Fui ontem ver o Dias Perfeitos, o muito aplaudido filme de Wim Wenders, tanto pela crítica portuguesa como estrangeira, salvo raras exceções. Alinho por essas exceções. Começo por coisas consensuais, com que concordo: a interpretação de Kôji Yakusho, como o personagem central Hirayama, é magnífica; a fotografia é marcante, evitando os clichês turísticos do retrato de uma grande Tóquio; a banda sonora idem, com sucessos de música americana dos anos 70.
Dito isto, vamos ao que me desgostou. Em primeiro lugar, ser o filme mais um exemplo de uma nova moda – veja-se também o celebrado Aftersun – de escolher uma única e simples ideia chave e fazer todo um filme com ilustrações dessa ideia, muitas vezes repetitivas ou superficiais, enchendo o filme com apontamentos irrelevantes, ditos de vida comum e que pouco adiantam para um filme que, de facto, não tem verdadeiro argumento. Imaginem um pintor que vai fazer um quadro sobre a pureza, a inocência. O mais fácil é pegar numa grande tela e pintá-la toda de branco. Isto é pintura? Ou um compositor que quer fazer uma peça sobre a tristeza ou a monotonia e escreve uma partitura com um número infindável de notas todas iguais. Isto é música?
Todas as críticas enfatizam o lado humano, comovente. Um filme sobre a felicidade do homem comum, que consegue ter uma vida preenchida de beleza e tranquilidade, num ambiente pobre, sem preocupações materiais ou de sucesso. Isto pode parecer sedutor nestes tempos de confronto com uma sociedade predadora, com uma mentalidade individualista e não solidária, com a hierarquização dos prazeres, tão cara a um epicurista como eu. Mas, afinal, julgo que por detrás disto há um exemplo de elogio da miséria, do conformismo, do desvio para a submissão autoassumida como positiva em relação à resposta de revolta contra a ordem social. Neste sentido, considero o filme como politicamente reacionário. É como se, em relação à pobreza, se preferir a caridade cristã à revolta social.
Em resumo, a mensagem essencial do filme é a de que podemos ser felizes com uma vida muito simples. Presta-se a tudo, desde elaborações filosóficas fundamentais, como a dos epicuristas e estóicos, até a ideologias miserabilistas de resignação, de alienação da luta. Esta ambiguidade é perigosa quando escondida pela qualidade formal e estética de um filme como este.
Wenders tinha sido contratado para fazer uma série de documentários sobre os famosos sanitários públicos de Tóquio. Acabou por transformar isso num filme aparentemente não comercial, mas ninguém sabe ao certo a relação do filme com a Tokyo Toilets. A solução foi simples: transmitir uma ideia central, a de que a felicidade, com um tom muito oriental místico, se pode alcançar pela dedicação a uma tarefa simples de que se tira satisfação (?), com uma vida quase ascética e contemplativa. Nada mais fácil, para esse fim prático, do que escolher como a tal tarefa simples a profissão de limpador dos tais sanitários de Tóquio.
Acompanhamos no filme a rotina diária de Hirayama. Depois de muitas repetições, ficamos a saber bem como acorda todos os dias com o barulho do varredor da rua, como lava os dentes, como toma todos os dias da mesma forma o seu café matinal, como arruma na carrinha o material de limpeza, como depois do trabalho vai tomar banho ao balneário público, como vai tomar uma bebida a um bar de passagem de metro. Não bastava uma vez, temos de ver isto meia dúzia de vezes ou mais.
A vida de Hirayama é a de um homem feliz ou é a de um resignado por escolha própria? Pode-se apresentar como padrão de felicidade um homem meramente contemplativo, refugiado numa rotina pobre, sem partilhas, sem comunicação com outros, sem afetos a não ser alguns episódios pontuais, como o simples cumprimento à vizinha do parque, a relação com a sobrinha ou a ajuda ao companheiro de trabalho? Vemos que Hirayama provem de uma família rica mas nada nos é dito sobre o que o levou até à escolha dessa vida de tão baixo nível social e profissional. O que é que ele teve de sofrer antes para que essa nova vida se tenha tornado a sua “felicidade”? Isto sim, daria um filme.
Esqueçamos a atração pelo exotismo da localização japonesa do filme. Imaginemos um filme passado na Europa que começa pelo despojamento de um homem rico e a sua entrada num convento beneditino e que gasta duas horas a mostrar-nos cenas um pouco desconexas, apresar da repetição, da sua vida de monge contemplativo? Mostraria, repetidamente, a cada dia, o seu acordar, a sua oração matinal, a ida à missa e, aproveitando essas cenas, uma boa banda sonora de canto gregoriano, depois o almoço frugal, à noite uma leitura. Pelo meio, algumas coisas avulsas: trabalho de jardinagem, muitas vistas da arquitetura gótica do convento, um frade picaresco, uns apontamentos sobre a confecção das refeições conventuais, muitas outras buchas que não é difícil de imaginar para fazer tempo de projeção. Daria um grande filme?