(Dedicado ao meu velho amigo José Manuel Correia Pinto e a amigos comuns, que nos leem a ambos)
Como cientista, aprendi a importância do rigor terminológico, a exigência de se evitar ao máximo a polissemia ou a ambiguidade da nomenclatura. Transposto isto para a minha atividade de reflexão e debate político e ideológico/filosófico, cada vez mais sinto a necessidade, como escrevi há dias, de uma revisão profunda do nosso vocabulário político, hoje muito desvirtuado.
A importância prática dos factos, categorias ou conceitos acentua essa necessidade. Por exemplo, no meu livro “Utopia Hoje”, discuto bastante o uso ambíguo, por vezes disparatado, do termo “populismo”. Também, no plano mais teórico, o de “hegemonia”, com que muita “gente ilustre” da novíssima pseudoesquerda parasita e atraiçoa o pensamento de Gramsci (muitos, mas, por exemplo, os “pós-marxistas” de Laclau a Zizek, parte dos pós-modernistas políticos, muitos dos ideólogos latino-americanos e do socialismo do século XXI mais os seus amigos espanhóis como Iñigo Errejón, etc.).
Hoje, vale a pena discutir outro termo, geopolítica (deixando de lado geoestratégia, que é um termo derivado e menos significativo, embora ainda mais equívoco). Geopolítica remete para a relação entre a política e a geografia, tal como proposto pelo inventor do termo, Rudolf Kjellén, e entendida como “o estudo do Estado enquanto organismo geográfico ou enquanto fenómeno no espaço, isto é, o Estado como terra, território, área, ou melhor dito, como país”.
Creio que esta limitação à relação entre o Estado e a geografia não corresponde à ideia subjacente ao atual discurso geopolítico, que envolve também outras articulações entre a teoria do Estado e outros domínios de estudo, como a economia, a sociologia, a antropologia cultural, a história.
O que me parece central é percebermos que há dois níveis de discussão, não incompatíveis. O primeiro é o do discurso teórico marxista, que eu tendo a privilegiar, que está orientado para o processo histórico a médio-longo prazo (mas com as suas implicações na ação imediata), para a dinâmica que move a evolução – a contradição entre as capacidades produtivas e o modo social de produção, conjugada com a luta de classes que está presente em toda a história.
O segundo, agora mais em voga nos tempos que correm, é o discurso geopolítico. Privilegia as relações de força entre os diversos focos de poder – diversidade geográfica mas também cultural e ideológica – analisa preferencialmente os factos numa perspetiva imediatista e cingida ao domínio estritamente político (epidérmico!) e militar, tende a personalizar as questões e a desvalorizar a análise por categorias. As contradições são vistas muito literalmente, como conflitos (ou como “contradições lineares”, ao estilo do maoísmo e do livrinho vermelho), mais oposições binárias simples (“primas” do maniqueismo) do que verdadeiras contradições dialéticas, ou tratadas dialeticamente. É um discurso que, sem prejuízo de eu fazer justiça à sua raiz revolucionária – que por vezes tem – corre o risco de se confundir com a centragem abusiva nos poderes por parte do tão na moda pós-modernismo de Michel Foucault, que se prolonga até a todos os extremismo wokistas de hoje.
Estes dois níveis correspondem também a uma outra dualidade, muito importante, a que Gramsci muito discutiu: a distinção, mas também a forte interligação e interação dialética, entre as duas sociedades, a política e a civil. Não cabe aqui esta discussão, mas deixo o desafio de estudo a quem estiver interessado.
Com tudo isto, ia-me esquecendo de que o motivo deste “post” tinha a ver com nomenclatura. Claro que sei que uma proposta minha, aqui, é mero exercício académico, a ficar esquecido, mas cá vai. Disse que, no meu entender, o que melhor caracteriza a geopolítica de hoje, a que domina as discussões sobre a guerra, o imperialismo, a ordem mundial, é a sua centragem na questão do poder. Assim, proponho que se lhe chame o “estudo do poder”, o que, indo ao grego clássico, aponta para um novo termo: CRATOLOGIA, com as suas derivações cratologista, cratológico, e outras.
NOTA FINAL – a minha dúvida sobre a eficácia desta proposta de terminologia talvez seja exagerada. Estou-me a lembrar de que, quando publiquei o “Utopia Hoje” e falei de ultradireita, justificando o uso deste termo, procurei bem a literatura e não o encontrei. Hoje cada vez mais o leio, em vez de extrema-direita.