As duas semanas que acabei de passar na Dinamarca foram uma experiência muito instrutiva em relação à prevenção e combate à COVID-19, lá e cá. A Dinamarca, ao longo do ano passado, foi muitas vezes referida como exemplo, principalmente para efeitos de comparação com a experiência desafiante da Suécia. Nós, tanto fomos igualmente caso milagre como estivemos nos antípodas. Quando cheguei à Dinamarca, a 5 de junho, a situação epidemiológica não era radicalmente diferente, até pior do que a nossa. Portugal tinha uma incidência (novos casos em 14 dias por 100000 habitantes) de 79 e a Dinamarca de 239, quase o dobro da linha vermelha portuguesa dos 120. Os dois países estavam iguais em mortalidade, 2 mortes quinzenais por milhão de habitantes. Os internamentos eram pouco importantes. Na vacinação, a Dinamarca estava mais adiantada, mas não significativamente.
Estive em Aarhus, uma cidade universitária com uma população muito jovem a encher as ruas do centro, a aproveitar os escassos dias de sol em tudo o que era bancos de rua e esplanadas (com as mesas sem distância de segurança), a formar grupos de quase uma dezena de jovens com cerveja na rua em boas doses, em conversas de voz bem alta. O mais estranho de tudo isto é que ninguém usava máscara. É uma decisão oficial certamente com critério, não qualquer negacionismo do valor da máscara, dado que ela estava a ser obrigatória nos transportes e em recintos fechados. Para minha grande surpresa, uma semana depois, ainda aliviaram mais. As máscaras deixaram de ser usadas no interior do comércio, nomeadamente nos supermercados e centros comerciais! Nos transportes, foram dispensadas para quem ocupava lugares sentados, sendo usadas só pelos viajantes em pé.
A Dinamarca tinha tido uma vaga epidémica no inverno de 2020, como toda a Europa e desconfinou progressivamente a partir de março. As medidas que estavam em vigor quando chegámos datavam de meados de março. Quanto às máscaras, o que já disse. Também não eram usadas nas aulas, em nenhum grau de ensino. O comércio funcionava normalmente, havendo apenas algumas lojas de rua mais pequenas que, por sua iniciativa, limitavam o acesso. Nas filas respeitava-se a distância (um metro) mas nas ruas muito movimentadas e estreitas do centro toda a gente se cruzava cotovelo com cotovelo.
A grande, enorme diferença para Portugal respeita à testagem. Ninguém pode fazer vida normal sem o seu passe covid, que atesta que se tem a vacinação completa há pelo menos duas semanas, ou que se teve COVID-19 e se recuperou, ou que se fez um teste de anticorpos há menos de 72 horas com resultado negativo. O passe é obrigatório para se ir ao trabalho presencial, às aulas, aos restaurantes e cafés, aos museus, aos cinemas e teatros. Na prática, toda a população é assim testada duas vezes por semana, gratuitamente, em muitos postos de testagem oficiais espalhados pela cidade. Isto significa um esforço de testagem, por habitante, cinco a dez vezes superior ao português, conforme as datas.
Da mesma forma, o controlo no aeroporto é mais rigoroso. À chegada, para além de os serviços de controlo covid verificarem o resultado do teste que levávamos, todos os passageiros não vacinados tiveram de repetir o teste de antigénio. No regresso a Portugal, o único controlo de certificado de testagem negativa foi feito pelo funcionário do aeroporto de partida, sem qualquer controlo oficial à chegada.
Desde o início da pandemia que tenho escrito repetidamente que o confinamento não pode ser uma estratégia em si mesma e continuada. Ele é a intervenção transitória necessária para se montar o dispositivo essencial de vigilância epidemiológica com base na testagem, quer a testagem de massa quer a testagem dirigida ao controlo das cadeias de transmissão (“track and trace”: isolamento, inquérito epidemiológico imediato, identificação e testagem dos contactos), como sempre se fez, sem os meios atuais, na epidemiologia clássica.
A grande responsabilidade do nosso sistema de controlo da pandemia foi a incapacidade de montar eficazmente esse sistema de vigilância, confiando quase exclusivamente nas medidas de tipo confinamento ou de redução de contactos. Um exemplo incompreensível dessa atitude oficial é o facto de a testagem ter diminuído depois do desconfinamento quando, pelo contrário, o controlo do desconfinamento exigiria o reforço da testagem. Por isto, cada desconfinamento, em Portugal, é sempre seguido de um aumento de incidência, até ao confinamento seguinte, enquanto que, na Dinamarca, apesar do alívio progressivo das medidas, a incidência e a taxa de positividade decrescem constantemente em paralelo com o alívio de restrições.
Finalmente, algumas notas mais para além das medidas e da testagem. A COVID-19 está ausente das primeiras páginas dos jornais e dos noticiários e dá a impressão de que o país é muito pobre em especialistas, resultado provável do seu fraco nível científico e cultural. Só há um ou dois cientistas de alta posição universitária que são ouvidos quando há uma notícia importante de natureza científica que tem de ser “traduzida” para o público. Estão a precisar que lhes mandemos alguns dos nossos especialistas, uns matemáticos que sabem de vacinas ou uns sociólogos que sabem de virologia. Pelo contrário, a informação epidemiológica na Dinamarca é exaustiva, online, e as pessoas tem grande confiança nas autoridades de saúde.
Pelas mesmas razões, por falta de especialistas, nunca conseguiram fazer reuniões de Infarmed. O governo só dispõe da opinião do Instituto Serológico do Estado, que, em relação à epidemiologia, combina e centraliza as funções de recolha de dados, vigilância e investigação que, cá, se dividem entre a DGS e o INSA Ricardo Jorge. Quanto à qualidade do Instituto Serológico, basta, mesmo para um leigo, visitar o seu sítio e verificar a extensão e impacto das suas atividades técnicas e de investigação, nos mais diversos domínios da saúde pública, com destaque para as doenças infeciosas.
Com o dobro da população e pior nível sanitário, Portugal desbaratou o que tinha de experiência epidemiológica, inclusive tropical (importante numa era atual de globalização das doenças). Desde há algumas décadas que tem crescido a moda de transformação da Saúde Pública numa área com pendor acentuado de ciências sociais – política, economia, sociologia, pedagogia, tudo da saúde, é certo – com crescente atrofia da epidemiologia, reduzida a uma ou duas equipas universitárias, a um pequeno departamento do INSA e algumas experiências marginais. Como exemplo extremo, dois ciclos de estudos universitários de pós-graduação em Saúde Pública em Portugal não têm no corpo docente um único doutorado em epidemiologia. A própria formação dos médicos especialistas de saúde pública, que depois estão no terreno a combater a COVID-19, não pode deixar de se ressentir disto. Não haverá no PRR uma fatiazinha de dinheiro para a formação de uma massa crítica de epidemiologia em Portugal?