige troca, respeito pela diversidade, pelos valores dos outros. Quando digo respeito não quero dizer submissão, apenas considerar que as diferenças são objetivas e não podem ser vencidas pela força, mas sim pelo exemplo e pela pedagogia cultural. Não nos podemos acomodar a que possíveis vencedores nesta guerra contra o Império pratiquem o autoritarismo político, desprezem direitos humanos consagrados, desvalorizem a vida humana, instrumentalizem as mentes, excluam e oprimam as mulheres, matem ou prendam homossexuais. Mas nada disto se consegue por “manu militare” nem assimilando indissociavelmente esses valores ao domínio imperialista e à herança colonialista. Só na paz, na cooperação, na equidade e no respeito mútuo.