Uma comemoração solene na Assembleia da República, presidida pelo PR, exige o cumprimento cumulativo de vários requisitos em relação ao facto ou data a celebrar: significado histórico relevante, grau significativo de consenso, superpartidarismo, sentir popular generalizado sobre o facto ou data, conhecimento histórico consolidado sobre os acontecimentos e o seu contexto. O facto a comemorar deve ter tido efeitos aditivos ou multiplicativos, não divisivos.
A meu ver, nada disto se verifica em relação ao 25 de Novembro de 1975, pelo que nem preciso de invocar razões pessoais, políticas ou ideológicas para rejeitar a proposta da direita parlamentar de instituir, anualmente, comemorações oficiais (dia feriado e sessão solene na AR) daquele episódio muito controverso do processo pós-25 de Abril. Isto não quer dizer, obviamente, que eu não tenha uma opinião sobre o significado desse acontecimento, que, para mim e muita gente, interrompeu um processo histórico e de progresso irredutível. Simplesmente, nem preciso, neste caso, de usar argumentos com carga ideológica.
O 25 de Novembro não foi momento histórico de primeiro plano, algo que ficará na História como já ficou o 25 de Abril. Não se mudou nenhum sistema nem regime, não se derrubou uma ditadura. No essencial, o que houve foi uma considerável mudança do rumo político (o que, para mal ou para bem, é relativamente vulgar) com substituição dos seus agentes.
Dizer-se que o 25 de Novembro marcou a vitória da democracia e o regresso do 25 de Abril ao seu programa (ou até, como se diz, à sua “pureza”) é abusivo. O programa já continha espaço para as alterações sócio-económicas que se seguiram, o caminho para o socialismo era tão aceite que até o novo partido de direita, o PPD, se dizia social-democrata, as novas instituições democráticas provisórias estavam a funcionar, incluindo a Assembleia Constituinte e a democracia só estava em perigo para quem tinha uma visão particular, estreita e formalista da democracia. Passou apenas a jogar uma só legitimidade, num processo até então complexo em se juntavam outras duas: a legitimidade revolucionária de um movimento militar que tinha libertado o povo português (libertado duplamente, porque também não é livre o povo num Estado que não permite a liberdade dos outros); e a legitimidade popular, porque a vontade do povo não se exprime só pelo voto.
Quanto ao consenso sobre a data, ao seu efeito divisivo, ao sentir popular da data, nem vale a pena argumentar, de tão óbvio que é não se cumprirem as condições para uma celebração oficial. A falta do critério de suprapartidarismo também é flagrante. Até esta situação atual de viragem à direita, em Portugal e no resto da Europa, só tinha havido sugestões tímidas para a comemoração da data. É evidente que esta iniciativa de agora simboliza uma afirmação de força da direita, levando ao colo a ultradireita e é muito mais uma jogada política do que um ato de significado nacional. Não deixa de ser curioso que, na época, fosse o PS e não os partidos de direita de então, PPD/PSD e CDS, que fosse tido como o parceiro político do golpe militar. Muitos socialistas hão de estar desgostosos ao ver o seu “feito” abarbatado pela direita de hoje.
Finalmente, julgo que também está longe de cumprido o outro critério que postuleis o da transparência e rigor histórico na compreensão do acontecimento. Provavelmente, nenhum outro na nossa História recente está tão envolto em dúvidas, interpretações opostas, factos por revelar. Começa logo pelo momento desencadeado: a tomada das bases aéreas pelos paraquedistas foi uma tentativa de golpe (golpe muito estranho, que não teve por alvo de ação nenhum centro de poder ou objetivo militar estratégico) ou uma forma desajeitada e politicamente infantil de responder a uma provocação montada contra eles? Os planos de “contra-golpe” (ou o verdadeiro golpe?) pelo grupo de Eanes eram genéricos ou dirigidos já a esse pretexto da ação dos paraquedistas? Como jogaram entre si os vários componentes do “contragolpe”, que cumplicidades se estabeleceram e a que preço, inclusive com grupos terroristas e criminosos como MDLP? Houve só um 25 de Novembro ou estava preparado outro, porventura com diferentes interesses por detrás? E, por falar em interesses, que relações havia entre responsáveis do “contra-golpe” e serviços secretos estrangeiros? Que provas há do sempre alegado envolvimento do PCP? As centenas de militares de Abril que sofreram prisão, demissão e outras represálias profissionais estavam comprometidos com um alegado plano de golpe revolucionário esquerdista ou “gonçalvistas”, ou foram pura e simplesmente saneados por delito de opinião, a bem da retomada de poder pela hierarquia militar tradicional? Etc., etc., mas acho que já bastam estes exemplos.