Novamente o acordo ortográfico

Não vou repetir o estafado e irritante nariz de cera pessoano, “a minha pátria é a língua portuguesa”. Primeiro, porque não concordo de todo com a frase, redutora da ideia de patriotismo; segundo, porque tudo o que Pessoa escreveu logo a seguir, no mesmo parágrafo de O Livro do Desassossego, é execrável. Vão ler e digam-me. Pessoa-pessoa, Pessoa-pensador, Pessoa-político está a léguas dos génio do Pessoa-poeta.

Mas tudo isto vem a propósito da importância da língua e, dentro dela, da ortografia. Mais concretamente, de um dos numerosos artigos de Nuno Pacheco, no Público, sobre o assunto. A mim, diz-me muito pouco e não me faz compreender o tom apaixonado e fora do rigor lógico de muitas discussões sobre o AO90, com destaque para os de Nuno Pacheco.

Tenho bons amigos linguistas ou que usam a língua como instrumento de trabalho e produção intelectual primordial. Alguns são firmes antagonistas do acordo e, obviamente, respeito a sua opinião. Simplesmente, como sou leigo, olho para a questão com pragmatismo. É um uso codificado oficialmente, milhões de crianças e jovens já escrevem segundo o acordo (admito que com muitos erros, mas isto é outra questão, que não estou certo de se relaçionar com o acordo), é um avanço ergonómico (menos esforço físico, de “teclagem” do computador e todos os outros atuais substitutos do caderno e caneta). 

Até nem me escandalizaria a abolição de todos os sinais diacríticos ou a uniformização da escrita de alguns sons, evitando, por exemplo, a diferença entre “ç” e “s” ou “ss” (paço ou passo), entre “ge” e “je” (gesto e jeito), entre “s” e “z” (coser e cozer). Não me acusem de ser ignorante, desconhecendo aparentemente a razão dessas bizarrias. Sei muito bem como se formaram e o que significam, na evolução da língua. Simplesmente, é preciso escolher entre o critério fonético e o etimológico, sem prejuízo de alguma conjugação inteligente e prática de ambos os critérios. Por exemplo, para manter coerência entre palavras com a mesma raiz, como “egípcio” e “Egito”.

O que me interessa principalmente é o respeito pela sintaxe, a correção e enriquecimento do vocabulário, sem modismos nem neologismos parolos escusados, a beleza da prosódia. A ortografia é para mim menos importante, desde que siga regras estabelecidas. Levando a discussão ao absurdo, até perguntaria: se nos preocupamos tanto com a ortografia, porque não também com a caligrafia, também essencial para nos compreendermos? E até há sistemas educativos que dão muita importância à caligrafia!

Os muitos que já leram textos, como os manuscritos de Eça, com a ortografia com que foram escritos, mesmo nos finais do século XIX, certamente podem imaginar o que devem ter sido as reações à reforma republicana de 1911, muito mais radical, em efeitos práticos, do que a de 1990. O desrespeito pela etimologia foi então notório. E quantos erros de ortografia se devem ter visto nos anos seguintes, mesmo em publicações muito respeitáveis, até à completa assimilação da nova norma?

O que me desagrada mais nesta infindável polémica é a frequente argumentação viciosa. Por exemplo, o artigo que referi anda todo à volta de um telejornal em que o jornalista (ou papagaio?) pronunciou projeto (projecto para os defensores da velha ortografia) como [projêto] em vez de [projéto]. Obviamente, um erro crasso, assim como escrever em Portugal fato em vez de facto (estou farto de o ver). Mas por que raio a culpa é do AO90? Porque a ortografia comanda a leitura, como dizem muitos mas sem prova convincente?

Estupidez e ignorância são sempre a principal causa de violação de leis, disposições, normas, códigos (ai, o da estrada!…), etc.. (Já agora, por exemplo, não dirão muitos que foi erro eu ter escrito dois pontos seguidos a terminar o período anterior?). A culpa é das normas? Não se lembram de um célebre telejornal em que o ufano do apresentador disse que qualquer coisa tinha sido adiada “sine die”, pronunciando [saine daie]? A culpa também foi do acordo?

Ou também erros gramaticais em textos de adversários do acordo, incluindo tendências que receio que andem por aí para ficar. Confundir senão e se não, porque e por que, ter de e ter que, comer preposições (“gosto que” em vez de “gosto de que”), maltratar o conjuntivo ou confundir infinitivo pessoal e impessoal, são casos hoje correntes, para além do inacreditável “escrever-mos”).

E se saíssemos do adro da nossa igreja? Já pensaram no que é a aprendizagem da ortografia por uma criança de língua inglesa? Tanto quanto sei, o nosso ensino da leitura, apesar de alguns métodos globais, ainda se faz como no tempo de João de Deus, silabicamente e com muita correspondência a sons inequívocos, o que obviamente facilita a aprendizagem. Já não falando de alfabetos criados especificamente para se adaptarem a determinada língua, como o cirílico. Tentem fazer o mesmo aos vossos filhos e netos a iniciarem-se no inglês, tentem explicar-lhes as regras “simples” que lhes permitem ler corretamente though, thought, tough, through, Lancastershire, shepherd ou Clapham (com o ph lido como p e não como f). Que read tanto pode ser [ríd], no presente, como [rêd] no passado? 

E o francês também não fica muito atrás, em dificuldade. “Mas as criancinhas, meu Deus, porque lhes dás tanta dor?!” E, a concluir esta conversa de hoje, o que dizem desse “crime” contra a etimologia na mais latina das línguas latinas, o italiano, que ensina as crianças a escrever “uomo” em vez de “huomo”?

Nota final – ter tido um avô professor de latim fez-me aprender com ele latim durante os três anos do segundo ciclo do liceu. Não digo que deva ser regra, mas não me fez mal nenhum. Dizia-me ele que o pensamento só é correto quando expresso em linguagem correta e que essa correção, para nós, não pode ter o latim como desconhecido. Exagero? Certamente, na prática, mas desculpável na teoria.